Masculinidade e machismo na perspectiva dos denunciados pela Lei Maria da Penha

Grupos de escuta com agressores ajudam a construir narrativas sobre noções de gênero, poder e violência

foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

A violência contra a mulher ainda cresce no País, mas poderia ser até 10% maior sem a Lei Maria da Penha. O Mapa da Violência de 2015 mostrou que, naquele ano, a taxa de crescimento de mortes de mulheres desacelerou em relação a 2006, ano de criação da legislação. A importância da lei é notável.

Ela forçou a população a olhar para o problema da violência contra a mulher sob novos espectros. Um deles, a pesquisadora da USP Isabela Venturoza de Oliveira escolheu abordar em sua dissertação “‘Homem é homem’: narrativas sobre gênero e violência em um grupo reflexivo com homens denunciados por crimes da Lei Maria da Penha”.

“Durante a graduação notei uma quantidade considerável de investigações com foco nos profissionais da rede de atendimento e nas próprias mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, mas um número bastante reduzido de estudos incorporando falas e perspectivas de homens denunciados pelos crimes”, explica Isabela.

Foi então que ela deu início a uma análise aprofundada das narrativas de homens que infringiram Lei Maria da Penha e foram enviados ao Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. A ONG participa do Programa de Responsabilização de Homens Autores de Violência contra a Mulher e organiza, desde 2009, grupos reflexivos com homens que cometeram crimes contra mulheres em parceria com a Vara Central de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de São Paulo.

Com uma pesquisa que direciona o olhar aos “agressores”, Isabela pretendeu tornar mais aprofundada a leitura de “um fenômeno cujos números, ano após ano, permanecem alarmantes”.

“Não é raro que o homem que agride mulheres seja pensado como algum tipo de monstro, alguém sem caráter, mal, um Outro bem distante de nós. Na verdade, tratam-se de homens comuns, muitas vezes tidos como pessoas educadas e agradáveis, com defeitos e qualidades. Está longe de ser um Outro com o qual não convivemos diariamente”, explica a pesquisadora.

Sua pesquisa tenta provar que esse homem, na verdade, está mais perto de ser um reflexo de uma sociedade cheia de referenciais machistas e na qual as mulheres ocupam uma posição de inferioridade. “Não constitui, então, uma questão individual, de um monstro que pode ser isolado e aniquilado”, afirma.

“É uma questão social e coletiva. Não estamos combatendo um Outro, mas algo que está aqui a todo o momento, todos os dias, formatando nossas vidas, nossas identidades e nossas relações. Mudar isso é trabalhar não apenas com mulheres, mas com homens e meninos, é fazer com que essa seja uma discussão que afete e engaje a todas e todos”, defende Isabela.

Ouvido etnográfico

Como só homens participavam dos grupos reflexivos, a pesquisadora realizou o trabalho de campo “do lado de fora” das reuniões. “Realizei uma etnografia baseada não em um “olhar etnográfico”, mas em um “ouvido etnográfico”, analisando registros de áudio das reuniões dos grupos reflexivos”, explica ela. O anonimato dos participantes foi mantido. Questionários também foram aplicados e entrevistas foram realizadas de 2013 a 2015.

“As narrativas demonstram que, ao passo em que muito tem mudado para as mulheres em termos de como ampliamos nossos desejos e os lugares que queremos ocupar no mundo, os homens não acessaram outras formas de pensar a si mesmos e sua relação com elas”, explica. Para Isabela, daí resultam choques a respeito do lugar das mulheres, dos modelos de família e relacionamento afetivo e dos referenciais de masculinidade, família e conjugalidade que norteiam os homens.

Isabela menciona alguns aspectos de narrativas recorrentes captadas em sua pesquisa etnográfica dos encontros. “Alguns conflitos emergem de situações em que as expectativas de gênero, especialmente de feminilidade, entram em choque com aquilo que companheiras e ex-companheiras expressam”, explica a pesquisadora. Isso porque, segundo ela, conquistas de direitos e contestações de inspiração feminista, desestabilizam tradicionais modelos de relacionamentos entre homens e mulheres, tirando das mãos de certos homens as sensações de conforto e poder, construídas por noções e modelos nocivos de masculinidade.

“Quando certas fantasias de identidade e de poder dos homens entram em colapso, quando se sentem enfraquecidos ou questionados, quando perdem seus empregos, quando são traídos, essas são situações em que os conflitos também surgem de uma não correspondência entre o esperado, de acordo com modelos machistas, e o vivido”, argumenta Isabela.

Ela afirma ainda que nessas narrativas destaca-se o “discurso queixoso”, quando o homem passa a disputar o papel de vítima das mulheres e de um código penal que pela primeira vez não os “privilegia”. Segundo Isabela, a categoria “vítima” passa a ser disputada pelos homens. “De alguma forma, para eles, as mulheres estão sempre provocando os conflitos ou estes não existiram pela parte deles, foram “armações” de mulheres vingativas ou que queriam assegurar algum tipo de vantagem em certos relacionamentos”, explica Isabela.  

Segundo Isabela, nas narrativas também é possível notar uma resistência dos homens frente ao mecanismo da Lei. “Alguns mencionam a Lei Maria da Penha como uma ‘vantagem’ para as mulheres e uma artimanha utilizada de maneira manipuladora. Eles nos questionam sobre a ausência de uma Lei ‘João da Lapa’ para defendê-los das agressões de mulheres e de suas ‘loucuras’ e ‘desequilíbrios’”, descreve a pesquisadora. Observando esse comportamento, Isabela defende os encontros como uma oportunidade para demonstrar aos homens o porquê de uma legislação específica para defender as mulheres.

Uma nova narrativa, talvez nem sempre ouvida, mas observada, é a de troca e acolhida entre homens. “Isso torna possível que alguns homens se coloquem em lugares onde nunca estiveram”, argumenta. Os homens se colocam na posição de narrar suas vivências e tirar delas sentidos.

Além do caráter responsabilizador dos grupos de conversa, também observa-se essa segunda dimensão, a dos sentidos e das emoções. “Sabemos que a expressão de sentimentos e fragilidades não faz parte do que socialmente construímos enquanto masculinidade”, afirma. “Vem à superfície questões e perspectivas que não encontrariam lugar em delegacias e nos processos criminais.”

Desmistificando a masculinidade

Reflexões sobre os homens, em primeira pessoa, são bastante raras nos estudos de gênero, principalmente no que diz respeito à violência de gênero. Segundo Isabela, nesse campo, a literatura é “dedicada a pensar mulheres vítimas e a rede de atendimento a essas mulheres”.

Para ela, a antropologia deve olhar para a violência contra a mulher sob novos ângulos. “Uma perspectiva que aborde as narrativas dos homens denunciados por esse tipo de crime é extremamente necessária também para os Estudos de Masculinidades”, explica.

“Observar e escutar as narrativas de homens em um mundo permeado por desigualdades de gênero não significa “dar voz política” a eles”, explica Isabela. “Trata-se de buscar compreender uma problemática para contribuir com a construção de um caminho para a transformação, que não se dá apenas pela reflexão e pelo empoderamento entre mulheres, mas também pelo entendimento dos processos que produzem masculinidades calcadas em ideais de virilidade, força, agressividade e supressão de emoções.”

A pesquisa procurou compreender que lógicas as narrativas masculinas colocavam em ação e como, e em que medida, elas eram responsáveis pela violência produzida contra as mulheres. “Entender os processos e a constituição dessas masculinidades é parte indispensável do trabalho para a desconstrução delas e para a formulação de outras alternativas para homens e mulheres”, completa.

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