Por Giovanna Castro, Julia Martins, Pedro Malta, Tatiana Couto e Yasmin Teixeira
Desde a pandemia de covid-19, o número de crianças e adolescentes com acesso à internet aumentou de forma significativa. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua sobre Tecnologia da Informação e Comunicação (Pnad/TIC), em 2022, 54,8% das crianças entre 10 a 13 anos têm o próprio celular. Dos 14 aos 19 anos, o percentual chega a 84,7%. Esses números causam preocupação aos especialistas.
De acordo com um estudo liderado por Yajun Chen, professor na Universidade de Sun Yat-sen, China, uma em cada três crianças e adolescentes tem miopia (distúrbio que afeta a visão de objetos a longas distâncias) ou é incapaz de ver claramente objetos à distância. Os diagnósticos triplicaram entre 1990 e 2023 e, ainda segundo a pesquisa, continuarão a crescer. A expectativa é de mais de 740 milhões de casos até 2050.
Para os pesquisadores, os dados também estão subnotificados. A pandemia de covid-19, que começou em 2020 e acabou em 2022, fez com que os pais e responsáveis de crianças e adolescentes deixassem de levá-las para as consultas de rotina. Além da falta de diagnósticos, a pandemia também fez com que jovens passassem mais tempo em casa e diante de telas. Por conta disso, além dos distúrbios visuais, aumentaram os casos de diagnósticos de problemas de coluna e de audição já na juventude.
Diagnósticos pré-pandêmicos
Antes da pandemia, a principal preocupação referente ao surgimento de problemas de coluna em crianças e adolescentes estava relacionada ao excesso de peso nas mochilas escolares. Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), o esforço repetitivo durante essa fase é responsável por 70% dos problemas de saúde da vida adulta. Os especialistas recomendam que o máximo a ser carregado seja 10% do peso do aluno.
A visão, por outro lado, era motivo de preocupação antes do período pandêmico. Em 2015, a OMS já considerava a miopia uma “epidemia” e quatro anos depois, no Relatório Mundial da Visão, foi constatado que 2,2 bilhões de pessoas sofriam com algum tipo de distúrbio ocular. No mesmo período, o Conselho Brasileiro de Oftalmologia estimava que cerca de 23 milhões de jovens entre 5 e 15 anos da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Venezuela apresentavam algum problema de visão.
No caso da audição, a perda auditiva durante a infância estava associada principalmente a doenças que acometem a mãe durante a gestação e podem causar surdez congênita — como rubéola, sarampo, sífilis e toxoplasmose — e a traumas e doenças que afetam o sistema auditivo das crianças, como a otite média. Mas, desde o longo período de isolamento, o aumento dos quadros de zumbido e de perda auditiva precoce em jovens se tornou uma preocupação para especialistas.
Aparecimento de distúrbios
As preocupações com problemas na coluna decorrentes do uso de computadores começaram ainda na década de 1980. Na época, ergonomistas criaram diretrizes de uso para reduzir efeitos musculoesqueléticos adversos. Porém, com o surgimento de aparelhos portáteis, como laptops e celulares, os usuários puderam transportar seus ambientes de trabalho e estudo para qualquer lugar. Isso fez com que eles adotassem posturas corporais imprevistas pelos especialistas, agravando problemas de saúde.
“O ideal é que o celular fique mais ou menos na altura dos olhos. Só que, geralmente, não fazemos isso, principalmente os mais jovens, e inclinamos a cabeça”, afirma Sílvia Maria Amado João, fisioterapeuta e professora associada da Faculdade de Medicina (FM) da USP. A coluna vertebral é formada por vértebras, discos intervertebrais, músculos e ligamentos. Em seu interior, localiza-se a medula espinhal. Suas principais funções são: sustentação, locomoção, equilíbrio e proteção dos nervos.
A professora explica que a inclinação cria o que chamamos de alavanca e causa uma sobrecarga maior nos discos intervertebrais. Em repouso, quando os ouvidos estão alinhados com os ombros, a cabeça de um adulto pesa cinco quilogramas. Ao adotar uma postura incorreta, com uma inclinação de mais de 60 graus, esse peso pode aumentar para 30 quilogramas. “A cabeça não pode ficar muito inclinada ou muito abaixada, pois isso aumenta a chance de dores nas regiões do pescoço e do ombro, o que chamamos de cervicalgia”, afirma a fisioterapeuta.
Usuários assíduos de celulares também sofrem com a Síndrome do Pescoço de Texto (do inglês Text Neck Syndrome), provocada pela sobrecarga na musculatura e nas articulações vertebrais. Ela causa dores na nuca, que podem irradiar para os ombros, e cefaleia na região posterior da cabeça. Além disso, um estudo recente publicado na revista Healthcare e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) apontou que 13% a 35% das crianças e adolescentes que utilizam aparelhos portáteis sofrem com a chamada dor no meio das costas (TSP, da sigla em inglês thoracic back pain).
Sílvia Maria Amado João ainda alerta para as consequências a longo prazo. “Podemos ter o encurtamento da musculatura e a perda da mobilidade cervical. Em casos mais graves, pode ocorrer até mesmo uma hérnia de disco”, diz. A hérnia de disco ocorre quando um dos discos intervertebrais sai da posição correta e comprime as raízes nervosas da coluna. Uma de suas causas também pode ser o sedentarismo. “Uma criança ou adolescente que passa muitas horas na frente das telas, não interage com os amigos ou faz atividades físicas”, afirma a professora.
