Aldeias assumem caráter urbano e índios lutam para fundir sua cultura ao novo espaço

Respeitando a importância da família, indígenas desbravam a cidade para visitar parentes

Yapyrehyt, uma das 100 aldeias da comunidade Sateré-Mawé (Reprodução/Urbanus Manaós)

Índios isolados na selva já não representam o perfil atual das aldeias brasileiras. Explorando isso, o antropólogo José Agnello Alves, pesquisador da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), estudou a nova configuração das tribos em meio ao espaço urbano de Manaus, e seu deslocamento nessa nova realidade.

A importância central da união familiar faz com que os indígenas enxerguem os lares de seus parentes como um anexo do seu, e é esse o centro do doutorado “’Tudo pra onde eu chego tenho minha casa’: mobilidade, parentesco e territorialidade Sateré-Mawé entre cidades amazônicas”

Através do Programa de Cooperação Acadêmica (PROCAD), Agnelo teve a oportunidade de fazer pequenos trabalhos de campo com a população indígena na cidade de Manaus. Foi em uma dessas visitas a capital do Amazonas que ele teve contato com as aldeias Sateré-Mawé, especialmente seus habitantes no urbanizado bairro da Redenção.

Era 2008, o pesquisador se encantou com a resignação das tribos em um espaço tão estranho ao original. Muitos outros indígenas viviam em situação semelhante, realocados na cidade, nos entornos de Manaus, e esse foi, em primeiro lugar, o objeto da pesquisa de mestrado de Agnelo, focando na nova organização habitacional e em seu deslocamento dentro da cidade, nos locais que ainda chamam de aldeias.

Depois, durante a pesquisa para o doutorado, o antropólogo decidiu pôr luz sobre as narrativas dessas pessoas e sua trajetória de inclusão neste novo espaço, entrevistando diferentes círculos familiares.

“Parcelas significativas das populações indígenas têm sido registradas em situação de ‘domicílio urbano’ por censos e estudos realizados em países de diferentes continentes e perfis socioeconômicos. Em países como Austrália, Canadá, Chile, Estados Unidos, México, Noruega, Nova Zelândia e Quênia, conforme balanço realizado pela ONU-Habitat, essa proporção ultrapassa a metade do total da população indígena.” No Brasil, em censo feito em 2000, 52,2% da população autodeclarada indígena já vivia nas cidades. A projeção é de que o número tenha aumentado desde então.

Mas existe outro fenômeno envolvido no deslocamento do espaço dessas tribos. Por vezes, elas não se movem, e sim são atingidas pelo fenômeno da urbanização. No contexto brasileiro, inúmeras terras indígenas homologadas pela FUNAI foram alcançadas pelo crescimento das cidades, como no caso da relação entre os guarani e São Paulo. Também há aqueles que somente ampliaram seu espaço para além do “tradicional”, como o caso dos pankararu, no Real Parque, também na capital paulista, e dos povos manauaras estudados por Agnello.

O pesquisador da FFLCH pondera que o caráter de “novidade” dessa configuração socioespacial deve ser analisado com cuidado: “De forma geral paira no senso comum a ideia de incompatibilidade entre o indígena e a cidade, relegando aos indígenas um afastamento tanto da realidade do tempo presente – como se estivessem aprisionados em um tempo passado, que não existe mais, como se sua existência os cerceasse apenas à “floresta” ou à vida “no meio do mato”. Os indígenas participaram do processo de formação das cidades desde o início, inclusive como mão de obra escrava, e a exclusão de seu pertencimento a esse território é marca do “apagamento” histórico desses povos.

Nos anos 1980, o povo Sateré-Mawé conquistou a homologação da terra Andirá-Marau, no Baixo Amazonas e possui quase 7.900 Km², atravessando cinco municípios, sendo dois já no Pará. Sua população é de 13.350 pessoas, espalhadas em mais de 100 aldeias a beira dos rios da região.

Povo Multilocal

O título da dissertação, “tudo pra onde eu chego, eu tenho minha casa”, remete a fala de Tereza Ferreira da Silva, durante entrevista em 2010. A sateré-mawé, que faleceu em 2013, era matriarca de uma família que já habita a região de Manaus há cinco décadas. Ela saiu de uma aldeia em Ponta Alegre, também na região do Baixo Amazonas, e junto com seus filhos travava o que chamava de “luta” pelo território manauara.

As famílias espalhadas contrariam preferências culturais, em que a reunião entre parentes é muito valorizada. Por isso mesmo, quando prestam visitas, consideradas essenciais, abraçam a casa do outro como um anexo de seu próprio lar. “É um povo marcadamente multilocal, que enfatizava a mobilidade em detrimento da conformação de coletivos residenciais estáticos”. Casa e família são conceitos intrínsecos a eles, logo, se os parentes têm casas diferentes, todos têm muitas casas.

Durante o doutorado, uma equipe que acompanhou Agnelo produziu a série de minidocumentários Memorial Indígena Sateré-Mawé. Ao fim de cada depoimento, eles pediam que o indígena deixasse um conselho para futuras gerações sateré-mawé que tivessem acesso às imagens. Para o pesquisador, a experiência mais marcante de sua trajetória surgiu de um desses momentos.

Lúcio Ferreira Menezes pediu que todos aqueles que se rendessem a cidade para estudar voltassem às suas origens para transmitir o conhecimento adquirido: “sua missão é ‘aprender e retornar, explicar para os seus parentes como é a situação do branco, como é o estudo elevado’”.

A influência do conhecimento “branco” também foi mencionada em outros aspectos. Na perspectiva de muitos, funcionários do SPI/FUNAI, fazendeiros e políticos regionais tem a mera intenção de substituir os patrões, mantendo as mesmas estruturas desiguais nas relações. Sua inserção no centro do capitalismo, as cidades, facilitou a ação desses agentes sobre seus direitos.

Mas Agnelo destaca que, enquanto narradores, os indígenas não se colocavam em posição de vítimas, e sim despontavam como protagonistas, exerciam certo controle sobre essas interações, cooptando as capacidades dos “brancos” em favor de seus próprios modos de vida. O pesquisador pretende levar seu interesse para um pós-doutorado, explorando o deslocamento de populações indígenas nas cabeceiras de rios.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*