Baixa presença feminina em cursos de formação tecnológica é realidade

Dados obtidos via pedido da Lei de Acesso à Informação apresentam panorama de presença feminina minoritária em cursos de computação da USP

[Crédito: Produção/Isabella Marin]

Os estudos sobre a presença feminina em diferentes ambientes sociais fomentam muitas iniciativas em prol da igualdade de representatividade de gêneros em áreas de estudo, trabalho e convivência. Entretanto, o que acontece quando o problema se esconde dentro de um curso, como a Ciência da Computação, dentro de uma universidade imensa como a Universidade de São Paulo (USP)? 

Uma pesquisa elaborada pela graduanda em Sistemas de Informação pela Escola de Artes, Comunicações e Humanidades da USP (EACH-USP), Juliana Trevine, de 25 anos, consegue responder essa questão. Ela fez uma solicitação, através da Lei de Acesso à Informação, pedindo todos os dados dos alunos e seus respectivos gêneros em cursos que envolviam a tecnologia como fator principal, de alguma forma, presentes nos campus da universidade.

Os resultados foram publicados na página do Tecs, grupo de extensão universitária que trata sobre o impacto social da tecnologia, no qual Trevine integra como membra. Ao explorar os dados, a estudante, que também integra o Co:lab-USP e é embaixadora de inovação cívica da Open Knowledge Brasil, buscou analisar somente aqueles cursos que são da área de Computação, de acordo com a Sociedade Brasileira de Computação (SBC). São eles: Ciências da Computação (BCC), Engenharia de Computação (BEC) e Sistemas de Informação (BSI).

A análise desses dados surpreendeu a pesquisadora. A presença feminina em tais cursos é perceptivelmente minoritária em comparação com a participação de estudantes homens. Para Juliana Trevine, um dos principais pontos que preocupa foi a constatação da existência de turmas de um curso de Computação sem meninas. Essas ocorrências aconteceram nos anos de 2000 e 2009 no curso de Bacharelado em Engenharia da Computação da Escola Politécnica (POLI) e, em 2001, no curso de Bacharelado em Ciência da Computação do Instituto de Ciências Matemáticas e da Computação (ICMC). “Foram três momentos na história da USP, nos últimos vinte anos, que as turmas não tinham nenhuma mulher. Eu tinha noção que as porcentagens eram baixas, mas ali era um caso de ausência das mulheres”, revela Trevine. 

Dados de 2000 a 2010 do número de alunos em cursos de Ciência e Engenharia da Computação e Sistema de Informação, separados por gênero, ano e unidade. [Crédito: Reprodução/Isabella Marin]
Dados de 2011 a 2020 do número de alunos em cursos de Ciência e Engenharia da Computação e Sistema de Informação, separados por gênero, ano e unidade. [Crédito: Reprodução/Isabella Marin]
A outra razão para preocupação, segundo Trevine, é o crescimento das vagas nos cursos e seu preenchimento desigual. Em 2003 e 2005, houve um grande declínio da presença de homens nestas áreas, com 255 e 421 alunos no total, respectivamente. As mulheres, no entanto, totalizavam apenas 26 e 40 estudantes na época. É evidente o aumento de vagas ofertadas para os cursos. Entretanto, a quantidade de alunas não acompanha estes números. 

“Enquanto os homens passavam para 400 alunos, as mulheres só subiam vinte unidades. Eu queria deixar bem claro esse abismo que ficou. Isso acarretou um aprofundamento da desigualdade de gênero, né? Porque as mulheres não preencheram essas vagas novas”, relata Trevine sobre as quantidades encontradas em sua análise. 

Presença das mulheres em cursos de Computação, de 2000 a 2020. Gráfico elaborado a partir dos dados obtidos via LAI requisitados por Juliana Trevine. [Crédito: Reprodução/Isabella Marin]
No Instituto de Matemática e Estatística da USP, não é diferente. Os dados dos ingressantes de 2012 a 2021 também apresentam uma presença das mulheres inferior à dos homens. A pesquisa considera a quantidade de ingressantes e seus gêneros a partir de todos os cursos oferecidos pelo instituto. Os dados foram fornecidos pelo professor Carlos Eduardo Ferreira para a produção desta reportagem.

Gráfico de comparação entre a participação feminina e masculina em todos os cursos no Instituto de Matemática e Estatística da USP, o IME. [Crédito: Reprodução/Isabella Marin]

Possíveis razões para este cenário 

O cenário da presença feminina no IME e também em cursos de Computação em outros institutos da USP, como Trevine mostrou em seus dados, é preocupante e sinaliza um alarde. Mas nem sempre foi assim.

