Em julho de 2012, o jornal Estado de S. Paulo publica uma reportagem sobre a abertura de uma clínica particular de baixo custo na comunidade de Heliópolis, por médicos do Hospital Sírio Libanês e Albert Einstein, que operaria com foco no empreendimento social, mas com lucro. As consultas eram oferecidas a preços populares, entre R$ 40 e R$ 60; cartões de convênio ou do SUS não eram aceitos. E as especialidades oferecidas eram justamente aquelas em que o sistema público apresentava maiores problemas: a saúde da mulher e do idoso, exames de imagem e pequenas cirurgias. Seu criador, o administrador Thomaz Srougi, partia da insatisfação popular com o Sistema Único de Saúde para vender seu produto: “Quem disse que essa população não pode ir ao médico particular?”. Da pequena clínica aberta com próprio capital, nasce o Dr. Consulta – atual referência de clínica popular, crescendo a cada ano, apoiada no tripé formado por marketing forte, baixo custo de serviço, e tecnologia da informação.
Neste período, pesquisas já começavam a indicar uma grande entrada de profissionais da medicina e direito nas periferias mais consolidadas de São Paulo, principalmente na região metropolitana. É nesta conjuntura que o sociólogo Ricardo Lima Jurca, ao ter acesso à matéria do Estadão, decide estudar mais a fundo o processo que tomava forma no mercado da saúde em São Paulo. Em sua tese de doutorado em ciências, Individualização social, assistência médica privada e consumo na periferia de São Paulo, defendida em abril pela Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, Jurca descreve o que chama de “quarteirização” do mercado: o surgimento de uma quarta via entre o SUS, os planos de saúde tradicionais e as organizações sociais.
Sobre o Dr. Consulta e empreendimentos similares, o pesquisador afirma: “Eu o escolho como objeto de estudo porque é uma expressão de um fenômeno de uma pluralidade de atores que estão aparecendo no mercado de serviços de saúde, que antes não tinham tanta força quanto têm hoje”.
Jurca conta que, com este fenômeno, concepções anteriores sobre o mercado da saúde entram em colapso. “A ideia que nós temos na faculdade de que os 75% da população que não têm plano de saúde utilizam apenas o SUS cai por terra, porque sempre a população arranja uma maneira de correr atrás por si própria”, afirma. “É um processo que está acontecendo e que temos que entender para onde vai. Porque os conceitos que usamos não estão mais servindo para compreender qual é o fenômeno dessas periferias.”
A “individualização social”
Para entender como estas clínicas surgem e crescem diante de uma comunidade, Jurca realizou uma pesquisa etnográfica em uma clínica popular em Heliópolis, a Dr. Alegria. Trata-se de uma experiência sociológica com base na pesquisa de campo, conduzida no local, onde pessoas convivem e socializam – no caso, as ruas da comunidade, as salas de espera de postos de saúde e da clínica Dr. Alegria, entre outros ambientes – e na coleta de informações do próprio grupo estudado. Ao posicionar-se no balcão de recepção da clínica, o pesquisador é capaz de ouvir das conversas cotidianas a maneira com que esta nova forma de atendimento médico cresce no imaginário popular, ganha confiança e adesão.
A partir desta pesquisa, o sociólogo descreve um processo de “individualização” em curso na periferia. “O processo de individualização mais conhecido pela sociologia é a institucionalizada, em que há uma transferência de responsabilidade para o indivíduo. A pessoa demanda um serviço do posto de saúde, que não consegue arcar com a demanda, e a devolve para o público, que ‘se vira’ das mais diversas formas”, explica. No entanto, o que estava ocorrendo em Heliópolis ia além das instituições.
“O processo que comecei a enxergar é diferente daquele que sociólogos falam; havia uma individualização muito mais relacionada com o social, em Heliópolis.” A comunidade, construída nos anos 70 a partir de um movimento social de luta por direitos, estava se individualizando cada vez mais. Jurca, através de conversas com dirigentes sociais de associações de bairro na favela – a UNAS, principal e mais institucionalizada, bem como as associações independentes -, percebe que “há um distanciamento muito grande da comunidade de Heliópolis com as associações. É um processo de desenvolvimento político; estas cada vez mais se institucionalizaram, criando relações muito mais fortes com os governos do estado e federal, do que com o povo”.
