Narcolepsia: desdobramentos e causas do sono involuntário

De acordo com a Associação Brasileira do Sono, 1 a cada 2 mil pessoas sofrem com o distúrbio de sono

Grande parte dos narcolépticos são diagnosticados tardiamente, o que atrasa o tratamento [Imagem: Reprodução/ Freepik]

Por Ana Alice Coelho, Leticia Yamakami e Thamires Aguiar

Em junho de 2025, a Associação Brasileira do Sono estimou que aproximadamente um a cada dois mil indivíduos no mundo sofrem de um distúrbio de sono comumente subestimado pelas comunidades médica e acadêmica: a narcolepsia. A negligência da doença se dá, sobretudo, por o seu diagnóstico ser tardio, após 8 a 19 anos decorridos do início dos sintomas, e ainda ter altas chances de ser confundida por psiquiatras com outros distúrbios.

Segundo Daniel Martins de Barros, psiquiatra e professor colaborador do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, há casos de pessoas com narcolepsia que foram erroneamente diagnosticadas com depressão, apneia obstrutiva do sono, síndrome da fadiga crônica ou transtornos do ritmo circadiano. “Embora a narcolepsia em si seja uma condição isolada, ela compartilha mecanismos com outras doenças autoimunes e neurológicas que afetam o sono, o controle motor e a regulação de neurotransmissores”, explica ele sobre o porquê da confusão ocasional.

O que é narcolepsia?

Esse distúrbio relacionado ao sono é um dos mais de 80 tipos existentes. Em um panorama geral, 72% dos brasileiros sofrem com alguma dessas patologias, sendo as mais comuns insônia, apneia do sono, paralisia do sono, bruxismo e sonambulismo, de acordo com dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Aproximadamente 73 milhões de brasileiros possuem a insônia, distúrbio com mais diagnósticos, um número consideravelmente maior do que os cerca de 4 milhões de narcolépticos pelo planeta.

Apesar de ser um quadro menos frequente do que outras doenças do sono, a narcolepsia é um distúrbio neurológico crônico que afeta a regulação do sono e da vigília e impacta o dia a dia e a rotina dos pacientes drasticamente. O principal sintoma é a sonolência excessiva diurna, o que faz o narcoléptico adormecer de forma involuntária e repentina, mesmo que esteja realizando atividades como dirigir, comer ou conversar.

Daniel Martins de Barros aponta que outros sintomas consistem em cataplexia, que é a fraqueza muscular desencadeada por emoções fortes, como riso ou susto, paralisia do sono e alucinações hipnagógicas e hipnopômpicas, que é a sensação de ver imagens vívidas ao adormecer ou acordar. O psiquiatra reforça que nem todo narcoléptico possui todos os sintomas, mas a hipersonolência diurna e a cataplexia são o que caracterizam a doença. Na maioria dos casos, ela se manifesta entre os 7 e 25 anos de idade e perdura por toda a vida.

A causa está associada à perda de neurônios que produzem a hipocretina, um neurotransmissor que regula o estado de vigília. A desregulação no ciclo normal do sono faz com que o paciente entre no sono REM – sigla em inglês para “movimento rápido dos olhos” – rapidamente: 15 minutos após adormecerem – mesmo de manhã –, enquanto não narcolépticos demoram de 60 a 90 minutos para atingir esse estágio. O sono REM é a última fase do ciclo do sono, em que acontecem os sonhos, a fixação da memória e o descanso profundo.

Existem dois tipos de narcolepsia. No tipo 1 são classificados indivíduos que possuem níveis baixos de hipocretina, o que faz os sintomas serem mais excessivos e frequentes. O tipo 2 engloba aqueles que possuem a doença, mas apresentam níveis normais de hipocretina, o que resulta em sintomas menos graves, como a falta da fraqueza muscular desencadeada por emoções fortes.

Impactos no cotidiano

Para Marcelly Brito, viver com narcolepsia não é fácil. “A gente fica mais estressado por sempre estar com sono e às vezes por não conseguir fazer atividades simples durante o dia”. A nutricionista de 27 anos passa os dias conciliando o distúrbio com o trabalho e os cuidados com o filho de 10 meses. “Eu não consigo ler um livro. Para ler um livro gasto quase um ano, porque é uma página por dia”, completa.

Em entrevista à Agência Universitária de Notícias (AUN), Marcelly afirma que os primeiros sintomas da narcolepsia foram percebidos no início da vida adulta, aos 19 anos de idade. “Foi assim que saí do ensino médio e comecei o cursinho vestibular. Tinha muita dificuldade de ficar acordada no cursinho, foi onde os sinais começaram a ficar mais perceptíveis”, diz a nutricionista.

A inconveniência do sono constante acabou se tornando cada vez mais um problema, o que a levou a procurar ajuda médica. “[O processo] demorou e só fui fechar o diagnóstico em 2023. Quando comecei a sentir os sintomas, passei em dois neurologistas. Um deles falou que era só preguiça, enquanto o segundo desconfiou de uma possível anemia. Fiz todos os exames de sangue e não deu nada, então ele simplesmente falou ‘deve ser dela mesmo’”. Marcelly diz que depois do diagnóstico dos dois médicos, mesmo ainda sofrendo com os sintomas do distúrbio do sono, começou a aceitar o cansaço crônico. “Em 2023, quem desconfiou e me recomendou procurar um especialista do sono foi a minha psicóloga”, adiciona. 