Em 1978, formavam-se Carmen, Elaine, Ingrid, Magali, Rosangela, Walkiria e outras oito mulheres em uma turma com 22 pessoas e apenas sete homens. Eliete Colucci foi uma dessas mulheres. Na época, década de 70, as pessoas só conseguiam entrar no curso de Ciência da Computação do IME por meio de transferência interna. Era necessário entrar em um curso de Matemática primeiro e, após um ano, ser aprovado em um exame para entrar em uma turma de 30 pessoas. 

Segundo ela, a presença de uma grande quantidade de mulheres na área estava interligada a uma concepção de que se tinha na época de que esse público poderia ser capacitado para lecionar. Não se sabia ainda o que era exatamente o curso de Computação, mas durante o primeiro ano do curso de Matemática, as pessoas começaram a ter uma noção que seria uma profissão com melhores salários. “Acabava que, no primeiro ano, a grande maioria queria fazer Computação devido ao forte indicador de uma carreira promissora. As vagas eram muito disputadas e precisava ter as melhores notas para conseguir uma vaga. Por isso, a convivência acabava por ser até mesmo um pouco competitiva”, relata Colucci.

“Meu pai, que foi um homem bem à frente, entendia o que representava [escolher computação]. Muitas pessoas falavam: ‘a Eliete vai ser professora de matemática’ e ele ria. Não que a profissão de professora não tenha mérito, muito pelo contrário, mas o pensamento era de que as mulheres, se fossem trabalhar, teriam que ser professoras”, relembra.

Diante da atual ausência feminina em espaços da Matemática e da Computação, Colucci comenta que, apesar de ter se formado em uma sala com muitas mulheres, a realidade no mercado de trabalho era diferente. A ex-aluna da turma de 1978 já presenciava naquele período muitos homens que se formavam em Engenharia e seguiam para a área de TI, visando melhores condições de vida. Em seus empregos, a grande maioria era composta por homens.  

Para Maria Isabel Gomes, formada em Ciência da Computação em 1979 (um ano após Eliete), a justificativa para a presença majoritária do gênero masculino neste meio ocorre devido ao aumento da divulgação desses cursos. Na sua visão, isso não acontecia antes, já que os rapazes que ingressavam na Computação eram aqueles que não conseguiam entrar em Engenharia ou não tinham contatos prévios na área. Segundo Gomes, esse fator, aliado à facilidade de acesso à tecnologia, começou a aguçar mais a curiosidade dos homens e ajudou a formar a área tão disputada que é hoje. 

Juliana Trevine acredita que há ainda outras variáveis que geraram a situação que vivenciamos atualmente. Além de concordar com Gomes de que a área é muito concorrida, um outro motivo teria contribuído para chegar a esse contexto. Com isso, a partir do momento que esse nicho começou a se tornar relevante, os homens foram mais incentivados a entrar nos cursos de Matemática e Computação. O prestígio da carreira passou a ser, então, valorizado e suas vagas foram sendo preenchidas por pessoas, historicamente, mais abastadas. “Quem tem mais poder na sociedade é mais incentivado a buscar essas carreiras de prestígio e poder. Logo, os homens preenchem mais esse espaço por serem as pessoas que têm mais privilégios”.

O gráfico feito para a reportagem do Jornal da USP sobre a diminuição das mulheres na área tecnológica apresenta esse panorama. A partir do material, é possível notar uma mudança na estatística de concluintes homens e mulheres entre os anos 1980 e 1990. 

Gráfico de comparação entre a participação feminina e masculina em todos os cursos no Instituto de Matemática e Estatística da USP, o IME. [Crédito: Reprodução/Isabella Marin]
A segunda razão principal levantada por Trevine é o próprio incentivo que as mulheres não recebem ao seu redor, como sua própria família, amigos e até a escola. “A gente está constantemente cercada de pessoas que dizem que o lugar da mulher não é ali, que é ficar no ambiente doméstico, é procurar cursos de humanas, porque ‘mulher não é muito lógica, é mais criativa’ ”. Este ambiente que cerca e limita as mulheres acaba por retroalimentar esse quadro. Como não existe incentivo, não há apoio para quebrar esse estereótipo que é criado. 

