Na contemporaneidade, inúmeras meninas e mulheres insistem nesse sonho, tendo cientistas de outrora como inspiração. O trabalho da atual geração é assegurar que elas não enfrentem os mesmos empecilhos que suas antecessoras precisaram vivenciar. Na linha de frente dessa luta estão cientistas como Kamilla Vasconcelos, pós-doutora e professora da Escola Politécnica da USP, que contou com referências bastante importantes ao longo da sua trajetória de pesquisa. “A primeira delas foi a minha mãe, que também foi professora universitária, mãe de três filhos, e dentro do seu contexto a época precisou abdicar de muitos passos acadêmicos devido à maternidade.”
Para Andrea Bortolotto, doutora em História da Ciência pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) e professora de química, a opressão funciona assim: “Você não dá chance para a mulher. Você convence que ela tem que ser do lar, que ela tem que ser doce, então nunca é a mulher quem pensa.”
Kamilla ecoa as palavras de Andrea, considerando que o momento da maternidade se soma muitas vezes ao momento de ascensão na carreira. “Uma criança na primeira infância precisa muito dos laços com os pais ou cuidadores. Sempre que essa divisão de tarefas é desbalanceada, e a mãe é sobrecarregada, há um impacto na sua vida pessoal e profissional.”
Dados evidenciam desigualdade
Em seu último estudo sobre o assunto, a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou que apenas 12% dos membros de academias de ciências nacionais em todo o planeta são mulheres. No Brasil não é diferente: entre os 576 membros titulares da Academia Brasileira de Ciências (ABC), apenas 107 são mulheres (19%). Esses dados exibem que a desigualdade de gênero afeta o meio científico de forma internacional.
Essa marginalização do gênero feminino pode ser comprovada por outros fatores, como as informações divulgadas pela Organização das Nações Unidas pela Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Segundo a pesquisa divulgada no Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência (11 de fevereiro, como foi estabelecido pela ONU em 2016), apenas 33,3% das pessoas que trabalham com pesquisa são mulheres. Na área conhecida como STEM (Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática) os números também são preocupantes, com apenas 35% dos graduados sendo mulheres.
Nesse contexto também é muito comum o chamado “efeito tesoura”. Quanto maior importância os cargos científicos possuem, menor é o número de mulheres que os ocupam. Ou seja, há uma porcentagem, mesmo que pequena, de mulheres que cursam ciências na graduação, mas esse número é ainda menor, tratando-se de pesquisadoras com alto grau acadêmico ou em altos cargos.
Para Kamilla, apesar de o meio científico estar mudando, “de forma geral, as mulheres ainda encontram alguns degraus a mais na subida da carreira acadêmica.” Ainda segundo a pesquisadora, “a área de exatas, especialmente na carreira acadêmica, ainda não tem uma distribuição igualitária entre homens e mulheres, especialmente em cargos mais altos, e essa falta de referências acredito que seja um ponto muito negativo para as meninas que vislumbram essa carreira”.
Muitos são os fatores que levam a esses números. Desde o período escolar, meninas são desestimuladas a estudarem ciências, especialmente as exatas. Em 2022, resultados do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) revelaram que os meninos da faixa dos 15 anos de idade estão oito pontos à frente do desempenho das notas das meninas em Matemática.
A OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), desmistificando a teoria infundada de que homens naturalmente seriam melhores que mulheres nessas áreas, afirma que esse resultado é explicado por contextos sociais e culturais que “reforçam atitudes e comportamentos estereotipados”. Ao passar da vida acadêmica e profissional, essa situação se mantém.
Em entrevista à Agência Universitária de Notícias (AUN), Carolina Brito, professora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do projeto Meninas na Ciência, cita uma de suas experiências. Quando entrou na faculdade, o sonho da pesquisadora era seguir na área de astronomia. Porém, durante a graduação, um de seus professores de referência não a encorajou.
“Ele veio me desestimular. Ele disse ‘olha, tu tem que entender que é muito difícil a carreira de física, tem que estudar muitas horas por dia’”, diz Carolina. Com toda essa situação, a professora optou por outra área da física, deixando de lado a astronomia.
Ela afirma que não se arrepende da decisão, mas que essa situação foi o motivo de sua desistência no estudo estelar. “Esse tipo de assédio moral muda carreiras, algumas mulheres até largam seus estudos e trabalhos. “Não larguei a física, mas também não segui em astronomia”.
