
São Paulo, 11 de outubro. Quem estava pela cidade, viu: a tempestade que tingiu de cinza os céus da capital do estado assobiou por entre casas e prédios com ventos de até 107km/h, de acordo com medições do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Os números são um recorde histórico desde o início das medições, iniciadas em 1995.
Oito mortes registradas. Em bairros por toda a cidade, registros de detritos ocupando ruas e calçadas. Saldo: 25% da base atendida pela concessionária Enel, ou 2,1 milhões de domicílios, relataram falta de energia elétrica. Entre esses, muitos ficariam até uma semana sem luz.
De acordo com a Defesa Civil, entre a sexta-feira e a segunda-feira seguintes à tempestade, foram 2.224 chamados para quedas de árvores. Bairros como Vila Mariana, Pinheiros e Butantã registraram índices de chuva que variaram entre 216 mm e 248 mm, de acordo com dados da Climatempo. A precipitação média em outubro alcançou 176 mm, aumento de 38% em relação à média climatológica entre 1991 e 2000.
O paulistano está acostumado a ouvir e falar que “o tempo está maluco”. Mas o que aconteceu, e por que a “terra da garoa” tem dificuldade de lidar com eventos climáticos extremos, cada vez mais comuns?

A tempestade
“Tem uma série desses eventos adversos que ocorriam, mas começam a ficar exacerbados”, conta Adriana Sandre, professora da Faculdade de Arquitetura de Urbanismo (FAU) da USP.
Para a pesquisadora, as transformações nas condições climáticas têm se tornado cada vez mais evidentes, com fenômenos como ondas de calor, aumento de deslizamentos de terra e inundações, frequentemente associadas a chuvas torrenciais. Em entrevista para a Agência Universitária de Notícias, Adriana afirma que, embora eventos de chuvas fortes já ocorressem no passado, “é difícil diferenciar o que é microclima do que é algo efetivamente causado pelas mudanças climáticas globais”.
Segundo a cientista, nos últimos anos, “a cidade, antes conhecida como terra da garoa, é hoje a cidade das chuvas torrenciais”. Eventos de precipitação intensa, com volumes “de 200, 300 milímetros caindo sobre períodos muito curtos de tempo”, são cada vez mais frequentes.

É possível observar a anormalidade nos eventos climáticos paulistanos a partir dos dados divulgados pelo Inmet. Desde 1931 o Instituto faz medições na cidade de São Paulo, gerando, periodicamente, relatórios. Pela análise mais recente, que abrange a janela de 1991 a 2020, é possível observar um deslocamento nos níveis de precipitação e temperatura na capital paulista.
A relação entre as mudanças climáticas e eventos climáticos extremos ainda é complexa, e a atribuição de uma tempestade específica a esses fatores não pode ser feita de forma concreta. No entanto, “é inegável que a frequência na ocorrência dos ingredientes fundamentais para a formação de tempestades severas, como alta instabilidade atmosférica e forte cisalhamento do vento, tem aumentado nos últimos anos”, conta Rachel Albrecht, professora do Departamento de Ciências Atmosféricas, localizado no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP.
O cisalhamento, explica, é a mudança de intensidade e direção do vento com a altura: “Ventos mais fracos próximos à superfície que vão aumentando de intensidade e mudando a direção, como uma hélice.”

De acordo com Rachel, a tempestade ocorrida no mês de outubro teria sido o que meteorologistas chamam de bow echo (em português, “eco de arco”), chamado assim por sua curvatura, similar a um C invertido.
Um bow echo acontece “quando uma linha de tempestades se forma em um ambiente com forte cisalhamento vertical do vento, e as tempestades formadas têm ventos descendentes frios muito intensos e destrutivos”. Esses ventos frios criam o que é chamado de frente de rajada, que “empurra o centro da tempestade para frente mais rapidamente do que as laterais, dando à tempestade o formato de arco”. Os ventos mais intensos ocorrem na ponta do arco, onde a tempestade é mais forte, aumentando o risco de queda de granizo e, em alguns casos, gerando tornados.

