Programa evangélico reforça ideologia individualista

Além do “Fala que eu te escuto”, pesquisador analisou mais dois programas que agregam abordagem religiosa a problemas sociais

“Fala que eu te escuto” é exemplo de um tipo de atração que foge do modelo convencional de programa religioso. Fonte: Reprodução TV Record

“Toda vez que nos deparamos com o assunto religião misturado com política, a gente enfrenta o autor chamado Max Weber”, intelectual morto em 1920. É assim que Leonardo Siqueira começa a explicação de seu doutorado. Defendido ano passado no departamento de antropologia social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), sua pesquisa foi a tentativa de conciliar duas áreas de seu interesse: antropologia e ciência política.

Leonardo se insere no grupo de pesquisadores sobre as religiões dominantes no Brasil. Ao contrário do que muitos podem esperar, ele não partiu para uma análise da religião como um todo. Ao invés disso, deteve seu olhar em programas televisivos ligados ao tema. “Como a laicidade é um debate público, eu fui olhar onde as religiões se publicizam, que é na televisão”.

A referência inicial ao sociólogo alemão se explica quando o pesquisador justifica a estrutura metodológica de seu trabalho. Weber trabalha com o conceito de esfera de valor, isto é, a forma como se justificam as ações individuais. A política, a economia e a religião, segundo ele, seriam esferas de valor que se separariam conforme o avanço da modernidade, numa tendência à secularização. No entanto, segundo Leonardo, tal leitura não pode ser simplesmente transposta à realidade brasileira. Em vez disso, as tais esferas de valor no Brasil sempre estiveram interligadas, principalmente a política e a religião. “Enquanto na Europa tenta-se colocar as religiões nas consciências individuais (ou seja, não como problema público), pelo menos até os anos 80 nós as tratamos como problema da sociedade civil, onde a Igreja atua politicamente. Até hoje isso acontece: vemos a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) falando sobre ‘ideologia de gênero’, sobre bioética… ou seja, tendo uma atuação política”.

Desde o início do século, o número de evangélicos é o que mais cresceu em comparação com as demais congregações religiosas brasileiras. O termo pluralismo religioso poderia ser usado apenas para abarcar todas as denominações que se encontram dentro desse grupo. Em vistas a traçar um panorama plural a respeito das religiões mais populares no Brasil, Leonardo selecionou três programas televisivos como objeto de análise. Um católico, um evangélico e outro espírita – “aqueles que em 2013 eram os com maior visibilidade entre três segmentos religiosos diferentes, mas com formatos semelhantes. Eles debatem problemas polêmicos da sociedade brasileira”.

“Participe! Queremos te ouvir”

O “Fala que eu te escuto” é um programa veiculado nas madrugadas, mais precisamente à 1h15. Transmitido na TV Record e produzido pela Igreja Universal do Reino de Deus, o programa é o que mais concentra audiência entre os escolhidos por Leonardo, chegando a atingir entre 9 e 10 pontos no Ibope durante o intervalo de observação, que correspondeu de 2013 a 2016.

O formato dos três consiste basicamente no estabelecimento de três posições de fala: o de um especialista, que em geral traz a visão da ciência, ou do direito; o chefe religioso, que traz a visão teológica; e o leigo, ou seja, o cidadão comum.

No “Fala que eu te escuto”, “ a pessoa anônima liga e participa do programa por telefone. O âncora está ao vivo e utiliza todo o conjunto de reportagens da TV Record para fazer uma apresentação dos temas em questão. Após edições de programas jornalísticos da emissora (como Domingo Espetacular ou Jornal da Record) sobre o tema, o programa mostra três posicionamentos, que geralmente são: você é contra, a favor ou acha outra coisa? Então vai para o estúdio, onde há a mediação do âncora/pastor e ele atende às ligações, pelas quais as pessoas opinam sobre o assunto”.

A análise

A primeira descoberta de Leonardo foi que o programa é demonstração “de uma pedagogia da controvérsia”. O termo “controvérsia” aqui tem sentido um tanto diferente daquele com que nos habituamos. Vindo da corrente teórica da “sociologia pragmática francesa”, ele designa os grandes debates nacionais, que no caso brasileiro seriam a homofobia, o racismo, entre outros. Uma vez que estimula o indivíduo a debater usando referências tanto de especialistas como pessoais, o programa o coloca em contato com o debate público. O “Fala que eu te escuto” se destaca entre os demais, pois incentiva o telespectador a legitimar seu próprio argumento em todo tipo de questões polêmicas. Observando-o de forma ainda mais atenta, Leonardo viu a emergência de discursos que à primeira vista seriam subliminares.

Na contramão do que se pode esperar de uma exibição religiosa, o Fala que eu te escuto não apresenta uma perspectiva esperançosa da sociedade. “O que há é que os problemas do espaço público não têm resolução e fazem o indivíduo sofrer. Então, quando se fala sobre violência urbana, todo o enfoque é que ela faz as pessoas sofrerem psiquicamente”.

O programa carrega o sentido de que o sofrimento é individual, psíquico, associando-o não a uma falta de direitos, não como uma revolta crítica à sociedade, mas sim como depressão, explica o pesquisador. Sem propor qualquer medida para alterar esse quadro, “na última parte do programa, quando o pastor/âncora vai concluir, ele não fala necessariamente do problema social. Ele fala da relação entre a fé e o sofrimento. O que o programa traça é que a sociedade te faz sofrer e não há como mudá-la. A solução é que pela fé você pode deixar de sofrer”. É aí que mora o individualismo. A partir daquilo argumentado, o público pode prescindir da organização institucional da Igreja. “É quase como se a resolução de todos os problemas estivesse na transformação do sujeito”.

O grupo de estudos da USP Religião, Direito e Secularismo, que Leonardo integrou, já relaciona a aposta na alteração do sujeito e não da sociedade, a partir de uma noção do sofrimento, à ideologia neopentecostal.

Em setembro de 2018, o “Fala…” foi substituído pelo “Inteligência e Fé”, que é apresentado pelo atual líder da Igreja Universal e genro de Edir Macedo, Renato Cardoso. No primeiro episódio, o tema era: “você está pagando caro pelas más escolhas?”. O apresentador disse que o funkeiro Mr. Catra, morto na véspera da estréia, tinha colhido as consequências das decisões erradas que tomou na vida.

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