Longe de ser unanimidade, patinetes elétricos são colocados em dúvida como meio sustentável

Falta de regulamentação e fortes impactos ambientais colocam em xeque a efetividade do veículo

(Foto: Arquivo El Universal)

Por César Costa, Gabrielle Yumi, Luccas Nunes e Tiago Medeiros

O que parecia ser um brinquedo ultrapassado passou a ter novos ares nos últimos anos. O patinete, originário dos anos 60 como diversão para as crianças, nas últimas duas décadas ganhou uma versão motorizada e que, para alguns, pode ser até um meio de transporte válido. 

Chamados de e-scooters, os veículos de locomoção são considerados como a mais nova novidade e esse meio de transporte se multiplicou significativamente em capitais como São Paulo e Rio de Janeiro.

De acordo com o site Metrópoles, o plano de utilizar os patinetes como veículos efetivos surgiu nos Estados Unidos. Mais especificamente na Califórnia, a startup Bird experimentou deixar alguns patinetes elétricos espalhados por Santa Mônica, em setembro de 2017. Várias pessoas aderiram ao projeto e a pressão popular ajudou a legislação a aceitá-los. 

No entanto, nem tudo foi positivo nesse ressurgimento. Algumas questões foram levantadas sobre o veículo em questão. Seria totalmente seguro andar com um transporte motorizado sem um treinamento prévio? O veículo está espalhado o suficiente pelas cidades para não ser considerado elitista? Há uma preocupação em regular as legislações de trânsito para esse tipo de transporte? Esses e outros questionamentos são pontos de discussão acerca da aceitação e concretização de patinetes elétricos como um meio de transporte válido nas cidades brasileiras, principalmente nas regiões metropolitanas.

O problema acaba sendo mais antigo

Ricardo Silva, professor do Campus Leste da Unifesp e doutor em Geografia Humana pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas (FFLCH) da USP explica que “para entender os problemas dos patinetes na metrópole de São Paulo, é necessário compreender que esse fenômeno está ligado à ampliação da crise de mobilidade da década de 90”. Essa crise é resultado do privilégio histórico concedido aos usuários de automóveis, que teve como consequência dificuldades socioespaciais, como o aumento de congestionamentos, da poluição atmosférica e de acidentes de trânsito.

Gráficos corroboram essa visão

De acordo com Silva, o sistema de patinetes está inserido em um mecanismo de elitização. Uma pesquisa feita pela Grow Mobility, maior marca de patinetes e bicicletas compartilhadas, ilustra bem essa fala. 

Na amostra dela, é identificável que a maioria das pessoas que usa o patinete elétrico tem uma renda elevada. Aproximadamente 62% desses usuários têm renda familiar acima de cinco salários mínimos.

Pesquisa demonstra que tanto os patinetes quanto as bicicletas compartilhadas são usadas majoritariamente pelas classes A, B e C, com grande parcela da A e B usando os patinetes. (Créditos/Fonte: Grow)

Há também uma questão de localização. Os lugares onde são possíveis usar esses veículos compartilhados estão posicionados em zonas com maior interesse comercial, logo, com maior concentração financeira. É possível observar esse aspecto no gráfico seguinte.

Ela se concentra nas áreas centrais da cidade, próximo de grande parte dos serviços e da classe média. Ricardo conta: “Isso se dá porque as empresas que operam esses patinetes têm interesses comerciais. A periferia não está no mapa dessas empresas, o que revela uma forma de preconceito espacial”.

O gráfico demonstra que a maior parte dos usuários está na área de atuação da Yellow, que é localizado centralmente em SP (Créditos/Fonte: Grow)

Além desta questão financeira, a pesquisa feita em julho deste ano também traz outros dados interessantes para o entendimento desse fenômeno. Cerca de 65% dos que utilizam patinete possuem automóvel e 9% possuem motocicleta própria. Ou seja, quase três quartos dos que estão utilizando esse meio de transporte possuem veículos particulares, o que corrobora ainda mais com a hipótese de Ricardo. 