Após o evento de 11 de outubro, outros apagões aconteceram, conforme avançamos na temporada chuvosa, típica do verão paulista. Em 19 de outubro, 138 mil imóveis ficaram sem luz. Dia 23 do mesmo mês, outros 50 mil. Em 2 de novembro, 51 mil. Até o fechamento desta reportagem, a chuva de 28 de novembro deixou 134 mil residências sem luz, de acordo com a Enel.
Em meio aos episódios chuvosos, em 23 de outubro entrou em vigor medida provisória que libera crédito para micro e pequenos empresários prejudicados com o apagão de duas semanas antes. Segundo estimativa da Federação do Comércio de Bens, Serviço e Turismo (FecomercioSP), a perda para o setor comercial ultrapassou a marca de R$ 1,6 bilhão.
Repetição
O evento climático extremo não é o primeiro do tipo. Em 3 de novembro de 2023, um temporal de proporções semelhantes se formou. Na sexta-feira do fim de semana de aplicação do ENEM e do Grande Prêmio de Fórmula 1 de São Paulo, a tempestade escurecia os céus paulistanos durante o fim da tarde, com ventos de mais de 103 km/h (velocidade recorde até 11 de outubro de 2024) resultando em 1,7 milhão de pessoas sem eletricidade, 1,5 milhão sem água, e 1.400 chamados para quedas de árvore.
Conforme dados do portal Climatempo, a tempestade veio como desfecho do outubro mais chuvoso desde 1943, totalizando 356 mm de precipitação.
A falta de chuvas levou os moradores de diferentes bairros e municípios a protestarem. Em um deles, na região do Morumbi, um policial foi baleado.
Em outras regiões
O Brasil começou a fortalecer suas políticas ambientais a partir de 2009, com a aprovação da Política Nacional sobre Mudança do Clima. A legislação busca estabelecer uma série de princípios e diretrizes para lidar com o aquecimento global, dividindo ações a serem discutidas em dois eixos fundamentais: adaptação e mitigação climática.
A adaptação se refere à capacidade das comunidades e sistemas humanos de se ajustarem aos efeitos das mudanças climáticas. Isso envolve preparar a infraestrutura urbana para lidar com os impactos, garantindo que os danos sejam minimizados, através de mecanismos para a resposta eficiente após os eventos climáticos.
“É a capacidade de resposta e de preparo da sociedade”, conta Yosef Morenghi Fawcett, advogado da área de direito ambiental, formado pela Faculdade de Direito da USP. Seu trabalho de conclusão de curso busca compreender o papel dos municípios e suas competências legislativas e administrativas na formulação de políticas públicas para a adaptação às mudanças climáticas em espaços urbanos.
Por outro lado, “a mitigação está mais ligada ao controle e à prevenção das mudanças climáticas em si, evitando o aumento da temperatura média global”, explica Yosef. A partir dessa premissa, desenvolve-se uma série de instrumentos jurídicos que servem de baliza a políticas públicas.
Marco significativo na legislação brasileira é o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA), criado em 2016, atualmente em processo de atualização. O PNA propõe medidas para integrar a adaptação climática a diversos setores da sociedade – Yosef exemplifica citando as regiões costeiras, que precisam se preparar para o aumento do nível do mar, e as cidades, que devem incorporar o planejamento urbano à realidade das mudanças climáticas.
Em São Paulo
De 1990 a 2023, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), órgão científico da Organização das Nações Unidas, publicou seis relatórios de avaliação, trazendo dados de ponta de ciência climática. No último deles, o IPCC estima que, em todo o planeta, 3,3 a 3,6 bilhões de pessoas vivem em contextos de alta vulnerabilidade às mudanças climáticas.
