De acordo com o último censo brasileiro realizado pelo IBGE (2010), cerca de 29,9 milhões de pessoas residem em áreas rurais no Brasil, o que configura, aproximadamente, 8,1 milhões de domicílios. No meio rural, não há rede coletora de esgotos como nas áreas urbanas, e muitas famílias costumam recorrer a alternativas inadequadas para o tratamento, como – entre outras – o uso de fossas rudimentares, o que totaliza cerca de 57% de famílias vivendo nessa situação. Esse cenário levou a pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP Michelle de Fátima Ramos a estudar, em sua dissertação de mestrado, o uso de tecnologias alternativas conhecidas como “tecnologias sociais” como facilitadoras para o tratamento de esgoto em áreas rurais. A pesquisa foi orientada orientada pelo professor Arlindo Philippi Junior e financiada pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).
Definidas pelo Instituto de Tecnologia Social como “um conjunto de técnicas e metodologias transformadoras, desenvolvidas e/ou aplicadas na interação com a população e apropriadas por ela, que representam soluções para inclusão social e melhoria das condições de vida”, as tecnologias sociais consistem em alternativas criadas para solucionar algum tipo de problema social e que atendam aos quesitos de simplicidade, baixo custo e fácil aplicabilidade.
Dentre as diversas tecnologias usadas para o tratamento de esgoto, a escolhida pela pesquisadora em seu estudo foi a fossa séptica biodigestora, utilizada para o tratamento de águas negras (derivadas de vasos sanitários), e desenvolvida pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária). Uma de suas principais características é a autonomia, pois o ideal é que a população seja muito bem orientada para que cada família fique responsável pela instalação e manutenção dos equipamentos em sua casa. “A ideia é trazer a população para dentro dessa dinâmica, fazer com que ela internalize essas tecnologias”, afirma Michelle. Em seu estudo, ela analisou a aplicação das fossas por meio de uma ONG local nos bairros Afonsos e Cantagalo, em Pouso Alegre, Minas Gerais.
Sistema seguro e vantajoso
O sistema é individual (cada família possui o seu) e é formado por três caixas, que são colocadas no solo e conectadas à casa por meio do sistema de canos. Um tubo é instalado no vaso sanitário e conectado à primeira caixa. Nesse tubo, é adicionado estrume de vaca diluído com água, que, através de um pequeno desnivelamento, cai na primeira caixa. O objetivo é que as bactérias se proliferem e, através das reações químicas que ocorrem, aumentem a temperatura, eliminando os patógenos dentro do tratamento. As duas primeiras caixas são hermeticamente fechadas, possuindo apenas um respiro para a saída do metano que é gerado com o tratamento do esgoto. O sistema degrada tudo que é sólido e, na terceira caixa, os resíduos saem de forma líquida.
Além de possibilitar um tratamento seguro, de custo relativamente baixo, e que não causa impactos ambientais (diferente das fossas rudimentares, que são utilizadas em grande parte das áreas rurais), a fossa séptica biodigestora possui outras vantagens observadas por Michelle: “É possível utilizar o resíduo que sai da última caixa para fertilizar alguns tipos de cultura, como bananeira, pé de mexerica e laranja. Estudos verificaram que isso é seguro, porque mesmo os patógenos que sobrevivem ficam na folha e não chegam ao fruto.” Ela aponta que isso pode ser lucrativo para o agricultor, que, ao usar os resíduos como biofertilizantes, acaba economizando com o uso de fertilizantes químicos. Além disso, de acordo com a pesquisadora, o sistema também pode servir como uma fonte de renda. “A partir do momento que se aprende a aplicar essas fossas, é possível fazer a instalação em outras residências. O ideal é o sistema de mutirão, mas há a opção de se contratar uma pessoa que esteja habilitada para colocar na sua casa”, aponta.
Contudo, em sua análise nos dois bairros do município Pouso Alegre, onde as fossas foram instaladas, a autora da pesquisa observou alguns entraves que dificultaram o sucesso das tecnologias na região e que precisam ser melhor estudados antes da aplicação em outras áreas. Ela verificou problemas com a manutenção da fossa devido à falta de uma instrução mais eficaz da população, o que afetou a característica da autonomia. “Eles não entenderam direito o processo. Faltou monitoramento, um acompanhamento mais preciso. Seria necessária uma capacitação mais efetiva, não apenas através de palestras, mas com metodologias que fizessem a população participar mais do processo.”
Ela também explica que, antes da aplicação, deve ser feito um estudo local visando descobrir qual tecnologia se aplica melhor à região, e isso sempre consultando e envolvendo a população. “É preciso mostrar que existem outras tecnologias. Explicar qual está sendo mais difundida, mas também mostrar as outras opções. É uma escolha coletiva.” A pesquisadora ainda observa que, nos casos estudados, não houve grande participação do governo local, o que, para ela, é indispensável para fazer o projeto dar certo. “Acho o subsídio do poder público essencial, viver somente de doações e parcerias pode impossibilitar a ampliação. É a função do município fazer isso.”
Faça um comentário