Em 2011, após uma percepção por parte do Conselho de Segurança da ONU de que o então ditador líbio Muammar Kadafi cometeria sistemáticas violações de direitos humanos contra a população de seu país para manter-se no poder, foi aprovada a Resolução 1973, que permitiu aos Estados-membros tomar “todas as medidas necessárias” para proteger a população civil. Tal decisão da ONU foi fortemente influenciada por um pedido da Liga dos Estados Árabes e do Conselho de Cooperação do Golfo para que se criasse uma zona de exclusão aérea.
No entanto, em um dado momento, a Resolução foi violada em nome de interesses não mais propriamente humanitários, mas predominantemente geopolíticos. Entender principalmente em que momento houve essa violação e quais eram esses interesses, além de outros tópicos relacionados, foi tema de dissertação de mestrado de Bruno Camponês do Brasil no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI/USP).
A Guerra Civil na Líbia começou como oposição ao regime ditatorial e opressivo de Muammar Kadafi em um contexto de Primavera árabe, período em que houve uma onda de protestos populares contra regimes no Oriente Médio e no Norte da África. O pesquisador contextualiza: “Kadafi ficou mais de 40 anos no poder. Essa revolta em 2011 não foi a primeira. Na década de 90, houve um movimento fortíssimo para derrubá-lo. Não coincidentemente, foi na mesma região onde eclodiu a revolta de 2011. Na década de 70, os companheiros de revolução dele — em 69, Kadafi chegou ao poder ao depor a monarquia — tentaram derrubá-lo. Então, o que rolou em 2011 não foi algo necessariamente novo. Mas a diferença é que, em 2011, foi um processo que afetou a região como um todo. Antes de Kadafi, já tinham caído dois regimes ditatoriais considerados ‘sólidos’ e próximos politicamente da Europa e dos EUA. ”
Diferente de outras intervenções internacionais, como a do Iraque, em 2003, e a da Síria, que já acontece desde pelo menos 2012 — quando Estados Unidos, Reino Unido e França formaram uma coalizão para lançar mísseis ao país diante do suposto ataque químico de Bashar al-Assad contra a população —, a intervenção na Líbia foi aprovada pela maioria dos países do Conselho de Segurança da ONU, sendo, portanto, considerada legal do ponto de vista do direito internacional. Houve apenas abstenções: Rússia, China, Alemanha, Brasil e Índia.
Para entender em que momento houve a violação, Berrettini aceitou que Kadafi ia, de fato, cometer massacres contra a população civil caso continuasse no poder. Posteriormente, inclusive, um relatório do Parlamento britânico concluiu ter-se tratado de uma percepção um tanto exagerada a respeito do que acontecia in loco. Ele explica que mesmo após a morte de Kadafi, ainda havia um discurso triunfalista — porém, começou a perceber a existência de outra narrativa: a de que o mandato da ONU fora excedido quando os Estados-membros partiram para a empreitada da derrubada de Kadafi e de mudança de regime.
Bruno analisa, em sua dissertação, que a intervenção foi legal enquanto manteve apenas o que a resolução permitia: as ações contra ofensivas de tropas leais de Kadafi que estivessem efetivamente atacando a população civil, ou ao menos a ameaçando, e a manutenção de uma Zona de Exclusão Aérea pela OTAN, na qual poderiam circular apenas aeronaves autorizadas e era neutralizada a defesa aérea do ditador.
O pesquisador diz que, a partir do momento em que os principais países intervencionistas — como Estados Unidos, Reino Unido e França — passaram a objetivar a queda do regime de kadafi, com a ajuda de aliados regionais, houve violações da Resolução 1973. “Após essas operações iniciais que estavam de acordo com a resolução, esses países — principalmente quando passaram o comando das operações para a OTAN —, ao invés de tentar negociar com Kadafi, foram além do mandato e partiram para uma derrubada de Kadafi”. Para tal, ele explica que esses países, em conjunto com aliados regionais como Catar, Emirados Árabes Unidos, Turquia e Sudão, forneceram armas às oposições contra Kadafi e coordenaram-se com rebeldes, estando in loco e coordenando bombardeios aéreos.
O pesquisador explica que o argumento então utilizado era o de que, enquanto o ditador estivesse no poder, a população estaria constantemente sob ameaça. Tal interpretação, ele diz, pode até ser aceitável — mas independente do mérito da questão, a resolução não permitia a ação. “É uma interpretação muito exagerada”, diz.
Como a intervenção na Líbia se relaciona com a da Síria
Bruno ressalta em entrevista à AUN que, para entender a atual intervenção na Síria, é imprescindível considerar o episódio da Líbia. O motivo: a Rússia e a China estariam vetando intervenções hoje por considerarem que essa, do passado, foi falha, e que teriam se sentido enganadas porque discordaram da interpretação de que a mudança de regime estaria autorizada pela Resolução 1973. Ele explica que a permitiram (ao não usarem o poder de veto) em um momento em que tentaram uma reaproximação entre Rússia e Estados Unidos.
Hoje, a crise diplomática deve-se principalmente a questões como a suposta intervenção russa nas eleições americanas de 2016 (o Russiagate); o suporte que Putin dá ao ditador sírio Bashar al-Assad e o recente episódio do ex-espião russo Serguei Skripal envenenado em solo britânico, cuja autoria foi atribuída à Rússia por parte de muitos países. “O cálculo político do então presidente russo Dmitri Medvedev na época foi, portanto, de tentar fazer um contraponto a essa resistência com o Ocidente, de tentar dar um voto de confiança aos Estados Unidos. Então, qual foi o cálculo russo do Medvedev? Fazer um contraponto a essa resistência do ocidente contra a Rússia”, conclui.
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