“Os municípios acabam sendo a ponta dos efeitos dessas mudanças. Quem vai sentir, em termos de capilaridade, é sempre o município”, comenta Yosef. É por isso que entende-se, no direito ambiental brasileiro, que os municípios são a autoridade imediata para impedir que a população sofra com os impactos de eventos extremos.
“E o que São Paulo vem fazendo?”, indaga a professora Adriana Sandre. “Um primeiro ponto extremamente importante foi o Plano de Ação Climática do Município de São Paulo [PlanClima], divulgado em 2020”.
Para a professora, o necessário agora é “sentar e sistematizar como esse plano de ação climática do município pode ser implantado”, de modo a torná-lo mais prático e eficiente. Um dos objetivos do Plano é atingir a neutralidade das emissões de gases de efeito estufa até 2050, conta Adriana. Mas, “falta nele uma forma de colocar indicadores, formas de cumpri-lo”.
Yosef Fawcett diz que “apenas 7% dos municípios possuem legislação climática”. E o que hoje é observado no município de São Paulo é enfrentado por outras cidades brasileiras. O advogado retoma os episódios da tragédia climática em Petrópolis em 2022, com 4 mil desabrigados e 235 mortos, e o das chuvas em São Sebastião em 2023, com 64 mortos – 52 só na Vila Sahy, bairro pobre da cidade.
Há uma necessidade urgente das cidades adotarem medidas mais específicas para lidar com essas situações. “Melhorar a infraestrutura urbana, como o transporte público e a habitação em áreas seguras, já faz uma grande diferença”, afirma Fawcett.
Empecilhos
O município de São Paulo, apesar de não ser o primeiro, destaca-se como um dos pioneiros na implementação de políticas climáticas no Brasil. Em 2009, aprovou sua própria legislação climática, antes mesmo do governo federal. A cidade estabeleceu uma série de medidas visando o controle das emissões de gases poluentes, a criação do Comitê Municipal de Mudança do Clima e Ecoeconomia, além de planos de drenagem urbana, ação climática e um sistema de defesa civil estruturado.
No entanto, apesar das iniciativas, a complexidade e o tamanho da cidade apresentam desafios na aplicação dessas políticas.
Yosef traz a questão da poda das árvores, “problema bastante abordado em outubro, onde você não tinha um investimento e uma preocupação, sendo que isso também está ligado às políticas climáticas”. Para ele, falta uma integração adequada entre os diferentes níveis de governo: “Cada órgão está ali numa ilha, tratando de um assunto específico e, muitas vezes, você não tem uma visão transversal de como encaixar as políticas.”
Para o advogado, um dos exemplos desta desconexão é o esvaziamento das subprefeituras, que, embora sejam uma linha de frente no atendimento de necessidades locais, têm visto seu poder e capacidade reduzidos ao longo dos anos.
Adriana Sandre destaca que, embora São Paulo tenha recursos financeiros suficientes, a cidade não demonstra interesse em implementar mudanças eficazes na infraestrutura elétrica, como o enterro da fiação. Ela aponta que, tanto a municipalidade quanto a Enel não têm o compromisso necessário para a mudança, já que “é conveniente” manter a fiação aérea.
Uma das soluções encontradas pela Prefeitura tem sido elevar os postes para permitir que as árvores cresçam sem interferir na fiação, especialmente em bairros como Alto de Pinheiros e Vila Madalena. No entanto, a medida não resolve a questão de forma definitiva, e o aterramento continua sem ser prioridade.
Desde 2005, há uma lei municipal que torna obrigatório o enterramento de fios. No ano seguinte, o governo de Gilberto Kassab (atualmente no PSD) previa o aterramento de toda a fiação elétrica da cidade em 24 anos. Para que o objetivo fosse cumprido, a AES Eletropaulo, concessionária da época, teria de converter 250 km de fiação aérea em subterrânea por ano. A execução não avançou.
