As condições de trabalho para motoristas de ônibus mulheres são nocivas para a saúde mental, pontuou uma pesquisa feita no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). De acordo com Tássia Bertoncini, autora da dissertação, a rotina de trabalho nas linhas somada ao trabalho doméstico – na configuração de dupla jornada de trabalho – é cansativa e desgastante, o que implica diretamente na chamada “perda de potencial humano”.
Tassia explica, com base na Teoria do Desgaste Mental, que essa perda de potencial humano associada ao mundo do trabalho se trata de um desgaste da personalidade a partir de situações e relações degradantes. Em sua pesquisa, muitas das motoristas relataram, por exemplo, um “embrutecimento” pessoal: “Elas dizem que ser motorista de ônibus é um trabalho que as ‘embrutece’. E isso vai desde fisicamente, com o envelhecimento da pele por causa da exposição ao Sol e a falta de tempo para cuidarem de si, até psicologicamente, com características que elas consideram ruins, como terem se tornado menos acolhedoras, mais briguentas”. Esse traço pode ser visto como um desgaste na personalidade, ou seja, uma perda de potencial humano em virtude de situações a que estão submetidas.
Dentre essas situações, a psicóloga exemplifica a questão do tempo: as empresas de ônibus determinam quanto cada viagem deve durar, mas não consideram a imprevisibilidade do trânsito. Nesse sentido, motoristas estão correndo contra o tempo, em uma tentativa de terminar a viagem dentro do estipulado – não só para manter o ritmo das próprias linhas, mas para garantir períodos, ainda que curtos, de descanso. Tássia ressalta que, quando se trata de mulheres, esse descanso é ainda mais precioso por causa da dupla rotina de trabalho: “Todo o trabalho doméstico, afetivo, de cuidado, também é, socialmente, responsabilidade das mulheres, por mais que seja invisível e nunca remunerado. Então as motoristas são cansadas, no geral, porque trabalham em casa e vão para um serviço também muito cansativo no qual quase não descansam”.
Essa dificuldade em conciliar vidas profissional e doméstica influencia diretamente na saúde mental. Existe um discurso de culpa no qual se responsabilizam por estarem ausentes das vidas dos filhos e pelos rumos que eles tomam: “Uma delas tem um filho que foi preso e depois internado por uso de drogas, e se sente muito responsável por isso, por achar que não estava suficientemente presente na vida dele. Mas ele também tem um pai, que nunca esteve presente e que nunca é responsabilizado”.
Ainda sobre essa problemática, Tássia expõe que muitas mulheres se sujeitam a situações degradantes. “Uma das motoristas aceitou ficar muitos anos sem carteira assinada em uma empresa de ônibus porque a linha em que trabalhava passava em frente à sua casa e ela conseguia ver os filhos, saber se estavam bem. Essas são questões que não se apresentam para homens, porque são particularidades das relações das mulheres na nossa sociedade”, diz.
Assim, além de carregarem o peso do trabalho, também carregam o da culpa de não poderem estar tão presentes como gostariam na vida familiar – ainda que a doméstica tome grande parte de suas rotinas – e de serem responsabilizadas socialmente por funções que não são delegadas ao gênero masculino.
A psicóloga explica, também, que o desgaste parte de serem mulheres em um trabalho pensado para homens. Questões físicas básicas, por exemplo, sanitários e estrutura de linhas, não são levadas em consideração. Muitos terminais não têm banheiros e, quando têm, são químicos e não comportam algumas necessidades femininas de higiene pessoal, em especial quando se trata de menstruação. “Muitas delas desenvolvem estratégias para evitar esse desconforto com banheiros químicos, desde tomar anticoncepcionais que impedem a menstruação até levar mudas de roupas extras porque sabem que vão precisar de uma troca no meio do trabalho”, diz Tássia.
Ela também trouxe outro exemplo: o da amamentação. Uma das entrevistadas relata que ainda estava amamentando quando voltou ao trabalho, depois da licença-maternidade, e não tinha um espaço adequado para retirar o leite. Como alternativa, enrolou, em si mesma, algumas fraldas para impedir que ele escorresse e sujasse suas roupas. Isso ilustra como a maneira em que o trabalho é pensado ainda parte de uma perspectiva masculina, e não de uma perspectiva humana, diz a pesquisadora.
Assim, essa lógica, em especial quando pensada a partir da perda de potencial humano, mostra-se muito prejudicial ao quadro de saúde mental das motoristas. Para além da vontade de iluminar essas questões no campo acadêmico – já que existem pouquíssimos estudos sobre adoecimento no trabalho e questões de gênero, principalmente quando se trata de adoecimento mental –, Tássia ressalta a importância de mostrar para as próprias motoristas o que é desgastante, algo não tão evidente na maior parte das vezes. Isso é também válido para que os próprios usuários de transporte público tomem consciência do serviço que utilizam e, para as empresas, do serviço que oferecem.
Ela diz, também, que esse autoconhecimento é muito valioso, uma vez que ajuda a entender e a não sentir culpa por processos que não são individuais, à exemplo do trabalho doméstico. “Toda essa pesquisa é potencialmente muito rica para as motoristas e, em algum nível, terapêutica, já que elas têm espaço para falar sobre essas questões, por mais que não tenha se proposto a ser”, afirma Tássia.
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