Os limites da palavra em Ferreira Gullar

Um dos grandes nomes da poesia brasileira, Gullar sempre se inquietou sobre a fronteira entre seus escritos e o mundo

Ferreira Gullar em palestra da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Foto: Creative Commons

Daniel Miyazato | danielmiyazato@gmail.com

O poeta maranhense, originalmente José de Ribamar Ferreira, faleceu no dia 4 de janeiro de 2017. Considerado um dos maiores nomes da poesia brasileira, Gullar esteve à frente de movimentos artísticos importantes do século 20, como o neoconcretismo. No ensaio Ferreira Gullar: o Fogo Procura sua Forma, da revista da USP, Estudos Avançados, número 89, a professora Viviana Bosi, do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP, analisa os questionamentos do artista quanto à obra poética e sua relação com a passagem do tempo.

Nascido em São Luís do Maranhão, em 1930, Ferreira Gullar mudou-se para o Rio de Janeiro em 1951, onde trabalhou como repórter para grandes periódicos da época, com O Cruzeiro e Manchete. O país vivia o fenômeno da industrialização e do desenvolvimentismo, notadamente encarnado no governo do presidente Juscelino Kubitschek. Aliado ao espírito otimista de então, surge o movimento da poesia concreta em São Paulo. “Hélio Oiticica, alguns anos mais tarde, fala de uma ‘vontade de construção’. Trata-se de uma poesia que se quer coletiva, muito substantiva, ligada às coisas da cidade, ela se quer útil”, caracteriza Bosi.

Esse tipo de escrita procurava desconstruir o paradigma do verso como unidade rítmica do poema, utilizando métodos heterodoxos de diagramação. Como explica a professora da FFLCH, foi um movimento literário bastante influenciado pelas artes plásticas daquele período. “Tivemos a primeira Bienal Internacional de São Paulo, em 1951,  que traz artistas como Max Bill e pintores abstratos brasileiros, como Waldemar Cordeiro e outros. Estes tinham relação estreita com o trabalho de design gráfico das indústrias do ABC. Muitos desses artistas, que dialogaram com a obra da poesia concreta, trabalhavam nas indústrias, caso do Sacilotto e do Fiaminghi.”

Obra de Luiz Sacilotto na Universidade Federal do ABC (UFABC). Foto: Wikipédia

Ferreira Gullar publica o livro de poemas A Luta Corporal  em 1954. A obra acaba por agradar os poetas da capital paulista, que perceberam uma certa afinidade com seu concretismo, apresentando “poemas com bastante influência do João Cabral de Melo Neto, em que se vê aquela concisão, aquela objetividade, o que eu acredito que deva ter atraído os poetas concretos”, teoriza Viviana Bosi. “Era bem diferente da geração de 45, não tinha uma retórica grandiloquente, e há poemas que podemos dizer de uma linguagem meio destruída, pedaços de palavras, algo fragmentado, e a questão visual, da diagramação, aparece bastante também.”

Em 1956, Gullar participa, portanto, da 1ª Exposição Nacional de Arte Concreta, realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP). No entanto, já no ano seguinte, o escritor maranhense rompe relações com os concretistas paulistas, por conta do manifesto do poeta Haroldo de Campos, Da Psicologia da Composição à Matemática da Composição, “em que se propõe um a poesia ligada à matemática, com princípios geométricos, super racionais de que o Gullar discorda, diz que aquilo não teria nada a ver com poesia”, explica a professora. Em resposta, Gullar escreve o artigo Poesia Concreta: Experiência Fenomenológica, no qual critica o que seria um racionalismo excessivo. “Nessa época, o Gullar conhece um outro grupo de artistas plásticos do Rio de Janeiro, formado por artistas como Hélio Oiticica, Lygia Clark, Amilcar de Castro, que são abstratos como os de São Paulo, mas não são tão geometrizantes, não renunciam, por exemplo, às cores, à intuição, percebe-se que são linhas diferentes. O pessoal do Rio tinha influência, por exemplo, do Paul Klee, Kandinsky e Mondrian.”

Aliado a um novo grupo de artistas, Gullar assina, em 1959, o Manifesto Neoconcreto. “A ideia era de que as palavras pudessem ampliar o universo interior do espectador ou do leitor, por isso os poemas do Gullar, na época, precisavam da interlocução do leitor, precisavam até de gestos. No caso do Poema Enterrado, tinha que andar, descer, abrir um quarto. Então, era como se a arte fosse uma forma de ação, que interviesse na vida. Não tinha um caráter imediatamente político, mas existia esse argumento de que a criatividade seria expandida, formaria sujeitos mais ativos, mais engajados no mundo”, comenta Bosi.

Poesia e inquietude

Na década de 1960, no entanto, o poeta muda radicalmente de estilo. Era um momento de grande agitação popular, tanto no Brasil quanto no resto do mundo. Os grandes comícios do então presidente João Goulart sobre as Reformas de Base, as Ligas Camponesas no nordeste são exemplos das inquietações da sociedade da época.