No caso da visão, o surgimento de distúrbios pode ocorrer durante a infância, pois durante esse período o olho continua em formação e pode sofrer alterações decorrentes do uso excessivo de telas e menor tempo em atividades ao ar livre. Um estudo da Prefeitura de São Paulo apontou que, entre 2019 e 2022, o número de novos casos de miopia em pessoas de até 19 anos passou de 886 para 2.026.
Além da miopia, que dificulta ver objetos distantes, há outros distúrbios que atingem crianças e adolescentes, como a hipermetropia, que afeta a visão de objetos mais próximos do observador. Apesar de não ser um distúrbio, a Síndrome Visual do Computador também afeta essa faixa etária. Ela é caracterizada como um conjunto de sintomas agravados pela contínua utilização de telas, causando sintomas como dor de cabeça e tontura.
O uso de fones de ouvido também é uma das causas de problemas auditivos, e sua utilização prolongada tem sido motivo de aumento nas ocorrências desses problemas entre os mais jovens, como explica a professora Alessandra Giannella Samelli, do curso de fonoaudiologia do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional (Fofito) da FMUSP. “Existem documentos da Organização Mundial da Saúde relatando sobre isso, e estão sendo feitas, inclusive, várias ações educacionais a respeito desse perigo, para orientar o jovem para um uso mais seguro”, diz Samelli.
O documento mais abrangente da OMS a respeito desse assunto é o Relatório Mundial sobre Audição, lançado em 2021. Apesar de não se aprofundar nas causas dos problemas auditivos, a Organização traz a projeção de que, até 2050, 2,5 bilhões de pessoas terão algum grau de perda auditiva. O estudo foi conduzido e publicado durante a pandemia, mas não informa se o período pandêmico aumentou ou diminuiu a incidência de casos.
“Se isso piorou depois da pandemia com maior tempo de uso, não li nenhum estudo que fez essa avaliação” afirma Alessandra, em concordância com o Relatório. “Mas sabemos que o risco envolve uma combinação entre tempo e intensidade. Mesmo não usando com o volume tão intenso, se existe a possibilidade de usar o computador sem fone de ouvido, é mais indicado, porque a intensidade é sempre maior quando o som está perto do tímpano”. Ela ressalta ainda que o ideal é nunca ultrapassar 50% do display de volume do aparelho, e diminuir o tempo de uso caso seja necessário aumentar a intensidade sonora.
Reflexos nas escolas
A professora Nicolle Lages, que leciona na rede estadual de São Paulo há 24 anos, diz ter ouvido queixas de dores nas costas de alguns alunos. Segundo a professora, muitos deles têm uma má postura e passam todo o período de aula com as costas inclinadas. “Direto falo para meus alunos se ajeitarem nas carteiras. Reclamam, mas já falei que é porque eu me preocupo”, diz.
A professora também afirma que parte de seus alunos do sétimo ano usam óculos, quantia que pode aumentar, já que “os que não usam têm que forçar a vista para enxergar a lousa”. Para Lages, as dificuldades podem estar relacionadas ao uso constante do celular, inclusive durante as aulas.
No dia 12 de novembro de 2024, a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) aprovou o projeto de lei que proíbe o uso de celulares por estudantes de escolas públicas e privadas paulistas, inclusive durante o intervalo entre as aulas.
Tratamentos e prevenção
Sílvia Maria Amado João destaca a importância de medidas ergonômicas para a prevenção de problemas que afetam a coluna. “O computador precisa estar na altura dos olhos e ao sentar na cadeira, os pés precisam estar apoiados no chão, para que a descarga de peso não seja feita de forma inadequada”, explica. “O ideal é que [a cadeira] também tenha apoios para os cotovelos e que a mesa não esteja muito alta, assim os ombros não serão sobrecarregados”, continua.
Outra medida é a adoção de pausas após longos períodos na frente das telas. “A cada uma hora, uma pausa de pelo menos dez minutos. Isso é válido para crianças, adolescentes e adultos”, afirma a fisioterapeuta. Ela pontua que exercícios simples de alongamentos são uma prática indicada para a prevenção de problemas.
A professora também é uma das criadoras do programa multidisciplinar Projeto Educação em Saúde: Bons Hábitos Posturais – Coluna Feliz. Ele foi criado em 2018, a partir do edital Aprender na Comunidade, da Pró-Reitoria de Graduação (PRG) da USP. O programa atua na criação de campanhas e materiais informativos sobre bons hábitos de postura, destinados principalmente para crianças e adolescentes de escolas públicas.
Para garantir a saúde dos olhos, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) recomenda que crianças entre 0 e 2 anos não tenham contato com telas. Dos 2 aos 5 anos, o uso deve ser de, no máximo, uma hora por dia. Entre os 6 e 10 anos, o limite recomendado é de duas horas por dia e, dos 11 aos 18 anos, o período máximo diante de telas é de três horas por dia. A Sociedade Americana de Oftalmologia indica pausas de 1 minuto a cada 20 minutos de uso.
Também é recomendado que pais e responsáveis estejam atentos aos sinais de que seus filhos estão apresentando dificuldades de enxergar objetos. No caso da miopia, que é hereditária, caso algum dos pais apresente o distúrbio, é necessário que as crianças sejam submetidas a exames oftalmológicos.
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