Bioeconomia e economia circular: a transformação de restos agrícolas em matéria-prima

Restos da produção de cana-de-açúcar em Iracemápolis. (Foto: Sabrina Brito)

Um dos maiores desafios da agroindústria atual é a alocação da grande quantidade de resíduos orgânicos produzidos ao longo do processamento de alimentos e produtos como a celulose e o couro. Quando não tratados, esses restos originados na atividade agropecuária podem ocasionar problemas para o meio ambiente através da poluição de solos e corpos d’água, por exemplo. Assim, ao longo das últimas décadas, cientistas e pesquisadores têm aprimorado tecnologias que permitem uma realocação dessas sobras visando fins saudáveis para a humanidade e positivos para a natureza.

Ainda que o reaproveitamento desses materiais tenha boas consequências para a sociedade, a economia é a área que mais se beneficia. Quando transformados em energia, gás ou adubo, essas substâncias podem contribuir com outras etapas da produção agrícola. Devido a essa possibilidade de realocação de um recurso no mesmo ciclo que o produziu, esse tipo de processo foi apelidado de economia circular. E esse conceito pode ser aplicado também a restos orgânicos provenientes da agropecuária.

Segundo dados de um estudo coordenado pela Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2015, a quantidade de resíduos pode chegar a até 30% do total da produção agrícola. Assim, dada essa enorme quantidade de sobras, torna-se clara a necessidade de se pesquisar e investir em novas técnicas de reciclagem e reaproveitamento dos materiais restantes da atividade agroindustrial.

O funcionamento da bioeconomia

Para Eduardo Daher, economista e diretor da Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), a economia circular é, antes de mais nada, de grande uso para agricultor. “Através dela, o produtor agropecuário consegue ter maiores quantidades de matéria-prima sem aumentar seus gastos. Assim, sua produtividade cresce vertiginosamente. É um conceito extremamente útil”, afirma.

De acordo com o professor Carlos Eduardo de Freitas Vian, docente da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, a economia circular é um princípio que tem sido aplicado na agricultura brasileira. Ainda segundo o especialista em economia agrícola, “a economia circular também pode servir como uma forma de chamar a atenção para a importância da utilização dos resíduos resultantes dos processos agropecuários em outras etapas da produção.”

Esquema de funcionamento dos pilares da economia circular. (Imagem: Euronews)

Assim, é importante notar que a reincorporação desses materiais pode ocorrer de diversas formas, adequando-se ao tipo de substância e ao seu destino. Ações como a compostagem e a biodigestão são formas essenciais de se reaproveitar o material resultante da atividade agroindustrial.

As formas de reutilizar

A compostagem, forma de degradação de matéria orgânica por microorganismos aeróbicos (ou seja, bactérias e fungos que utilizam o oxigênio no seu metabolismo), transforma o material em uma substância conhecida como húmus. Esse composto torna o solo rico em nutrientes e muito mais fértil, aprimorando-o para futuras plantações.

Já a biodigestão envolve a quebra do material por seres anaeróbios, o que culmina na produção de biogás formado por metano e gás carbônico e de um líquido apropriado para ser usado como fertilizante. A queima do metano gera energia, sinalizando um uso econômico desse composto, que pode ser caracterizado como fonte de energia renovável passível de ser usada na própria cadeia produtiva agroindustrial.

Outra boa forma de reaproveitar esses materiais é a sintetização de adubo orgânico. Esse tipo de fertilizante, que minimiza o impacto ambiental, tem sido cada vez mais requisitado no Brasil ao longo dos últimos anos, de acordo com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Não só esse método resulta em menores gastos, como também pode levar a melhorias na qualidade do solo e aumentos na produtividade final.

Mais um bom exemplo é dado por Leandro Gomes, mestre em ciência e tecnologia ambiental pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). “O bagaço da cana-de-açúcar pode ser utilizado nas próprias usinas, para a geração de energia elétrica, além de como ração animal, ou na produção de adubo. Resíduos de curtumes, aparas de couro curtidas, podem ser utilizadas na fabricação de palmilhas. As cascas de arroz podem se utilizadas para a geração de energia elétrica, através de sua queima, e como corretivo de solos”, pontua.

Sem o reaproveitamento

Segundo um estudo produzido em 2012 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vários impactos negativos podem decorrer da sobra de resíduos relativos à agroindústria. Por exemplo, a adição de excessos de matéria orgânica ou metais no solo e na água podem resultar desse processo, o que é prejudicial à natureza.

Além disso, existem consequências negativas observáveis a longo prazo, como o agravamento do efeito estufa, a toxicidade do solo devido à alta carga de nutrientes e o risco à saúde ambiental. Em um espaço de tempo curto, é possível notar efeitos como o mau cheiro, devido à acumulação de alguns tipos de restos ou à interação de microrganismos com essas substâncias.

