O campo das Poéticas Visuais ocupa uma posição peculiar na pesquisa da arte. Diferente da estética e da crítica, que abordam as obras e os artistas por meio de um olhar exterior e alheio ao processo da criação, este campo trabalha na confluência entre o fazer prático e o estudo deste fazer. Serve, portanto, como uma maneira do artista – que se coloca na posição de pesquisador – catalogar e compartilhar seus achados e estudos acumulados ao longo do desenvolvimento de seu próprio processo de criação.
Ela, — com vírgula mesmo —, tese de doutorado da artista e pesquisadora Ana Paula Albé no campo das Poéticas Visuais, defendida ainda em janeiro deste ano, é um livro que trabalha justamente nesses termos. Misturando fotografia, narrativa, poesia e uma gama vasta de repertórios da pesquisa artística a uma escrita em primeira pessoa, a obra propõe, ao mesmo tempo, criar um autorretrato e refletir sobre a presença espectral das imagens no contexto da arte contemporânea.
“Estava dentro de um ambiente acadêmico. Podia ignorá-lo e produzir uma peça de arte, mas eu também podia tentar transformar a minha pesquisa acadêmica em um objeto de arte”, afirma Albé. E adiciona: “Queria me encaixar dentro da academia, então queria um livro que coubesse na prateleira, que fosse cadastrado como tal, mas que propusesse uma nova leitura, que propusesse toda essa vertigem de entender que diabo de imagem é essa.”
A confecção do trabalho teve início em 2019 e perpassou todo o período da pandemia, o que moldou o próprio formato da obra. A pesquisadora relata que, o que começou como uma exposição, frente às restrições impostas no período, teve que ser comunicado pelo texto; Foi ficando cada vez mais hermético”. “Comecei a juntar os textos que diziam respeito às experiências que tive durante o período de pesquisa até a qualificação. São experiências que passei e todas elas são em primeira pessoa. Não é para achar que sou eu, mas existe uma autoria que eu queria que fosse deslocada para o leitor e assim se daria a experiência do texto”.
O prefácio do livro, uma breve anedota, narra a vez em que a autora, incumbida de escrever uma história, encontrou toda sua escrita tomada pelo personagem de um homem qualquer que, pela mera presença, atravancou o desenvolvimento de qualquer outra narrativa. A solução para o entrave? Matá-lo de susto. Albé conta que queria que o homem viesse como um intruso no livro: “Era como se você estivesse aberto a tudo que pudesse acontecer e o que acontecia era que o meu protagonista era homem, aí fiquei muito brava. E isso agora se configurou de fato como um exercício de apropriação da minha autoria. Eu não quero que ele seja a primeira pessoa, ele não é a pessoa mais importante da minha história”.
A autora clama essa autoria para, então, partir para um exercício de autorretrato de um sujeito distintamente feminino. A pesquisadora conta que “essa mulher que a gente está acostumada a ver, ela é uma mulher que na verdade é uma mulher inventada pelo homem, pelo desejo do homem – o que também não é novidade, todo mundo já falou disso. Então qual é a outra mulher? Qual é o meu autorretrato? Que lugar é esse? Cabe muita coisa aí dentro porque tudo que eu falar vai ser um lugar que já foi visitado pela minha experiência nesse mundo patriarcal e não vai dar conta porque não é só meu, eu quero que seja de todo mundo, eu quero que seja esse lugar que não existe, esse lugar de trabalho, de resistência da mulher. E aí fui atrás das minhas das minhas referências artísticas de como é que elas exploram você dentro do trabalho delas”.
Para as fotografias, Albé conta que muitas vieram de seu “saco de imagens” de trabalhos anteriores. Uma das obras apresentadas, Tempoluz, que chegou a ser exposta em uma universidade indiana ano passado, mostra diversas fotos do rosto de uma mesma mulher sob diferentes velocidades de obturador, que determina quanta luz a câmera recebe. Outro conjunto de imagens do livro foi retirado de um vídeo antigo da autora, Ré, no qual uma mulher anda de costas, sem olhar para trás, da cidade em direção ao mato, o que, segundo Albé, comunica uma certa volta da figura feminina à natureza.
O livro se divide em três momentos. Os primeiros dois são majoritariamente textuais, apresentando repertórios da pesquisa da autora, com ênfase grande nos escritos do filósofo francês Georges Bataille e referências mitológicas como o mito de Orfeu e Eurídice – que comunica a visão da autora sobre o próprio espectro da imagem, num jogo de luz e sombra, artista e imagem –, entremeados por trabalhos fotográficos e fragmentos de poesia concreta, sempre fazendo um jogo de significado com a própria diagramação das páginas.
O terceiro movimento, o clímax, é uma explosão de imagens que reune os trabalhos da pesquisadora e de outros artistas. Segundo a autora, esta é a virada para um momento mais feminino da obra: “Apesar de ele ser um livro, um trabalho acadêmico, achava que tinha que ter um clímax, porque a pessoa ia chegar ali já de saco cheio. Então pensava de fato como uma montagem de filme”. Houve uma grande atenção dada para a vertente cinematográfica do trabalho, desde os fragmentos de filme apresentados, os trechos do cineasta Jean Luc Godard até a própria frase que encabeça o sumário: “Esse livro não é um filme mas poderia ser”.
“Eu tinha uma vontade de que a pessoa lendo achasse que eu estava falando dela”, finaliza. “É um espelho, é tentar espectralizar a própria escrita.”
Ana Paula Albé estudou comunicação social na PUC-RJ e fez seu mestrado, em 2012, assim como seu doutorado na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), ambos sob a orientação do artista Carlos Fajardo. Não há planos para a publicação física de Ela,, mas o trabalho está disponível para a leitura no Repositório da Produção USP.
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