Neste ínterim, o doutor percebe um afastamento não apenas do coletivo, mas da luta social. “Quando, por exemplo, as pessoas estão na fila e não conseguem um tratamento horizontal dos profissionais do posto de saúde, elas logo descartam aquele atendimento; não passa por eles a ideia de que aquilo é um direito social dela, pelo qual ela deve lutar. A discussão toma outro viés, que é o da urgência; a pessoa necessita do tratamento, e aquilo não envolve seus direitos”, descreve. “A busca que ela faz nessas clínicas populares passa a ser uma atitude individualizada, mais voltada para o consumo do que o direito social”.
Direitos à venda
O crescimento das clínicas populares poderia ainda estar relacionado a outro fenômeno em curso: a expansão do comércio na periferia. Uma explosão do comércio nas comunidades da região metropolitana de São Paulo nas últimas décadas desencadeou uma transformação na relação dos moradores com o dinheiro e o consumo. “A ideia de consumo para eles [os moradores] é legítima, inclusive de empoderamento e ascensão social”, conta o pesquisador.
Portanto, diante das dificuldades apresentadas pelo SUS em oferecer atendimento de qualidade, com reduzido tempo de espera e horizontalidade entre pacientes e funcionários, somados à baixa acessibilidade dos planos de saúde tradicionais, a população se depara com a oportunidade de conseguir o serviço necessário por custo reduzido, em um modelo personalizado. Neste contexto, o apelo das clínicas populares é compreensível.
No entanto, o que Jurca interpreta é um esvaziamento político dos direitos sociais, neste meio. Quando alguém decide por buscar individualmente seu acesso à saúde, acabando por consumi-lo como mercadoria, a perspectiva de luta coletiva por acesso a este direito é diminuída, ofuscada pela necessidade e a praticidade da ação individual.
O sociólogo ainda relaciona este fenômeno ao crescente “empreendedorismo de si”; um discurso que incentiva o fortalecimento das capacidades individuais do cidadão, para que possam enfrentar sozinhos suas próprias adversidades e superar contextos de crise socioeconômica. “A sociedade te imputa a conseguir [acesso] individualmente, cada um por si. E isso está vindo para a saúde com uma força muito grande. E, com a ideia do ‘empreendedorismo de si’ cada vez mais forte, se tem uma despolitização muito grande”.
O Estado em inflexão
As dificuldades da Agência Nacional de Saúde em regular as atividades de planos de saúde são notórias. Com este novo modelo de clínica particular, que atua por diferentes parâmetros, utilizando-se de diversas estratégias de marketing, de controle de clientes e prática médica, a ANS demonstra ineficiência ainda maior.
Um exemplo está no serviço de tecnologia de informação adotado pela clínica Dr. Consulta, que consiste no arquivamento de prontuários eletrônicos do paciente. O uso destes prontuários não é regulado em forma alguma pela agência; e, justamente por isso, é tão interessante para a empresa. “Se pode utilizar essa fonte como devolutiva para financiamentos do exterior”, conta Jurca, se referindo às parcerias de financiamento que Dr. Consulta mantém no exterior. As clínicas são atualmente mantidas exclusivamente sob capital externo. “Há uma facilidade em utilizar estes dados, para ver o que os usuários que frequentam estas clínicas mais precisam. Ele [Dr. Consulta] vai ter previamente estes dados para, possivelmente, mudar seu rol de tratamento”.
A regulação acaba sendo feita, de maneira indireta, pelo próprio usuário, que traça seu próprio caminho entre os serviços público e privado. “Estas clínicas tem vínculo com hospitais de referência, não só da cidade, mas do estado de São Paulo, que oferecem uma legitimidade para o usuário optar por uma consulta, e confiar [na clínica]. O usuário frequenta o sistema público, mas precisa dar continuidade ao tratamento, então vai para essa clínica para conseguir uma cirurgia, um exame ou consulta. E, então, retorna ao público para continuar o tratamento”, explica o doutor.
Muito além de uma pequena clínica com preços baratos, estamos vivendo uma verdadeira revolução no sistema de saúde. “É um processo construído pela sociedade, para além do âmbito econômico e político”, diz Jurca. “É um processo social de relação entre as pessoas, que também atinge a saúde, no dia a dia”.
Ele enfatiza: “É uma coisa que precisa ser melhor vista, para entender as deficiências do sistema universal de saúde, para que ele continue funcionando na sociedade brasileira”.
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