Já em relação a atividades pecuárias, os restos sólidos e líquidos que são gerados possuem alta carga orgânica. A contínua disposição desses dejetos no solo pode ter consequências muito negativas quando mal manipulados. Alguns exemplos dos efeitos negativos desses processos são a saturação da terra e a proliferação de doenças.

No setor florestal da agroindústria, a atividade agrícola pode contribuir para a geração de gases, a contaminação dos solos e águas e a seleção de espécies da fauna e flora. Os restos que sobram, quando mal manejados, podem ser prejudiciais ao meio ambiente, pois, quando queimados, poluem o ar.

Um destino para os resíduos provenientes da agroindústria muito utilizado no Brasil é o aterro sanitário. Muito prejudiciais para o meio ambiente, esses locais são depósitos de sobras a céu aberto que geram odores desagradáveis e contribuem para a disseminação de doenças. “Grande parte dos resíduos produzidos são descartados em aterros sanitários, por ser uma opção prática e de menor custo operacional”, comenta Patrícia Silva Cruz, doutoranda em engenharia ambiental também pela UEPB.

Aterros sanitários podem se tornar verdadeiros poços de doenças e mau cheiro. (Créditos: Maksim, Wikimedia Commons)

No entanto, nem todo impacto vindo dos resíduos deixados pela agroindústria é ruim. Quando bem manejados, esses materiais podem ter grande potencial econômico e social. “Uma vez tratados, alguns tipos de restos possuem valor econômico agregado, podendo ser reutilizados no próprio processo produtivo, reduzindo os custos da atividade”, explica Patrícia.

Um futuro verde?

A geração de energia e a transformação dessas sobras em fertilizantes são duas opções de tratamento dos resíduos que apresentam benefícios para a sociedade. Segundo o mesmo relatório, houve, apenas em 2009, a produção de aproximadamente 290 milhões de toneladas desses materiais e cerca de 600 milhões de metros cúbicos de efluentes passíveis de reutilização energética. Se reaproveitadas, essas sobras podem ser injetadas em outras fases da atividade, contribuindo para a economia circular.

“O objetivo atual do agronegócio é aumentar a produtividade”, comenta Eduardo Daher. “As novas máquinas e tecnologias auxiliam o agricultor nesse ponto. No entanto, a reutilização de resíduos orgânicos também pode ser uma forma de fazer mais com menos”, conclui.

De fato, a constante invenção de aparelhos e produtos ajuda na consolidação de uma atividade agrícola saudável para o ambiente. O uso positivo de itens tecnológicos na agricultura pode ir desde a implantação de placas solares que captam a energia do Sol para abastecer outros artefatos até o desenvolvimento de robôs que colhem frutas de forma mais precisa que o homem (a exemplo daqueles que vêm sido produzidos em Cambridge, na Inglaterra). Se uma pessoa pode cometer erros e escolher frutos maduros ou jovens demais, a máquina sabe o momento exato de coletá-los, ajudando a evitar o desperdício.

Esses são apenas alguns dos modos aos quais podemos recorrer em nome de um mundo com uma bioeconomia saudável. As portas abertas pela inovação ainda estão escancaradas para quaisquer tecnologias que sirvam para implementar a economia circular, sobretudo no âmbito da agricultura.

O que vem pela frente

Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), a projeção para a quantidade de resíduos agrícolas no Brasil indica um aumento no número de restos orgânicos até 2050. Para os Estados Unidos e o sudeste da Ásia, grandes produtores de itens agrícolas, a expectativa para esse ano é a mesma.

Essa consonância entre regiões tão distintas entre si sinaliza que a importância dos métodos de reutilização desses materiais é maior do que nunca, uma vez que possuem grande valor econômico e social. Deixá-los apodrecendo em aterros sanitários ou no próprio solo sem o manejo adequado seria um desperdício.

Agora, com as novas tecnologias que vêm sendo desenvolvidas pelo setor agroindustrial a cada ano, é essencial que governos do mundo inteiro sobretudo de nações com elevados índices de produção agrícola tenham em mente a necessidade de reaproveitar os restos dessa atividade. Caso contrário, estarão negligenciando materiais e substâncias que poderiam ser convertidas em matéria-prima ou seja, em dinheiro. Por conseguinte, seriam também prejudicados o desenvolvimento de suas nações, os índices de sustentabilidade de cada local e até mesmo a infraestrutura de certas regiões, já que dependem de investimentos de capital (que estaria sendo desperdiçado) para evoluírem.

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