Neste contexto, Gullar passa a escrever cordéis, uma forma reconhecidamente popular de literatura, para poder se comunicar com o maior número de pessoas possível. Para muitos críticos, tal mudança seria uma espécie de traição do seu estilo experimental e, portanto, de sua poesia pregressa. A professora da FFLCH, no entanto, tem uma opinião diferente. “De fato, ele renega o experimental, porque agora ele quer fazer uma poesia que todos entendam. Mas não acho que ele renegue uma preocupação que ele sempre teve, de uma poesia que transformasse o mundo. Ele imagina que, naquele momento, a poesia poderia ter esse papel. De uma certa maneira, também no Manifesto Neoconcreto, e em outros textos dele, há essa inquietação.”

Em Ferreira Gullar: o Fogo Procura sua Forma, há a análise de que a poética de Gullar reflete as inquietações do autor quanto aos limites da palavra e sua influência na realidade. “Ele imagina que a poesia poderia ser um objeto diferente dos outros objetos do mundo. Porque haveria uma certa instabilidade, como é o caso de Os Bichos, da Lygia Clark, algo que pode ser manuseado pelo espectador, ou pelo leitor, nasce dessa interação, não existe a priori, de uma maneira petrificada.”

Bicho de Bolso, Lygia Clark, 1966, alumínio. Foto: Creative Commons

O ensaio destaca a recorrência da imagem do fogo nos escritos de Gullar. Objeto este que por ser amorfo e fugaz, emanar luz e calor, é associado ao tempo e ao lugar do sujeito no mundo. “A ideia de que existe um tempo urgente e iminente, ele aproxima com a figura do fogo. E tanto isso está ligado à vida quanto, estranhíssimo, à morte”, comenta Viviana Bosi. “É como se ele sempre, na poesia dele, buscasse a iminência desse momento pleno, que pode ser muito vital, como naquele poema sobre as frutas, as frutas tem um fogo interno, como se as coisas estivessem, por dentro, iluminadas, isso é a plenitude da vida delas.”

O Vil Metal – Gullar, 1960

“É como se o Gullar estivesse procurando representar esse tempo presente pleno. E como se ele estivesse tentando apanhar esse tempo, como se fosse um momento supremo”, complementa a professora. “Tem um poema chamado Arte Poética, que é dos anos 1980, em que ele diz que gostaria de acender a cidade com seu poema, como se o poema fosse um jasmim, que com seu perfume pudesse iluminar a cidade. Essa ideia de que o poema pudesse trazer ao mundo essa combustão, essa iluminação, acho que isso aparece muito e de muitas maneiras na poesia dele.”

(Na Vertigem do Dia – Gullar, 1980)

A desconfiança das palavras

O ensaio da professora Bosi destaca a angústia de Gullar sobre a fronteira entre as palavras e a realidade, entre a poesia e o mundo. “No livro Em Alguma Parte Alguma, Gullar se pergunta muito se a poesia pode se encarnar em alguma coisa da vida ou é só um barulho, um alarido, que fica fora da luz do dia”, lembra Viviana. “Ele sempre quer trazer a poesia para o mundo. E então, ele diz, deve existir, justamente, um tipo de corola de flor, feita em chamas, que é esse lugar secreto onde está a poesia. Como se fosse um incêndio. É uma poesia sempre um pouco convulsa, que está sempre se auto-destruindo, se reconstituindo.”

Diante a insuficiência das palavras, o poeta se vê em um paradoxo trágico. “Tem um poema, que acho muito triste, em que o eu-lírico visita o túmulo do filho, chama-se Visita. Ele escreve um bilhete ‘eu te amo, filho’ e coloca em cima do túmulo. Mas ele sai soluçando, porque sabe que o bilhetinho não vai nunca chegar. Ele coloca uma flor em cima do túmulo, mas ele sabe que a flor é efêmera também. Percebe-se que há algo de trágico, porque é como se aquelas palavras não pudessem fazer alguma coisa muito amada viver e houvesse uma parede que as impedissem de chegar de fato, ao outro”, reflete a professora.

Muitas vozes – Gullar, 1999

Essa angústia, no entanto, dá suas tréguas. “Em alguns outros momentos ele acha que quando se cria alguma coisa, ela começa a fazer parte do mundo. Em um outro poema ele fala que a pera pintada não é uma pera de comer, obviamente, mas ela tem uma beleza, ela guarda um mistério, ela também tem uma chama própria. Então, aquilo que se escreve, pinta ou esculpe, também teria uma presença.”

Insatisfeito até o final

Ferreira Gullar faleceu no início de 2017, de pneumonia. Ocupou a cadeira número 37 da Academia Brasileira de Letras entre 2014 e sua morte e chegou a ser indicado para o prêmio Nobel de Literatura em 2002. Quando indagada sobre o espírito inquieto do poeta, a professora Viviana Bosi comenta: “Ele não fica quieto, até o último livro ele está sempre buscando de uma forma muito urgente as coisas, tentando compreender.”

A pesquisadora ainda lembra que quando Gullar fala da infância em São Luís, ele recordava das tábuas do chão e de como ele imaginava que haveriam, abaixo delas, bichos, ratos, formigas, baratas, vivendo sob a família que come à mesa, sob os aviões passando, sob o céu de estrelas. “Isso é bem interessante no Gullar, pensado no tempo, porque ele imagina vários tempos simultâneos, em ritmos diferentes, no mesmo lugar. Isso acontece muito no Poema Sujo, que tem um cosmos enorme, vários mundos ocorrendo ao mesmo tempo. Uma gaveta cheia de talheres velhos e um Boeing atravessando o céu.”

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