Arquitetos e urbanistas devem conduzir projetos de mobilidade

É preciso que a infraestrutura de mobilidade urbana se articule ao espaço das cidades. Doutorado da FAU analisou cerca de 270 projetos, nem sempre alinhados a esse fim

Na foto, desenho de estação elevada da linha Norte-Sul do Metrô. As estações são exemplos de infraestrutura de mobilidade, analisadas pela pesquisa. (Foto: Divulgação/Metrô de São Paulo)

Por Mariana Gonçalves – mariana.vick.goncalves@gmail.com

Na medida em que a mobilidade influencia o espaço urbano, as infraestruturas ligadas ao deslocamento devem ser planejadas por arquitetos e urbanistas, afirma o recém-doutor Pablo Hereñú. Sua tese Arquitetura da mobilidade e espaço urbano, defendida em 2016 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), reúne aproximadamente 270 projetos, localizados em 95 cidades diferentes, e constata que seus impactos sobre o entorno estão ligados à abrangência de visão dos planejadores, que podem considerar o espaço em volta das obras ou não.

“Uma das principais características da arquitetura e do urbanismo é a capacidade de articular esse olhar abrangente, agregando outras formas de conhecimento, com uma visão geral”, diz Hereñú, justificando a tese. É evidente, ele também fala, que não só arquitetos e urbanistas podem ter esse olhar articulador. Mas a produção de infraestruturas de mobilidade, geralmente conduzida por engenheiros, convoca quase sempre a arquitetura como disciplina acessória, ignorando seu saber urbanístico — “como se fosse para escolher a luminária que vai ser instalada numa via expressa”, Hereñú ressalta. Os arquitetos e urbanistas, em contrapartida, tampouco convocam a si mesmos. Por essa razão, o título da pesquisa, falando em “arquitetura da mobilidade”, tem justamente a intenção de mostrar como esses profissionais podem contribuir para o planejamento da locomoção urbana, agregando os diversos aspectos que conhecem sobre a cidade.

Com enfoque específico na relação entre infraestrutura e espaço urbano, a coleção de projetos de Hereñú foi se construindo intuitivamente, todos analisados a partir dos efeitos sobre o local onde se instalaram. Sem recorte temporal ou geográfico específico, além de recheado de imagens, o trabalho pretende tornar-se algo como um inventário de projetos, uma matriz a partir da qual pesquisadores e profissionais da área podem partir e pensar em possibilidades para as questões que enfrentam as cidades de hoje.

Arquitetura da mobilidade

A princípio, parece não haver nada que tenha escapado à tese: dividida em cinco capítulos, a pesquisa aborda automóveis, infraestruturas metropolitanas de transporte público, infraestruturas em escala local e elementos que Hereñú chama de novas peças urbanas. A apresentação do trabalho contém a contextualização do tema, que expõe teorias e conceitos centrais de mobilidade urbana, e os objetos de estudo do arquiteto envolvem desde vias expressas, viadutos e terminais até edifícios-garagem, elevadores e estações. “Não existem projetos de um tipo novo, que não estão aqui, que levariam a uma outra questão”, diz Hereñú.

A princípio, o arquiteto pretende esclarecer como os modos de locomoção e as ferramentas de mobilidade repercutem no espaço urbano, contextualizando os conceitos de cidade do pedestre, das águas, dos trilhos e dos automóveis. “Dependendo do contexto histórico ou econômico, as cidades onde o andar a pé é a principal forma de circulação têm estruturas urbanas muito similares”, diz. O mesmo ocorre em relação aos automóveis: cidades como São Paulo e Los Angeles, estruturadas para o carro, apresentam diversas semelhanças. “É claro que essa separação é discursiva, para fins de entendimento”, ele ressalta. “No fundo, os espaços urbanos mais interessantes são os que mesclam todas essas infraestruturas.”