Por fim, existe um pensamento de que tanto os patinetes quanto as bicicletas servem como uma ajuda no “último quilômetro’’. Então, são muito úteis para aqueles que moram longe de um ponto de transporte público ou trabalham em lugar com essas mesmas condições. A pesquisa demonstra que 37% das viagens integram com outros modos de transporte.

Pedestres e segurança

Uma resposta apresentada para esse problema cada vez mais crescente foi o aparecimento dos patinetes elétricos, que, de acordo com Silva têm as vantagens de ocuparem menos espaço e terem um consumo menor e menos poluente comparado aos carros. No entanto, ele salienta que a cidade ainda não possui infraestrutura para lidar com esse novo meio de transporte. “Ao invés de usar o sistema viário, que é quase monopolizado pelos automóveis, as pessoas que utilizam patinetes acabam usando ciclovias ou ciclofaixas, que apesar da ampliação ainda recente ainda são poucas e desiguais, e calçadas. Isso gera conflitos e aumenta as chances de acidentes”, afirma.

Além da questão da disposição dos patinetes pela cidade, há a questão da velocidade. Os patinetes podem atingir até 30 km/h, em média, colocando pedestres em risco e aumentando ainda mais o risco de acidentes, já alto devido à falta de infraestrutura. De acordo com Silva, os pedestres sofrem um descaso histórico por parte do poder público na questão dos espaços para deslocamento. “É importante discutir a presença desses meios de locomoção nas calçadas”, afirma. “Não seria o caso de cobrar mais ciclovias e usar um pouco do espaço dos automóveis, que há tempos praticamente monopolizam o espaço público da metrópole de São Paulo?”

Essa questão dos locais de circulação dos patinetes é, de fato, relevante, e recebeu atenção do Procon, em uma pesquisa realizada na cidade de São Paulo. De acordo com o estudo, 69,4% dos entrevistados acredita que as ciclovias são o espaço adequado para os patinetes, enquanto que ruas e calçadas foram escolhidas como local ideal de circulação por 16,34% e 14,26%, respectivamente.

Paralelo a essa discussão, a pesquisa trouxe ainda o resultado acerca dos acidentes relacionados ao uso de patinetes elétricos e os números comprovam o perigo que a falta de infraestrutura traz: 91,06% das pessoas que responderam já sofreram algum tipo de acidente com patinetes elétricos ー vale salientar que 81,13% dos entrevistados declararam não usar quaisquer tipos de equipamento de segurança.

Poluição e patinetes

A pesquisadora associada ao Instituto Butantan, Erika Zaher, trouxe pontos diferentes de Ricardo Silva. Questionada sobre as consequências do uso em grande escala do patinete, ela afirma que “meios de transporte elétricos estão relacionados à emissão de gases apenas no que diz respeito à produção da energia que utilizam. Por exemplo, em países europeus a energia pode vir da queima de carvão”.

Segundo Erika, durante o processo de fabricação dos patinetes há considerável produção de carbono, ou seja, emissão de gases de efeito estufa no decorrer de sua produção. Então, para além da energia que produzem estar relacionada à emissão de gases, a fabricação dos e-scooters também emite os mesmos gases, trazendo em evidência um lado negativo muito maior do que o presumido.

Um outro aspecto a ser considerado, especificamente no caso dos patinetes compartilhados, é a questão de sua manutenção. De acordo com a pesquisadora, em diversas cidades a necessidade de substituição e manutenção é alta, em parte devido ao conflito com outros meios de transporte ou pessoas como, por exemplo, questões relacionadas ao seu estacionamento em áreas que impedem o fluxo de pedestres ou carros. Porém, é importante destacar que em seu uso diário, não há emissões de gases contribuintes ao efeito estufa. 

Em relação aos ambientes da cidade, a pesquisadora diz: “O convívio é, a meu ver, positivo, especialmente devido à redução de ruídos, caso os patinetes sejam usados em substituição aos carros. Desta forma, aves que começam a cantar mais cedo pela manhã durante a estação reprodutiva, como os sabiás, poderiam até voltar a cantar no mesmo horário em que o fazem nas zonas rurais”. 