Depois do diagnóstico, a paciente começou a entender melhor sobre os desdobramentos da narcolepsia. “No meu caso, são sintomas mais leves. Sinto muito sono durante o dia e uma facilidade enorme de dormir em qualquer lugar, seja dirigindo, sentada na mesa, comendo, lendo um livro ou estudando”. O quadro da nutricionista se encaixa no tipo 2 da doença, e, embora os sintomas já sejam prejudiciais, ela reconhece que existem quadros mais críticos. “Tem casos mais graves em que a pessoa tem desmaios se der risada por muito tempo, por exemplo. A pessoa cai no meio da risada.”

Quando começa a perceber os indícios de um episódio narcoléptico, Marcelly imediatamente sabe que precisa dormir. “Meu olho arde e fica coçando. Então, quando estou quase não aguentando mais, é perceptível até para quem está do lado”. Ela diz que o mais frustrante do distúrbio é a constante onda de cansaço, que se torna um obstáculo até nas atividades simples do dia a dia. “O problema da narcolepsia é que posso dormir 12 horas diretas e, mesmo assim, na hora que acordar vou acordar cansada. Atrapalha muito o rendimento nas atividades durante o dia.”

Para a nutricionista, a única saída são cochilos esporádicos durante o dia. “A minha neurologista recomendou que [os cochilos] fossem de 20 minutos, só que se durmo, não consigo levantar. Às vezes o cochilo dura uma hora ou até mais, e agora tenho bebê, então a parte do cochilo está sendo anulada”. Uma das alternativas utilizadas por Marcelly para auxiliar o tratamento da narcolepsia são as medicações. Porém, com a gravidez, o remédio só pode ser retomado após o período de amamentação. 

Os medicamentos utilizados no tratamento da narcolepsia são aqueles para combater os sintomas, uma vez que a patologia não possui uma cura. Segundo a Associação Brasileira do Sono, os psiquiatras normalmente prescrevem estimulantes para aumentar o estado de alerta ou, até mesmo, antidepressivos. 

Além das consequências corporais, Marcelly também sente os impactos do distúrbio na parte mental durante o dia. “Por muito tempo carreguei o título de que era só preguiça, então isso me atrapalhou e me travou em muita coisa. Acaba interferindo bastante o emocional também”. Mesmo depois do diagnóstico, a falta de conhecimento sobre o distúrbio do sono segue sendo um problema para ela. “É uma coisa muito particular. A minha única solução é dormir ou tomar algum medicamento, não tem nada além disso que dê para melhorar ou para aliviar. Cheguei a ouvir de algumas pessoas ‘nossa, mas agora deram nome até para preguiça’”, completa.

Entre o diagnóstico e o tratamento

Assim como o relatado por Marcelly, o caminho de um paciente com narcolepsia pode ser tortuoso até conseguir o diagnóstico do distúrbio do sono, mas ele existe e é disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Por meios particulares ou convênios médicos, ele também é realizado pelo Instituto do Sono. Em visita da AUN ao Instituto, o supervisor de polissonografia, Ademar Rodrigues da Silva Júnior, explica que o primeiro passo é realizar a polissonografia noturna básica, também utilizada para diagnosticar outras doenças relacionadas ao sono. No dia seguinte, realiza-se o teste de latência múltipla do sono (TLMS ou MSLT).

Na polissonografia usa-se o polissonígrafo, aparelho que mede em quanto tempo o paciente atinge o sono REM [Imagem: Thamires Aguiar/Acervo pessoal]
No segundo exame, que acontece a partir das oito da manhã, o paciente é colocado para fazer cinco cochilos de 20 minutos cada, com distância de duas horas um do outro. Todos são registrados para que os médicos analisem se, nesse curto período de soneca, a pessoa atinge o estágio de sono mais profundo. Em caso positivo, ela é diagnosticada com narcolepsia. “[Realizar o teste de latência múltipla do sono] não é incomum. Fazemos três exames desse todos os dias, de segunda à sexta”, diz o supervisor de polissonografia.

Após o diagnóstico, o paciente deve passar com um psiquiatra para que ele receite os medicamentos estimulantes. Além dos remédios, Daniel Martins de Barros salienta que existem outros métodos de tratamento, os comportamentais. É necessário que os narcolépticos tenham uma higiene do sono rigorosa, o que inclui ter horários fixos para dormir e acordar – mesmo em finais de semana –; evitar café, energéticos, bebidas alcoólicas e alimentação pesada antes de deitar para dormir; e exercer atividades que aumentam o estado de vigília, como exercícios físicos,  exposição à luz solar e interações sociais. O psiquiatra também recomenda que os narcolépticos organizem sua rotina para tirar cochilos de 20 minutos durante o dia.

Mesmo com as medidas de tratamento, a narcolepsia continua sendo um distúrbio que faz o indivíduo dormir involuntariamente. Por isso, a Associação Brasileira do Sono reforça que também é essencial alertar a família e pessoas do convívio sobre a condição, a fim de evitar danos físicos que podem ser causados pelo sono repentino, como acidentes domésticos que envolvem cortes, queimaduras e batidas. Além disso, os médicos não recomendam que os narcolépticos dirijam carros, já que os riscos de acidente de trânsito são grandes.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*