Fome, seca, sede. É nessas condições que vivem refugiados em Dadaab, nordeste semiárido do Quênia, no chifre do continente africano. O país faz fronteira com a Somália, que enfrenta uma guerra civil desde 1991, está em situação de crise humanitária e tem grande parte de seu território dominado pelo Al-Shabaab, grupo terrorista fundamentalista ligado à Al-Qaeda. Se para os refugiados somalis a situação é desumana, para as mulheres o cenário é ainda pior. E é o que analisa Beatriz de Barros Souza, da Faculdade de Direito (FD) da USP em sua pesquisa Proteção dos direitos das mulheres em campos de refugiados: um estudo de caso.
Dadaab abriga refugiados em campos interligados desde 1992, com a grande maioria vindos da Somália. No complexo de campos, que ocupa a área de 50km², estão as pessoas em situação de refúgio prolongado. De acordo com a pesquisadora, não existe um monitoramento geral da ONU sobre a situação de pessoas nessa condição posterior a 2004, quando o número era de cerca de 23 casos no mundo. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) enquadra nesse termo populações acima de 25 mil refugiados que vivem em exílio por cinco anos ou mais.
Os direitos das mulheres em África começaram a ser tratados muito mais tardiamente do que em outros lugares do mundo, tendo sido discutidos apenas em 2003, quando surge o protocolo sobre o tema dentro da convenção dos direitos humanos do continente africano. A Somália, especificamente, tem o Islã como religião oficial, o que faz com que 98% das mulheres somalis tenham sido submetidas à mutilação genital.
Para falar sobre os direitos das mulheres, é preciso falar que mais de 50% da população desses campos é menor de 18 anos. “Precisamos falar também sobre o direito das crianças”. Beatriz lembra que a gravidez precoce é mais comum nesse espaço, mesmo que em locais de situações de conflito, onde existem áreas pacificadas.
Para a análise sobre as condições e os direitos das mulheres nos campos, a pesquisadora separou todos os relatórios disponíveis no site do ACNUR acerca de Dadaab. Ela tabulou o que eram alegados como medidas de proteção, como medidas de proteção dos direitos das mulheres e outras medidas da ONU em parceria com outras organizações de ajuda humanitária.
Conforme a pesquisa, o relatório apresentado pelo ACNUR sobre violência de gênero em Dadaab oferece informações incompletas acerca do perfil das vítimas e da modalidade de violência nos campos. Ainda, mostram incompletude de dados sobre a assistência prestada às vítimas e sobre a sentença de réus condenados.
Algumas medidas são adotadas em prol das mulheres e meninas do complexo de campos de Dadaab. Apesar disso, se questiona o modo de formulação dos programas de prevenção de violações e de promoção dos direitos. Beatriz acredita que não houve um envolvimento da comunidade na formulação das políticas, o que as torna, muitas vezes, uma intervenção de cima para baixo, que pode não ter tanta eficiência.
Ela exemplifica com um programa de distribuição gratuita de lenhas da ONU, que apontou que muitas mulheres eram violadas em locais mais remotos do campo quando iam buscar as madeiras. Contudo, essa era uma fonte de renda para as mulheres, que as vendiam para arrecadar renda extra. Isso mostra que as medidas tomadas hierarquicamente podem não levar em conta esse tipo de efeito colateral.
A “temporariedade” dos campos
“O maior problema dos campos de refugiados é eles serem vistos como temporários”, afirma a pesquisadora. Ela conta que, além dos campos serem enxergados de forma ingênua como provisórios, existe uma política para manter a situação precária, porque acredita-se que melhorar a vida dos refugiados faz com que eles queiram permanecer no país.
Além disso, a intervenção do Quênia em relação aos refugiados tem se mostrado insuficiente e demorada. A demanda de ampliação dos campos superlotados de Dadaab acontecia desde a década de 90, mas a ampliação de fato aconteceu apenas 2011, por exemplo. O Quênia, apesar de abrigar refugiados há anos, ainda faz acordos para o retorno voluntário para os países em crise humanitária, e não pensa na integração dessa população no país de uma forma eficiente.
O período de adaptação é o mais complicado para quem recém-chega nos campos de Dadaab. A pesquisadora afirma que é quando a população mais sofre com a precariedade, já que quem chegou há mais tempo já conseguiu se estabelecer e possui alguma espécie de emprego dentro do campo.
Apesar de existir uma estrutura de saúde e educação para as crianças, a variação do fluxo migratório faz com que ela não dê conta da demanda. Do primeiro dia de maio ao dia 31 deste ano, houve um aumento de cerca de 200 mil pessoas nos campos. Beatriz explica que existem variações súbitas do número de pessoas, e a infraestrutura não consegue se adequar rapidamente para suprir essa demanda. O complexo de campos de refugiados tem capacidade para 90 mil pessoas, mas chegou a abrigar 580 mil em 2011.
A relação internacional histórica entre os países africanos e o continente europeu também é um fator decisivo para tratar a situação dos refugiados em África. De acordo com a pesquisadora, 86% dos refugiados estão em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, que são os mais próximos dos locais de conflito.
Apesar do continente africano ser enaltecido pelo próprio ACNUR por conta da convenção acontecida em 1969 sobre a questão dos refugiados em África, e da lei prever a integração local desses refugiados, na prática isso não foi efetivado. Essa população é majoritariamente alocada em campos, que deveriam ser provisórios mas passam a durar gerações, como é o caso de Dadaab.
De acordo com Beatriz, isso acontece porque na época da convenção africana existia uma alta expectativa dos países que estavam se tornando independentes de que a Europa fosse ajudar a receber essas pessoas, o que não aconteceu. A Europa, por sua vez, fechou suas fronteiras nos fluxos migratórios e passou apenas a enviar dinheiro às organizações de ajuda humanitária, que em sua maioria também eram europeias.
Tchau, somalis
Em 2016, o governo queniano afirmou que fecharia o complexo de campos de refugiados alegando insegurança do país, que lida com os campos há 26 anos. As autoridades do país argumentavam que o complexo estava sendo usado por militantes islâmicos para recrutamento para os ataques terroristas no solo queniano.
Após insistir nesse discurso, houveram retornos voluntários de refugiados somalis à seu país de origem, que por sua vez alegavam preferir não esperar ser despejados. Contudo, de acordo com a ONG Anistia Internacional, assédio e maus-tratos aos somalis por parte do serviço de segurança do Quênia os levou a considerar a voltar para a Somália.
Em fevereiro de 2017, a Alta Corte do Quênia declarou “nula e sem valor” a decisão de fechar o complexo de campos de refugiados. O juiz John Mativo afirmou ainda que se referir especificamente aos refugiados somalis configurava perseguição de grupo, e o ato era ilegal, discriminatório e inconstitucional.
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