Estudo inédito revela como a história do Brasil moldou o DNA da população

Dados apontam para quase 9 milhões de variantes, sem descrição anterior, com marcas de desigualdades herdadas da colonização e indicam caminhos para medicina individualizada

Projeto “DNA do Brasil” demonstra a diversidade demográfica [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

Após 7 anos de estudo de sequenciamentos genéticos da população, o projeto “DNA do Brasil” demonstra a diversidade demográfica que é testemunhada na sociedade brasileira e livros de história. A pesquisa, desenvolvida pelo Instituto de Biociências  da Universidade de São Paulo (IB – USP), contemplou 2.723 genomas completos de indivíduos de todas as regiões do país — incluindo populações urbanas, rurais e ribeirinhas — que revelaram quase 9 milhões de variantes genéticas inéditas. Dentre elas, 36.637 variantes são potencialmente deletérias, ou seja, podem comprometer o funcionamento de proteínas ou aumentar o risco para doenças.

O sequenciamento completo do genoma possibilita a informação global de cada um dos indivíduos e da amostra como um todo
[Imagem: Acervo Pessoal/Renan Barbosa Lemes]
Segundo Renan Barbosa Lemes, um dos primeiros autores da pesquisa, a maioria das pesquisas genéticas feitas mundialmente são realizadas na Europa. A região possui menor miscigenação e, assim, resulta em registros genômicos primordialmente de ascendência europeia. Ele explica que não apenas não haviam informações das proporções nativo-americanas e africanas do Brasil, como as informações em relação à proporção europeia do brasileiro não é exatamente igual às já estudadas. 

O artigo esclarece que o Brasil é um país de proporções continentais, lar da maior população da América Latina e com maior miscigenação no mundo. Os dados apresentados informam que, com o período de colonização, vieram cerca de 5 milhões de europeus para o Brasil, juntamente com a migração forçada de pelo menos 5 milhões de africanos e a dizimação das populações indígenas, que antes incluíam mais de 10 milhões de pessoas. A diversidade europeia também aumenta com a grande imigração de alemães e italianos nos séculos 19 e 20, além de outras nacionalidades.

A população nativa da época possuía mais de mil línguas
[Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]
O estudo é extraordinário por dar os primeiros passos no entendimento da miscigenação de povos indígenas, africanos, europeus e asiáticos que moldaram a diversidade genética brasileira. “Não tinha nenhum projeto com esse nível de detalhamento focado na diversidade para a gente poder entender tanto a parte demográfica, histórica, evolutiva quanto a parte médica. Não só no Brasil como na América do Sul”, conta o pesquisador. 

“A gente até brinca que existem vários “Brasis”, por que, por exemplo, se você olhar a Bahia, ela tem um “background” genético totalmente diferente do que você vai encontrar no Rio Grande do Sul e do que você vai encontrar no Amazonas.”

Renan Barbosa Lemes, 

pesquisador do IB e primeiro autor da pesquisa

Uma história escrita no corpo

O estudo utilizou métodos computacionais para análise dos eventos de miscigenação, que demonstraram maior intensidade entre o final do século 18 e meados do século 19, época que coincide com o auge da escravidão e intensificação da colonização europeia. Foram analisadas a ancestralidade dos cromossomos que “são os que recebemos tanto da mãe (cromossomo X), quanto do pai (cromossomo Y), assim a gente consegue entender de forma geral como é a ancestralidade global do brasileiro”, afirma Lemes.

A análise evidenciou que a linhagem paterna, expressa no cromossomo Y, é 71% europeia, enquanto a linhagem materna, expressa no cromossomo X, carrega 42% de ancestralidade africana e 35% indígena. Esses dados revelam como os cromossomos sexuais e ancestrais foram herdados de forma desigual, explica o pesquisador e primeiro autor. 

Lemes adiciona que “isso provavelmente se deve a episódios de vários tipos de violência, por exemplo, o estupro. Medicamente não é possível dizer de fato a motivação, mas quando ligamos com esse histórico, pode-se chegar a essa conclusão.” Entretanto, o estudo elucida que, nas gerações mais recentes, houve uma transição para padrões mais homogêneos de acasalamento com ancestralidade semelhantes.

O código da saúde brasileira

Foram identificadas mais de 8 milhões de variantes que não estavam datadas em outros bancos genéticos do mundo. O primeiro autor reforça que “isso não significa que os nativos têm mais mutação, mas, simplesmente, que as populações nativas não estão escritas nos bancos de dados (primordialmente europeus).”

“(A partir das novas variantes) prevemos a possibilidade delas causarem uma modificação que seja suficientemente grave para causar uma doença ou não”, destaca o pesquisador. Dentre os genes investigados, 36.637 são provavelmente causativos de doenças, de acordo com o estudo. Estes podem estar associados a doenças como câncer, disfunções metabólicas ou doenças infecciosas (malária, hepatite, influenza, tuberculose, salmonelose e leishmaniose). 

Esse fenômeno demonstra como o DNA foi submetido à seleção natural. Renan Lemes exemplifica que o contato da população nativa com patógenos da região amazônica fizeram com que eles se adaptassem e seus genes evoluíssem para a sobrevivência: “Os indivíduos são selecionados ao longo da história e isso deixa uma marca genética que faz com que os indivíduos tenham esse fator de proteção em determinados genes.”

Os resultados também indicaram marcas genômicas de doenças metabólicas (obesidade, colesterol) na ancestralidade indígena. Segundo o estudo, esse fenômeno está possivelmente conectado com as mudanças nos hábitos alimentares, já que a população passou de uma alimentação baseada nos recursos naturais para os ultraprocessados. Além das condições patológicas, houve destaque de genes ligados à fertilidade com origem na ancestralidade europeia. Da mesma forma, esses genes evidenciam que a seleção privilegiou pessoas que geravam mais filhos, diz o pesquisador.  

Inclusão genômica como pilar da saúde do futuro

Renan destaca que o estudo busca não apenas investigar as mutações genéticas características dos brasileiros, mas auxiliar no tratamento específico da população. O governo federal investe cerca de R$74,7 bilhões em tratamentos especializados como quimioterapia, transplantes, exames especializados, hemodiálise, consultas e cirurgias eletivas.

“Se conhecermos melhor o quanto uma doença é prevalente na nossa população – se o indivíduo possui ou não uma mutação que o deixe suscetível a ter, por exemplo, um câncer de mama, o Estado economizaria muito em exames”, o pesquisador explica que “a pessoa não precisaria fazer um exame de mama aos 40, ela poderia fazer aos 60”. Ele também cita o estudo como benéfico para o conforto do paciente ao prevenir exames desnecessários, reduzir a fila hospitalar e evitar diagnósticos incorretos. 

“(O estudo) traz dados novos para a história, a geografia, a medicina, para os estudos de genes específicos relacionados à doença, que envolve as biológicas, em geral a biomedicina, a biologia”, ressalta Lemes. “É a possibilidade de abrir mais um campo de estudos funcionais para verificar qual a função real de cada um dos genes, quais são importantes para nós.”

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*