Contrariando o senso comum, para os indígenas, saúde não é sobre a ausência de doença. O conceito para as aldeias é amplo e desrespeitado por uma intervenção pouco respeitosa dos “brancos”. E a pesquisadora Flaviana Rodrigues de Souza quis estudar de qual forma o desrespeito a cultura local afetava a saúde mental em regiões indígenas. Para isso projetou o mestrado Povos indígenas e saúde mental: a luta pelo habitar sereno e confiado, no Instituto de Psicologia da USP.
Seu orientador já havia feito um doutorado voltado a questões das tribos, o que facilitou o início do estudo. Durante o processo de aprovação da sua proposta, a banca examinadora propôs que Flaviana não pensasse na população indígena como um todo, mas fizesse um recorte em torno de uma só cultura, para evitar um trabalho genérico. Na sua graduação, a futura mestranda já fazia parte da Rede de Atenção a População Indígena, e fez visitas a população guarani em Tupã, no interior paulista. Pela familiaridade, a pesquisadora decidiu continuar a acompanhá-los.
Por outro lado, Flaviana também tentou evitar as questões burocráticas ligadas ao Comitê de Ética e à Fundação Nacional do Índio (Funai), que impõem uma série de regras de segurança, que considerou como o maior desafio de sua trajetória. Os prazos da academia e dos órgãos de regulação não andavam no mesmo compasso. E para fazer o requerimento de entrada em territórios indígenas, a pesquisadora deveria obedecer a uma série de requisitos, como uma vacina exigida pela Funai, que não podia tomar pois estava grávida. Depois, a análise da solicitação demorava até meses para ser aprovada.
Outra dificuldade eram as próprias lideranças indígenas, a pesquisadora entrou em contato direto com autoridades dentro das aldeias, buscando a aprovação dos caciques, mas bateu de frente com o “outro tempo” desses povos, em que diversas camadas da sociedade deveriam concordar com a sua presença, principalmente os anciãos.
Por essas dificuldades, ela teve que alterar um pouco a metodologia. Os estudos da tese não foram feitos a partir de entrevistas, mas, sim, de dados colhidos a partir de reportagens: “Trabalhei com notícias feitas e veiculadas por eles por vias indígenas e por quatro entidades parceiras, e ao analisar os discursos priorizei esses produzidos pelos locais, contrastando esses dados com a principal legislação que trata da saúde indígena, para pensar nas tensões entre o que é previsto e a cultura peculiar da tribo.”
Com suas terras sendo tomadas e seu estilo de vida negado, a impressão é de que embora o texto da legislação ofereça garantias, como o respeito a diversidade cultural, a operação de auxílios de saúde dentro das aldeias ainda obedece um padrão muito ocidental, um modelo biomédico de saúde, o que também gera muito sofrimento para a população.
“Se alguém tem uma doença que não pode ser tratada na atenção primária, esse indígena é deslocado para um grande centro. Isso afasta ele da aldeia e da família, causando um sofrimento ainda maior. Existe um contraste muito grande não só de verba, mas também na maneira de ofertar essa assistência a saúde. Mesmo nos lugares em que existem iniciativas como a UBS.”
Hoje em Tupã uma psicóloga especializada trabalha com a saúde indígena, mas na época em que frequentava a comunidade, em 2015, grande parte da população não recorria a UBS por nem entender que aquele espaço oferecia serviços de saúde.
A principal fonte de problemas para a saúde mental dos indígenas, concluiu a pesquisa, é a insegurança acerca da posse de sua terra, algo fundamental na construção da identidade de um povo: “Se os indígenas não têm o território em que possam viver da maneira que bem entendam, no ‘Teko Porã’ (bem-estar), isso vai gerar sofrimento e adoecimento. O modo de organizar a saúde também diz respeito a como se entende a população indígena.”
Ela lamenta que a psicologia indígena ainda seja muito incipiente, e prega que se pense a área para além do consultório, já que a aproximação desses povos pode enriquecê-la: “Espero que a gente possa criar um vínculo e compartilhar experiências, porque o que vemos é a tradição de colocar o outro em um lugar inferior, pejorativo.”
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