Estereótipo e representação 

A professora Christina Brech, doutora em Matemática pelo IME, fala a respeito do dilema de Tostines, que explica sobre os estereótipos que são formados e a importância da representação nesses espaços. 

Assim que começou a entrar mais na discussão sobre a presença das mulheres na Matemática, Brech sentiu falta de dados sobre o assunto e sua pesquisa resultou em um artigo que relaciona essa ausência com o conhecido dilema dos anos 801.  

O slogan de Tostines é um dilema que confunde causa e consequência. Por exemplo, se o estereótipo do curso de Matemática é de um espaço masculino e esse viés de gênero é transmitido inconscientemente, então quando uma mulher entra neste mesmo curso é obrigada a se esforçar para ser reconhecida. Essa caminhada pode ser hostil e gerar desistência durante o processo. “Nós temos que nos sentir pertencentes ao espaço que estamos e, se a gente não se sente, é mais difícil estar lá. Porém, quanto menos a gente está lá, mais difícil é se sentir parte e se apropriar daquele espaço”, explica Brech. 

Esses fatores que causam a ausência de mulheres na área fazem com que esse meio seja cada vez mais masculino. É um fenômeno que entra num ciclo vicioso e se retroalimenta, confundindo causa e consequência.  

A doutora em Matemática comenta ainda sobre outra situação recorrente nestes casos, chamada de “ameaça do estereótipo”. “Se você entra num lugar e o estereótipo é de que os meninos são melhores em matemática do que as meninas, você se sente ameaçada, fica mais nervosa e pode ir pior na prova. Assim, reforçando esse estereótipo”. Com isso, o próprio medo de confirmar o estereótipo faz com que a pessoa se sinta em risco ou gere um mau desempenho. 

Esse fenômeno pode ser visto também de outra forma. “Se você entrar numa sala de aula, por exemplo, que só tem meninos, você sente que é diferente, você sabe que você é diferente ali. E eles também sabem disso”, explica Brech.

A própria professora teve uma experiência significativa de como é se sentir assim. Graduada em Matemática, em 2001, Brech era a única mulher de sua sala. Desde 2018 é professora no instituto como livre-docente, mas já ouviu pessoas que a conheciam por se destacar como a única mulher em uma turma de matemática. “Você tem um destaque que você não quer e isso tem um efeito psicológico sobre você que reforça dificuldades que já estão colocadas”, declara ela sobre a situação.

“É mais fácil pedir perdão do que permissão”

Não somente na área acadêmica, sejam como alunas ou professoras, as mulheres estão suscetíveis a experimentarem determinadas situações, onde precisam reforçar sua presença. 

A frase é da célebre Grace Hopper, considerada a mãe da programação de computadores que criou a linguagem COBOL (Common Business Oriented Language), que permite uma codificação mais aproximada da linguagem humana para sistemas de processamento de banco de dados comerciais. Além de proporcionar grandes avanços para a computação, ela também participou da luta das mulheres na área. Sua fala pode ser utilizada para situar o mercado de trabalho da tecnologia. As imagens abaixo representam claramente a realidade de mulheres que vivem nesse meio.

Gráfico de comparação entre a participação feminina e masculina em todos os cursos no Instituto de Matemática e Estatística da USP, o IME. [Crédito: Reprodução/Isabella Marin]
Beatriz Sonzzini Ribeiro de Souza, de 29 anos, tem uma história parecida com aquelas mulheres no Twitter. Em 2011, entrou no IME para cursar o Bacharelado de Ciências da Computação. Em 2017, se formou em uma turma com 43 alunos, na qual havia somente seis meninas, contando com Beatriz. 

Ela relata que nas empresas que trabalhou com T.I, a maioria da equipe era composta por homens. “Já estive em projetos em que eu era a única mulher. Uma empresa que trabalhei fazia eventos para mulheres e incentivava sua contratação. Realmente, vi a diferença dessas ações. Como tem menos mulheres nessa área, é importante ter esse tipo de incentivo”, relatou a jovem. Hoje, Beatriz trabalha como desenvolvedora full stack — ou seja, um profissional que pode atuar em qualquer parte do desenvolvimento de um sistema — em uma empresa de soluções digitais em Portugal. 

No Brasil, existem alguns incentivos para que mulheres iniciem na área. Juliana Trevine comenta que o trabalho das comunidades femininas ajuda a manter a motivação e a continuar nesse caminho. PyLadies, RLadies, Hardware Ladies são alguns exemplos de diversas organizações de mulheres. Os grupos servem para, além da troca de experiências, estudo e aprendizado sobre diferentes tecnologias. 

