Em 1959, 12 países se reuniram para assinar um tratado que encerraria a possibilidade de conflito por uma das regiões mais inóspitas do planeta: a Antártica. 60 anos depois, o Tratado Antártico segue sendo um agente de estabilidade na região, por estabelecer controle sobre ela e foco em pesquisas científicas e preservação ambiental. Considerando tudo isso, o acordo é único no planeta, e esse elemento gerou a tese de doutorado “The Antarctic exception: sovereignty and the Antarctic Treaty governance” (A exceção Antártica: soberania e a governança do Tratado Antártico, em tradução livre).
A tese foi desenvolvida por Daniela Portella Sampaio no Instituto de Relações Internacionais (IRI-USP), sob a orientação do professor Rafael Antonio Duarte Villa. Daniela comenta que tudo começou quando ela visitou a Antártica, como participante da Operantar XXX (expedição para o continente que comemorou os 30 anos da primeira expedição do Brasil), e a base brasileira na região. Lá, buscou observar como se dava a governança da região e a cooperação internacional no local. Além disso, estagiou na Secretaria do Tratado Antártico, o que lhe permitiu ver de perto o funcionamento do acordo. A partir daí, iniciou sua pesquisa.
A pacificação da Antártica
A Antártica sempre foi uma região isolada do planeta por ter temperaturas muito baixas e um clima inóspito e imprevisível, além de ser rodeada por um dos mares mais difíceis de se navegar. Por tudo isso, o local nunca foi povoado e era, segundo Portella, “relativamente desconhecido” até o começo do século 20. Mesmo assim, diversos países já reivindicavam partes do continente.
Argentina, Austrália, Chile, França, Noruega, Nova Zelândia e Reino Unido todos buscavam uma parte da Antártica, alguns inclusive reivindicavam o mesmo território. Além disso, Estados Unidos e União Soviética não reconheciam nenhuma reivindicação, e optaram por uma presença em todo o continente. O cenário era de muita instabilidade e alta possibilidade de conflito — modificado, posteriormente, com a Declaração Escudero.
Daniela explica que a Declaração foi “uma proposta do Chile de suspender as reivindicações por cinco anos e dar espaço para atividades não políticas”, principalmente atividades de pesquisa. Todos os países envolvidos na crise aceitaram a ideia, e a região voltou a sua tradicional estabilidade. Com o fim do prazo, houve uma preocupação de retorno de tensões, mas novas iniciativas na área da ciência levaram ao estabelecimento de bases científicas na região e, por fim, no estabelecimento do Tratado Antártico.
Um novo tratado, um novo modelo administrativo
O Tratado foi assinado por doze países (África do Sul, Argentina, Austrália, Bélgica, Chile, Estados Unidos, França, Japão, Noruega, Nova Zelândia, Reino Unido e União Soviética) e entrou em vigor em 1961. Segundo Daniela, para resolver a tensão na região, ele foi marcado por um “caráter vago” por “suspender os reclames de soberania durante sua vigência, mas sem negá-los”. Com isso, o acordo é um exemplo de negociação que conseguiu contemplar interesses antagônicos.
Ele estabeleceu um modelo de governança baseado na manutenção da paz, valorização de pesquisas científicas e preservação ambiental, além de ter conseguido desnuclearizar e desmilitarizar a região. Hoje conta com 53 membros, incluindo o Brasil, dos quais 29 possuem poder decisório. Para integrá-lo, é necessário demonstrar “substantiva pesquisa científica, comprovada por meio da organização de expedições, ou por meio do estabelecimento de estações na região”, explica a pesquisadora. Todos os anos são realizadas inspeções pelos países membros para garantir uma conformidade com o acordo.
Com o passar dos anos, o Tratado foi alterado e atualizado por meio de decisões, recomendações e resoluções. Além disso, foram incluídos diversos países que o criticavam ou requisitavam uma atuação da ONU na região. Ele também abriu espaço para outros acordos regulatórios, como de conservação de áreas marinhas e controle da pesca de focas e de mineração. O Tratado em si não abrange questões comerciais, por envolverem a soberania de países, mas como essas atividades não foram desenvolvidas na região e privilegiou-se atividades de pesquisa e conservação, sua legitimidade foi fortalecida.
Daniela destaca que, se hoje “o Ártico se torna mais acessível e objeto de grande interesse, é possível observar um efeito oposto na Antártica, onde os países parecem caminhar para uma estratégia de proteger ao máximo o continente do impacto das atividades humanas”. Em 2016, a Declaração de Santiago reforçou os princípios do Protocolo de Proteção Ambiental, “sinalizando à comunidade internacional o comprometimento das partes com os princípios de cooperação internacional, fomento à pesquisa científica e a proibição de atividades de exploração mineral no continente”.
Apesar disso, por causa de sua riqueza em recursos naturais, é possível que a questão de exploração do continente volte à tona, de forma a restaurar uma certa instabilidade na área. Vale ressaltar que o Tratado Antártico versa apenas sobre a parte continental da Antártica, mas não sobre o oceano circundante, que possui outro acordo de administração.
A pesquisadora conclui que, tendo em vista as transformações ambientais atuais, o Tratado parece “responder aos anseios gerais em manter resguardada uma região quase intocada”.
Quanto à administração do continente, Daniela explica que os membros do Tratado Antártico se reúnem anualmente para discutir diversos documentos. O processo decisório é por consenso, que resulta em medidas, resoluções e decisões. Desses três, apenas o primeiro tem caráter juridicamente vinculativo, ou seja, uma vez aprovado na reunião, todos os países devem transformar a medida em uma lei nacional, com a ratificação em seus respectivos Congressos Nacionais. As resoluções têm caráter de recomendação e as decisões, por sua vez, versam sobre o funcionamento interno do Tratado e sua Secretaria.
Com isso, “uma vez na Antártica, tudo que acontece dentro de uma estação ou expedição segue a legislação do Estado de origem, que acaba por estar em consonância com o que é acordado pelo Tratado”, explica Portella.
Uma crítica contundente ao Tratado é que ele é pouco representativo, abarcando uma pequena parcela da comunidade internacional, e nem todos os membros dele têm poder decisório, o que o torna ainda mais excludente. Ao mesmo tempo, Daniela destaca que, até hoje, não conseguiu “identificar qualquer outro caso similar ao da Antártica no mundo”, e que a resposta para o problema na região foi criar uma solução partindo do princípio que conclui que, no fim, “não tem solução”.
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