Durante a gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT), foi proposto novo projeto de aterramento, barrado pela Justiça em diferentes instâncias, chegando até o Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Por sua vez, João Dória (PSDB), em 2017, prometeu 52 km de fiação enterrados até o ano seguinte. Desde então, cerca de 65 km de escavação foram concluídos.
Hoje, a cidade de SP tem menos de 0,3% de sua rede aterrada, conforme a Associação Brasileira das Prestadoras de Serviços de Telecom Competitivas (TelComp).
Vulnerabilidade
Embora esta reportagem se concentre no episódio do apagão, a questão energética é apenas parte dos problemas causados pelas chuvas. Segundo levantamento da Agência Pública, de janeiro de 2024, cerca de 200 mil habitações paulistanas estão localizadas em áreas de deslizamento. Ou, ainda, 23,9% do território da capital é composto por regiões vulneráveis, suscetíveis a alagamentos, afundamentos e inundações, conforme dados cartográficos da última Carta Geotécnica de Aptidão à Urbanização, também de 2024.
Como aponta Adriana, os impactos mais severos dessas questões afetam, majoritariamente, a população das periferias. “Uma onda de calor, por exemplo, atinge a todos, mas boa parte da população da periferia não tem ar-condicionado e mora em casas com ventilação precária”, explica. “As pessoas mais afetadas certamente foram aquelas que não têm acesso à infraestrutura urbana adequada”.
Em casos extremos, como deslizamentos e enchentes, a Prefeitura possui programa de mitigação. Famílias que concordarem em deixar construções irregulares em áreas de risco podem ser indenizadas com o valor de avaliação do imóvel e bonificação e também há a possibilidade de auxílio aluguel no valor de R$ 600, por até 18 meses.
No entanto, o projeto é muito criticado. Em artigo do LabCidade, laboratório da FAU-USP voltado para o estudo e análise das políticas urbanas e habitacionais, produzido por pesquisadoras, doutorandas e professoras, é apontado que tal política apenas joga o problema para a frente: “Muitas [famílias] não têm mais aceitado o Auxílio Aluguel, pois sabem que não vão conseguir alugar um local adequado com o valor do benefício”, diz o texto. E, no caso da indenização, o valor, ainda que “aparentemente elevado, apenas compra um novo lote ou moradia disponíveis nos mercados informais, possivelmente em nova área de risco.”

Há esperança?
Segundo Yosef, nem toda comunidade exposta a riscos climáticos necessariamente se torna vulnerável. Os Países Baixos, lembra, são um país inteiramente abaixo do nível do mar, o que o torna extremamente exposto ao risco do aumento do nível do mar. No entanto, “não é considerado um país vulnerável, pois tem uma capacidade adaptativa muito bem desenvolvida, com políticas públicas e infraestrutura que impedem que o risco se transforme em desastre”, explica.
Enquanto isso, a implementação de políticas climáticas nos municípios brasileiros avança de forma gradual. Yosef destaca que “a maioria das iniciativas que a gente teve aqui no Brasil de construção de legislação em políticas climáticas locais veio muito pelo apoio técnico de redes internacionais”. Para o pesquisador, “isso mostra a importância de você ter uma capacitação técnica para que os municípios consigam incorporar essas variáveis climáticas”.
Adriana Sandre reconhece a qualidade técnica da política municipal de mudanças climáticas de São Paulo, mas reforça que a verdadeira questão ainda reside na implantação eficaz dessas iniciativas. E menciona, esperançosa, o programa Periferia Viva, lançado recentemente pelo governo federal, que traz um projeto de urbanização de favelas focando em diversos eixos – entre eles, o ambiental. “O programa é focado em melhorar o conforto térmico, a permanência nas áreas, a gestão das águas e a prevenção de deslizamentos de encostas, que são problemas recorrentes”, conta. “A implantação vai começar agora. A gente vai ver como vai funcionar, mas as ideias são bastante interessantes.”
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