“Apesar de que somos poucas, quando a gente forma um vínculo de grupos de mulheres de SI [Sistemas de Informação], do BCC [Bacharelado de Ciência da Computação], e vários outros, isso é muito bom”, comenta Trevine. Ainda assim, como estudante, a jovem conta que acaba se sentindo mal com certas situações que encontra no dia a dia. “Uma coisa bem comum entre as mulheres nesse ramo é de se sentirem um pouco impostoras. De duvidar, às vezes, se deveriam estar fazendo isso mesmo”, revela. 

A estudante de SI também relata que viver nessa situação e conhecer a presença minoritária das mulheres na área que escolheu cursar é um recorrente contraste de perspectivas. Em um momento que está motivada pelos coletivos e comunidades femininas que existem, e dos quais faz parte, a realidade cotidiana a desmotiva. “É uma questão de resistência. Eu sei que a presença feminina é minoritária e quero ser umas das pessoas que se graduam e abrem caminho para outras mulheres. Fazer parte da estatística e dizer ‘eu fui capaz e quero provar que o estereótipo que mulher não pode ser da área está errado’”, frisa.

Isso não acontece só no mercado de trabalho de tecnologia ou no percurso da graduação. A vida de uma docente mulher também coleciona desafios. A professora de Matemática, Christina Brech, relata alguns casos que já aconteceram com ela. Um deles é o próprio respeito de colegas da docência. As reuniões no ensino remoto até mesmo ajudaram a docente a não notar certas atitudes que aconteciam no presencial, como as interrupções, gestos e comentários durante uma fala. 

Segundo ela, são atitudes como essas que contribuem para a dificuldade de posicionamento feminino em tais espaços. Aliado a isso, o ambiente hostil e extremamente machista é outro fator que afasta as mulheres e o torna agressivo. “Quanto mais alto nos níveis de poder tem mais ausências e é mais difícil se posicionar. Não é só ausência. Tem ausência, tem silenciamento, tem invisibilização das mulheres. E mulheres menos privilegiadas mais ainda”, argumenta Brech. 

Presença feminina no IME

Colegiado, graduação, mercado de trabalho. Diante de todo esse panorama, quais são as perspectivas que encontramos para mudanças?

Os coletivos e as comunidades femininas, como Trevine mencionou, existem e estão lutando para transformações. As mulheres devem ocupar espaços e os projetos contribuem para o aceleramento da mudanças. 

O TECS, grupo universitário que Trevine integra, montou um projeto com o objetivo de atingir meninas do Ensino Médio, o ‘Vestibulandas’. Dessa forma, o grupo consegue alcançar as estudantes que ainda estão no processo do pré-vestibular. O objetivo também é fazer com que aquelas que nunca tiveram experiência na área a considerem como uma possibilidade.

Já a exposição “Ela está em tudo” traz uma proposta diferente e muito interessante. É uma iniciativa que Christina Bench fez parte e apresentou mulheres “comuns” da matemática para o grande público. Além de expor grandes estudiosas, o grupo utilizou exemplos de mulheres que são professoras, mães, que não ocupam certos padrões, algo mais como “gente como a gente”. “Pessoas que não necessariamente ocupam um lugar e nem se reconhecem como um modelo. Foi muito gratificante mostrar como todas são inspiradoras”, relata a professora do IME.

O próprio instituto tem movimentos e coletivos para interação e troca de experiências entre funcionárias, professoras e estudantes. É também um ambiente de acolhimento e motivação para a luta diária que é viver em ambientes que não são tão amigáveis, na maioria das vezes. “Por exemplo, a questão da violência acontece em todos os cursos, mas se você tem um conjunto de mulheres maior, com quem compartilhar, uma rede de apoio e de luta fica mais fácil enfrentar os problemas, porque tem mais gente que percebe e que entende aquilo como você”, comenta Bench sobre a relevância dos coletivos.

Fora dos muros da universidade, muitos projetos estão atuando com esse objetivo. As regiões mudam, assim como as pessoas, mas o objetivo é o mesmo: impulsionar mulheres e conquistar ambientes mais igualitários. 

“É importante que toda mulher tenha em mente que o nosso esforço sempre tem que ser muito maior que o dos homens, pois lutamos contra a corrente. Mas é somente com esse esforço que vamos conseguir conquistar espaços e ir mudando a cabeça da sociedade como um todo”, ressalta Elite Colucci.

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