Os povos indígenas contribuem para a biodiversidade e preservação da floresta amazônica há milhares de anos. A tese de doutorado, A influência de aspectos socioculturais dos povos indígenas na estrutura, diversidade e composição da floresta amazônica, do Instituto de Biociências (IB) da USP explora como as visões de mundo, os hábitos cotidianos e as relações sociais dos povos indígenas têm conexão com as transformações da paisagem do bioma.
Juliano Franco de Moraes, autor da pesquisa, explica que os aspectos socioculturais dos povos indígenas envolvem a visão de mundo, as instituições sociais, o conhecimento tradicional e as práticas de manejo, que promovem interferências diretas no meio ambiente. “O conceito de visão de mundo inclui suas cosmologias, algumas religiões, além de questões éticas, é a forma como enxergam o mundo. As instituições sociais compreendem os modos de se relacionar, as organizações políticas e os tabus alimentares envolvidos. O manejo é a maneira que interferem no mundo por meio da transformação da paisagem, abertura de roças, da caça e da coleta. E o último aspecto sociocultural, o conhecimento tradicional está relacionado com a experiência cotidiana. Por meio da observação, experimentação, eles adquirem conhecimento empírico acerca de plantas, animais e o ambiente como um todo.”
A transformação da paisagem pode ser feita a partir do uso do fogo, criação de áreas de plantio e dispersão de sementes. “Os aspectos socioculturais se relacionam com os aspectos ecológicos. Os aspectos ecológicos incluem a seleção de frutos, dispersão de sementes e domesticação de espécies, que consiste na promoção de novas variedades de espécies por meio da seleção de populações. Então, a mandioca que se come hoje na Amazônia, por exemplo, não é a mandioca selvagem que existia há milhares de anos, ela passou por um processo de domesticação. Todas essas práticas geram novos padrões e processos ecológicos florestais”, explica Juliano.
O pesquisador procurou entender como os aspectos socioculturais estão relacionados na adoção de determinadas práticas de manejo. Então, um dos objetivos do estudo foi compreender o que leva os povos indígenas a plantar, selecionar, dispersar ou aniquilar indivíduos de uma determinada espécie. Ele enfatiza que a cosmologia, o conhecimento tradicional e as relações sociais afetam a forma como diferentes povos indígenas se relacionam com a natureza e promovem mudanças no meio ambiente.
Os indígenas alteram os padrões ecológicos da floresta por meio do manejo. Os padrões que sofrem interferência são abundância, composição e estrutura das espécies. “A abundância se refere à quantidade de indivíduos de uma determinada espécie que existe em um lugar. Uma forma de modificar a abundância é retirar indivíduos de espécies que não são interessantes para eles e plantar outras que lhes interessam no lugar. Já a composição indica a diversidade de espécies, pois mede o número de espécies diferentes que existem. E o último é a estrutura, que se refere ao tamanho, largura das árvores, e pode ser modificada por meio de uma poda para entrar mais luz, por exemplo, deixando as árvores crescerem mais.”
A pesquisa também aponta a relação da diversidade linguística com os padrões ecológicos, já que algumas espécies só existem em lugares habitados por falantes de determinada língua. Juliano conta que a diversidade linguística criou uma diversidade biológica porque povos que falam diferentes línguas se relacionam com o mundo de forma diferente. “Como cada povo se relaciona com a floresta de acordo com os seus aspectos socioculturais, e cada língua possui aspectos distintos entre si, logo as transformações no ambiente serão diferentes a depender da língua falada por determinado povo, promovendo a biodiversidade amazônica”, esclarece.
Para entender melhor a relação entre a paisagem e a influência das práticas indígenas, Juliano fez um estudo de caso com o povo indígena Zo’é, que residem no norte do estado do Pará. A cosmologia Zo’é entende o mundo por meio da perspectiva de que todos os seres vivos são dotados de cultura, ou seja, possuem sociabilidade. A partir de uma relação com o macaco-aranha, os Zo’é geram mudanças nos padrões ecológicos da floresta através da dispersão territorial.
“Ao se retirarem da área onde viviam, ali nasce uma floresta nova. A migração dos Zo’é, impulsionada pela relação com o macaco-aranha, promove manchas florestais no tempo-espaço. O fato deles terem derrubado a floresta e saído dali já modifica o meio ambiente”, conta Juliano. “Então, uma visão cosmológica, o entendimento de que o macaco possui cultura e logo sociabilidade, e a procura de locais para viver em que esse animal esteja presente provocam mudanças na natureza. Tais mudanças se dão uma vez que novas biodiversidades surgem nos locais abandonados, gerando assim um mosaico de diferentes manchas ecológicas”, completa.
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