Feitos femininos
Às mulheres, sempre foi colocada a obrigação de cuidar da casa e dos filhos, além de ser submissa ao marido. Os estudos científicos nunca poderiam ser feitos por pessoas desse gênero, pois elas não eram “capazes o suficiente” para pensar de tal maneira. Esse pensamento foi aceito oficialmente até 1879, quando elas garantiram o direito de entrar em uma universidade, porém muitas ideias com esse pano de fundo continuam reverberando na sociedade.
Em diversos feitos científicos importantes para a história humana, figuras femininas tiveram papéis tão relevantes e centrais quanto os homens, mas somente eles levaram os créditos sobre essas conquistas. Da química à física, de Einstein a Lavoisier, as mulheres sempre estiveram presentes.
Um exemplo interessante é Marie-Anne Pierrette Paulze, ou Marie Lavoisier, que é considerada pioneira na química moderna. Em conjunto com seu marido, Antoine Lavoisier, Marie descobriu o oxigênio e a ligação com a combustão, além de postular a chamada “Lei de Lavoisier” ou “lei de conservação das massas”.
Para a AUN, Andrea Bortolotto, doutora em História da Ciência, explica que Marie Lavoisier era quem ficava diariamente no laboratório. Seu marido tinha um emprego público e, por isso, não tinha tanto contato com esse ambiente quanto ela. Além disso, Antoine não falava línguas estrangeiras, ficando para Marie a função de se comunicar com outros pesquisadores internacionais.
Esse preconceito é reforçado e escancarado em premiações científicas. O prêmio Nobel, por exemplo, teve apenas 2 mulheres entre os 14 premiados em 2022. Em toda sua história, as mulheres ganharam o Nobel apenas 61 vezes, enquanto 895 dos ganhadores são homens.
Andrea reforça que o principal motivo para isso é a falta de oportunidade. A grande maioria dos estudiosos das ciências são homens e, por isso, esse grupo terá maior chance de ser premiado. Outro problema citado é a maternidade: muitas mulheres deixam suas pesquisas de forma temporária ou permanente para focarem na sua vida pessoal como mães, enquanto homens não passam por esse processo.
Apesar dos avanços consideráveis no quesito feminista, as mulheres ainda são tratadas como inferiores no meio científico. Como citado anteriormente, a participação feminina em órgãos de destaque nesses estudos é consideravelmente menor do que a de homens. Consequentemente, o tratamento delas nesse ambiente também é afetado.
Daniela Pavani, professora adjunta do Departamento de Astronomia do Instituto de Física da UFRGS e diretora do Planetário da UFRGS, em entrevista à AUN, comenta que sofreu com isso em sua graduação. Seu tratamento em relação aos colegas era diferenciado e ela era sempre vista com desconfiança e desprezo. “O professor sentava do meu lado na hora da prova, porque se estava indo bem devia estar colando. Não podia ser real, porque mulher não é boa em matemática.”
Pavani também cita seus problemas em conciliar a vida acadêmica com a maternidade. Para ela, colocar os filhos em sua vida profissional foi seu maior desafio, pois acreditava que seu rendimento no trabalho não poderia cair em nenhum momento e ela sabia que isso seria afetado com a chegada das crianças. “Às vezes tu nem sabes se o teu colega homem tem filho, porque não é ele que dá conta do dia a dia dessa criança”. Idas ao hospital, consultas médicas e folgas na escola são alguns fatores que Daniela menciona como atividades que impactam o rendimento das mães no trabalho.
Estímulo a jovens
A representatividade feminina na ciência é fundamental para quebrar os estereótipos de gênero estabelecidos nessa área. Para que jovens meninas tenham a autoconfiança necessária para o enfrentamento de todos os desafios que lhes serão impostos em sua trajetória acadêmica, ter outras mulheres como referência é um grande diferencial.
Para entender melhor essa questão, a AUN conversou com Maria Luísa Reis, estudante do Ensino Médio que almeja seguir carreira na medicina. Entre suas diversas conquistas acadêmicas, ela destaca a que mais a emociona: a medalha de bronze na Olimpíada Internacional de Medicina de 2022.