São Paulo conta com uma série de infraestruturas para a circulação de automóveis. Nos últimos anos, no entanto, a cidade começou a pensar em modos alternativos de mobilidade. (Foto: Oswaldo Corneti/Fotos Públicas)

A separação dos capítulos entre automóveis e infraestruturas metropolitanas de transporte público, para o arquiteto, foi clara. “Esses dois modos têm lógicas muito diferentes na sua concepção”, ele diz. Isso porque o automóvel, na sua gênese, não era considerado um dispositivo urbano de mobilidade, e sua relação com a cidade existente — com ressalvas nos dias de hoje — foi sempre marcada pelo conflito. “O automóvel foi concebido como um modo de deslocamento suburbano. Na hora em que ele entrou na cidade, acabou causando problemas”, afirma o arquiteto.

Já as novas peças urbanas, às quais se dedica o capítulo seguinte, constituem novos “pedaços de cidade” em relação ao que já estava posto, dividindo-se em eixos e nós. São transformadoras de todo o seu entorno, produzindo diferentes espaços a partir de si mesmas. Um exemplo de projeto bem sucedido, para Hereñú, é a Rodoviária do Plano Piloto de Brasília, inaugurada em 1960. No seu entorno, ele diz, foram instalados centros comerciais e equipamentos culturais. “Aquele nó de mobilidade é pensado como um pedaço de cidade, tendo um desenho específico. Você consegue destacar aquilo do seu entorno imediato”, afirma.

Em todas as experiências, Hereñú diz ter procurado articular projetos identificando questões comuns e diferenças de abordagem. Seu objetivo, no entanto, não é apresentar regras prontas. “A replicação de receitas na arquitetura, em geral, é sempre desastrosa”, diz. “Nesse sentido, procurei levantar mais questões em vez de apontar soluções, e documentar bastante os projetos, para que outros também possam tirar suas próprias conclusões, independente dos comentários que fiz.”

Em São Paulo

A motivação de Hereñú para o início da tese veio da própria capital paulista. “São Paulo apresenta uma carência grande de projetos de infraestrutura de mobilidade pensados como projetos urbanos”, afirma, ressaltando a deterioração que muitos deles costumam provocar no espaço da cidade. Um exemplo emblemático é o Minhocão, o Elevado Presidente João Goulart, via expressa que liga a região da Praça Roosevelt, no centro da cidade, a Perdizes, na zona oeste. Pensado exclusivamente do ponto de vista do tráfego de automóveis, o elevado “cortou” a cidade ao meio e produziu danos imensos à paisagem urbana, com suas pistas passando a menos de cinco metros de distância dos prédios de apartamentos mais próximos.

Num caso como esse, Hereñú aponta o tema de seu quinto capítulo — as ações ligadas à infraestrutura já estabelecida. Atualmente, embora o automóvel venha perdendo protagonismo, não é possível, em pouco tempo, reconfigurar todos os projetos construídos para seu uso, sobretudo numa cidade que conta com cinco milhões de carros em circulação. “É preciso intervir nisso como um patrimônio, um legado”, diz ele. “Desse modo, a rua, que era de domínio quase exclusivo dos carros, passa por uma diversificação funcional” — a exemplo da Avenida Paulista ou do próprio Minhocão, que interrompe a circulação para automóveis à noite e nos fins de semana. O arquiteto também cita alterações físicas pontuais, como a ampliação de calçadas e criação de ciclovias, e a “apropriação dos espaços residuais”, que dão utilidade a lugares como os baixos de viadutos.

Minhocão fechado para a circulação de carros. Ao lado, os prédios de apartamentos. (Foto: André Tambucci/Fotos Públicas)

“A implantação de uma via para o automóvel, eventualmente, pode melhorar, para outros modos e outros usos, o espaço urbano”, continua Hereñú. “Isso não é uma pré-condição desse tipo de infraestrutura. Os projetos que temos hoje são problemas porque não pensaram a vida que já estava instalada no entorno.” O arquiteto destaca a construção de infraestruturas bem-sucedidas na cidade, como a Estação Conceição do Metrô, à qual foi associado um empreendimento comercial para escritórios e serviços.

Para Hereñú, São Paulo oferece um cardápio de experiências mal sucedidas, mas ainda demanda muito. Daí está a importância da tese. “Vai ter que se construir muita infraestrutura de mobilidade para que a cidade possa melhorar”, ele afirma. “Isso depende de uma crítica a como os projetos têm sido feitos e da criação de novas formas de fazer. É emergente que se discuta isso e se criem novos parâmetros, para evitar os desastres e aproveitar as oportunidades.”

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