Um estudo elaborado pela Universidade da Carolina do Norte, Estados Unidos, corrobora com os apontamentos feitos por Erika em relação ao dano ambiental causado na fabricação dos patinetes elétricos. Apesar de serem vistos por grande parte da sociedade como a alternativa mais sustentável de transporte, uma vez que não emitem gases poluentes quando em atividade, os patinetes produzem uma grande massa de poluição aérea em sua produção.

A partir dessa constatação, os pesquisadores observaram que veículos de mobilidade pessoal (VMPs) possuem um impacto considerável à natureza. Os e-scooters tiveram sua vida útil avaliada e, especificamente, esse modelo de transporte que, devido a atos de depredação e mau uso, possuem uma vida útil inferior a dois meses.

Além disso, pelo fato desses patinetes serem majoritariamente fabricados na China e chegarem a diversos países por importação, é gerado em grande escala gases tóxicos que são lançadas à atmosfera durante o transporte dos veículos. A baixa durabilidade dos patinetes afeta diretamente na demanda por matérias-primas, que acaba crescendo e matérias como o Alumínio são usadas em larga escala.

Outro ponto que acaba por gerar impactos à natureza é a recarga dos VMPs. Esse serviço é feito, na maioria das localidades, por empresas que utilizam-se de veículos automotores que recolhem os patinetes, levam até os locais de carregamento com energia elétrica e devolvem os veículos para áreas de atuação. Nesse processo, novamente o processo transporte acaba por gerar poluição atmosférica.

Para completar esse estudo e dar um panorama comparativo sobre o grau de poluição envolvido nos patinetes elétricos em relação a outros meios de transportes, os pesquisadores trataram de calcular emissões de gás carbônico presentes em todo o conjunto de ações que fazem os patinetes chegarem até as ruas das cidades. Ou seja, desde a fabricação, envio e carregamento até o transporte desses veículos.

Os resultados dessa análise mostraram que os VMPs, considerando todos os processos que habilitam sua utilização, poluem mais que meios de transporte como as bicicletas, ciclomotores elétricos e ônibus público com passageiros a bordo.

Em relação aos automóveis, os patinetes elétricos poluem menos se comparado com veículos que não consigam rodar mais de 11 quilômetros utilizando um litro de gasolina. Logo, percebe-se o quão alto é o impacto negativo desses patinetes elétricos, caso seja considerado todos os meios que viabilizam sua circulação.

Questão nacional

Procurado pela BBC News Brasil sobre as regras no País para o uso dos e-scooters, o Ministério das Cidades informou que o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) ainda não possui normas específicas para esse tipo de transporte. Os patinetes também não entram no Código de Trânsito Brasileiro, já que não lista patinetes como veículos. 

A regulamentação que mais se assemelha a uma regulamentação válida nacionalmente é a Resolução nº465 de 2013, do Conselho Nacional de Trânsito. No texto, é permitido o uso de equipamentos em calçadas, ciclovias e ciclofaixas, mas proíbe veículos maiores de utilizar da mesma via para o deslocamento. A norma define regras para o uso de “equipamentos de mobilidade individual autopropelidos”, definição que abrange os e-scooters.

Porém, essa norma foi criada muito antes dos patinetes elétricos existirem em larga escala no território nacional. A falta de regulamentações específicas para a utilização desses veículos contribui para as divergências em opiniões e posições negativas de pesquisadores e especialistas, justamente por não ter legislação para se apoiar ou contestar.

Algumas dúvidas ainda rondam esse tema, porém, o que se tem como concreto é que a popularização nas grandes cidades dos patinetes elétricos como meio de locomoção fixo acarretará em mudanças na malha de transporte desses locais. A partir de ponto, deve-se verificar em termos práticos se esses VMPs possuem respaldo da sociedade para substituírem os meios automotivos já estabelecidos nos grandes centros. 

O fato das empresas claramente selecionar apenas algumas áreas para habilitar a utilização e circulação dos patinetes já é um fator que limita uma grande adesão das pessoas a essa forma de locomoção por si só. É preciso esperar para ver como essas instituições lidarão com a opinião do público sobre as condições das quais os patinetes estão inseridos.

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