Segundo Malu, a paixão pelo ramo científico sempre esteve presente dentro de si, tendo início com questionamentos cotidianos típicos da infância como “por que o céu é azul?” ou “por que as plantas são verdes?”. O apoio de sua família também foi essencial para o aprofundamento desse interesse. Seus pais sempre buscaram inseri-la em atividades relacionadas a ciências e continuam incentivando sua dedicação acadêmica até hoje.
Contudo, mesmo com o sonho de seguir carreira no ramo científico por meio da medicina e com o apoio de seus familiares, a jovem relatou um empecilho que a fez questionar seu pertencimento nesses espaços acadêmicos: a falta da presença feminina.
A quase totalidade de nomes masculinos ocupando os pódios das olimpíadas de conhecimento, além de uma quantidade visivelmente desproporcional entre meninos e meninas nas aulas preparatórias para essas olimpíadas, trouxe a Maria Luiza, tantas vezes medalhista, uma insegurança em relação ao seu sonho acadêmico.
No entanto, um dos pilares que mantiveram a estudante firme em sua caminhada foi ter o apoio das figuras femininas ao seu redor: mulheres da família, amigas, colegas de escola e professoras. Ela ressalta que “o acolhimento e a confiança de todas elas sempre foram essenciais para os meus estudos, me fazendo seguir em frente nos meus sonhos e me mostrando que podemos ocupar todas as esferas que quisermos.”
Maria Luiza conta alguns dos nomes que a inspiram dentro do meio científico. “São tantas as mulheres que poderia citar aqui, mas ressalto algumas: Júlia Rocha, médica do SUS, e Jaqueline Góes, responsável por codificar a Covid-19, por representarem a união do meu amor pela ciência com a minha vontade de salvar vidas; Katie Bouman, responsável pela primeira foto de um buraco negro, por demonstrar que não só podemos ocupar os espaços, como ser protagonistas neles; Verena Pacolla, por me inspirar a participar do projeto de caça asteroides; Rosalind Franklin, por descobrir o DNA, representando o papel das mulheres na construção da minha área favorita da ciência, a biologia; por fim, mas não menos importante, Bibi Bailas, por utilizar dos meios tecnológicos para tornar a ciência mais acessível à população.”
Projeto pioneiro
Coordenado por Carolina Brito e Daniela Pavani, Meninas na Ciência é um projeto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) essencialmente de incentivo. Seu principal objetivo é “atrair meninas para as carreiras de ciência e tecnologia e estimular mulheres que já escolheram essas carreiras a persistirem e se tornarem agentes no desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil.”
Fundado no final de 2013, as principais ações da iniciativa são: visitas a escolas; formação continuada de alunas e alunos de graduação com foco em astronomia, física e robótica para o ensino de ciências e tecnologias; oficinas de ciências e debates sobre questões de gênero em escolas públicas da capital e região metropolitana; curso de robótica; produção de filmes para difundir a presença de mulheres em carreiras de ciência e tecnologia; cursos de capacitação de professores do ensino básico na área de ciências; abertura para visitas aos campi da UFRGS e atividades no local para alunas do ensino fundamental e médio.
Uma das principais motivações para a criação do projeto foi perceber, em visitas a escolas e conversas com crianças, que meninos e meninas se interessavam em ciências, mas que somente eles seguiam nesse estudo. A coordenadora Daniela Pavani já tinha contato com extensões na UFRGS e teve a ideia de fundar um projeto para ajudar nessa questão. A partir de bolsas e editais, foi possível colocar a iniciativa em prática.
À AUN, Carolina afirma: “a gente acredita realmente que a ciência é essencial para desenvolver o Brasil e que a presença de mulheres e diversidade de maneira geral é o mais importante.”
Meninas na Ciência é de extrema importância principalmente por conta de sua persistência no tempo. Mesmo com mudanças constantes de financiamentos e problemas durante a pandemia de Covid-19, o projeto continuou de pé e está atuando fortemente até hoje.
Sobre projetos futuros, a coordenadora Daniela Pavani diz que o Meninas na Ciência está se preparando para um atendimento mais personalizado. A ideia é atingir escolas específicas e acompanhar o desenvolvimento do aprendizado, além de auxiliar os professores nesse processo.
“Acho que a gente está conseguindo chegar nessa ideia que começou há 10 anos: como que a gente pode fazer um programa de ação que impacte no desejo das meninas de irem para essas cadeiras e de prosperar? No que diz respeito ao Meninas na Ciência, a gente está amadurecendo.”
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