Violências sofridas durante a Ditadura Militar ainda afetam comunidades indígenas

Povos indígenas do Brasil lutam contra o marco temporal enquanto enfrentam consequências de violações passadas

Para Marco Antonio Delfino, procurador da República, as violações impostas aos povos originários no presente estão relacionadas com as do passado. [Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil]

Por Bárbara de Aguiar e Ester Nascimento

A tese do marco temporal das Terras Indígenas (TIs) é uma questão antiga nas esferas políticas e de direitos humanos do país. O texto determina o direito dos povos originários à demarcação de terras somente em áreas comprovadamente ocupadas antes da implementação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. 

Em 2023, o debate retornou aos holofotes com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 21 de setembro, que concluiu pela inconstitucionalidade da matéria. Para a maioria dos ministros (nove votos favoráveis e dois contrários), a situação do território na data de promulgação da Constituição não pode ser usada para definir se uma área tem ou não ocupação tradicional de comunidades indígenas.

Entretanto, ainda no mesmo mês, em sentido contrário à decisão do STF, o Senado aprovou o projeto de lei (PL) 2.903/2023, que fixa o marco temporal no dia da promulgação da Constituição Federal. Em outubro, o presidente Lula sancionou o PL como Lei 14.701, de 2023 (Lei do Marco Temporal), mas vetou os pontos principais. Em 14 de dezembro, o Congresso Nacional derrubou parte dos vetos e promulgou a lei.

Mauricio Terena, coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), doutorando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista no tema, afirma que o marco temporal “coloca os povos indígenas numa situação de extrema vulnerabilidade no que diz respeito ao acesso ao direito territorial e à continuidade da vida enquanto povos que dependem do território para terem uma ligação cultural”. Acrescenta, ainda, que a tese representa uma perda de proteção para o meio ambiente: “As ameaças às terras indígenas podem afetar a todos, os territórios demarcados são responsáveis por uma proteção ambiental muito mais robusta do que terras não demarcadas ou terras comuns.”

Sessão solene realizada durante o Acampamento Terra Livre 2024. [Imagem: Lula Marques/Agência Brasil]
Desde a promulgação da lei, diversos representantes indígenas vieram a público para reforçar a inconstitucionalidade da medida. A Apib, em conjunto com os partidos políticos Rede Sustentabilidade e Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no STF, em que pede que a nova lei seja declarada inconstitucional e suspensa até a finalização do julgamento na Corte. 

Além da Apib, o Partido Verde (PV), Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e Partido Democrático Trabalhista (PDT) também apresentaram ações de inconstitucionalidade. Em contrapartida, o Partido Progressista (PP), Republicanos e Partido Liberal (PL) solicitaram ao Supremo a validação da lei por meio de Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC). 

Em abril de 2024, o ministro do STF Gilmar Mendes, relator das ações apresentadas, suspendeu os processos relacionados à Lei 14.701 que estavam sob sua relatoria e propôs um processo de conciliação e mediação para mitigar o “conflito social subjacente à temática” e evitar “decisões judiciais conflitantes aptas a causar graves prejuízos às partes envolvidas (comunidades indígenas, entes federativos ou particulares)”, conforme nota enviada pela assessoria do ministro.

A decisão desagradou ao movimento indígena. