Imagine que você é um empresário. Você precisa encontrar meios de aumentar a produtividade do seu funcionário. Você então decide se render à cultura de coaching. Oferece palestras motivacionais. Eventos de empreendedorismo. Sugere treinamentos vocacionais. Alguns bem intensos. Só uma coisa você não esperava: em vez de um funcionário mais produtivo, mais engajado, você recebe um pedido de demissão. O tiro sai pela culatra. O funcionário descobre, com o auxílio daquelas atividades, que não pertence à sua empresa. Situações como esta são relatadas pelo pesquisador Jorge Gonçalves de Oliveira Júnior, do Departamento de Antropologia da USP, em Treinadores de sentido: notas etnográficas sobre atividades motivacionais modernas, seu livro recém-lançado.
O recorte escolhido por Gonçalves abrangeu três tipos de atividades motivacionais: espaços de treinamento dentro de empresas, palestras abertas de coaching e o Leader Training, uma imersão ligada ao autoconhecimento pessoal e profissional, que acontece ao longo de três dias em um hotel. Todos eventos que tiram o trabalhador do momento do trabalho e o colocam em outro fluxo temporal. A classificação descartou, por exemplo, ganhos de comissão ou cartazes espalhados pelo ambiente da empresa.
Para realizar a investigação, o antropólogo utilizou a técnica da observação participante, em que o observador adquire um papel dentro do meio observado, partilhando da trajetória do grupo. Ele conta que em uma das experiências, realizou o trabalho de fotógrafo. “A fotografia permite relações. Prestei um serviço para que fosse um caminho de duas vias. A antropologia trabalha muito nesse sentido. Não vou lá só pegar as coisas, ofereço algo de volta. É uma troca de dádivas”.
Além da pesquisa de campo, materiais audiovisuais foram analisados. Ao buscar as origens do Leader Training, ele conta que encontrou fortes relações de algumas práticas com seminários motivacionais californianos, os chamados Large-group awareness training (Treinamentos de Conscientização em Grandes Grupos, em tradução livre). Como grande expoente, esses seminários têm o estrategista Tony Robbins, que ganhou visibilidade internacional em 2016, com o documentário da Netflix “I am not your guru“. Ele foi responsável por popularizar a Programação Neurolinguística (PNL) nos Estados Unidos.
Segundo o pesquisador, o Leader Training é uma releitura brasileira mais performática desses eventos, com uma maior quantidade de exercícios corporais e simbólicos. “Por exemplo, da dinâmica da raiva. A ideia do Leader Training é trabalhar com as suas emoções básicas, e uma delas é a raiva. Primeiramente, você precisa descobrir qual a sua ferida mortal. As pessoas ficam se xingando, ficam se acusando de alguns defeitos. Aí a pessoa nota aquilo que mais a tocou e escreve em um papel. Posteriormente, esse papel é espancado, rasgado e queimado”.
A Programação Neurolinguística de Robbins é abordada por Gonçalves. Definida pelo antropólogo como uma espécie de “psicanálise para leigos”, a PNL fez sucesso nos anos 1990, surfando na mesma onda neo-esotérica que fez Paulo Coelho vender milhões de livros. Considerada uma pseudociência, a técnica envolve perguntas e mentalizações para libertar as pessoas de seus traumas por meio da reconstituição e da “reconstrução” de memórias. Se o seu medo de cachorro existe por causa de uma mordida na infância, você é induzido a retornar àquela cena e alterá-la, diminuindo o tamanho do cachorro, por exemplo.
Levantamentos do número de citações da PNL e do coaching no acervo do jornal Folha de São Paulo entre os anos 1981 e 2014 demonstram a decadência do primeiro e a ascensão do segundo de maneira alinhada. Para o antropólogo, o coaching é um retorno da PNL, ainda que possua características diferentes. “Para fazer PNL, você precisa adotar aquele sistema de crenças. Para fazer coaching, não, pois este é muito mais prático, trabalha em cima de metas”, pondera. “Agora, as técnicas que o coaching usa, em sua maioria, são da Programação Neurolinguística. É consenso. Tem coach que vai dizer que não. Cada um é uma coisa. Mas é muito comum você ouvir deles que fazer PNL ajuda na prática do coaching”.
Outro ponto importante do estudo diz respeito à convergência do discurso religioso e do discurso científico. Enquanto a ciência é explícita, a religião é subtexto, mas ambas se complementam para corroborar com o êxito do discurso motivacional. “Você precisa encontrar seu lugar no mundo, porque o mundo tem lugar para todos, já que o mundo foi criado por um ser superior. O indivíduo precisa se encontrar, e esse encontro tem sempre um fundo religioso. É sempre um religare, sempre encontrar sua própria vocação”, relata. “O que a ciência faz é desvendar essas regras de como o mundo funciona. Então uso o conhecimento científico para convencer você de que essa narrativa funciona”.
O debate proposto por Gonçalves não é a eficácia do discurso motivacional, mas sim como ele é capaz de construir a realidade. Conforme menciona o autor, muitas pesquisas se esforçam em desconstruir esse discurso. “É fácil desconstruir. O discurso motivacional é frágil. Só que ele é extremamente eficaz. Para a pessoa que se propõe a acreditar naquilo, a ser convencida por aquilo, e as pessoas geralmente estão propensas a isso. Elas querem respostas. Essas respostas vêm. Em esquemas, em estruturas de pensamento e, principalmente, em narrativas”, explica.
Em contraponto ao senso comum, ele discorda que essas práticas sejam “charlatanismo”. A grande crítica exposta pelo pesquisador se centra em outro aspecto: o reducionismo presente nos discursos. “Não encontrei charlatanismo. Encontrei pessoas que acreditavam naquilo que estavam fazendo. Mas como muitas religiões, elas acabam sendo redutoras. Existem outras formas de ser feliz. Não é só com dinheiro e com trabalho vocacionado. Existem outras estruturas possíveis, outros mundos possíveis”.
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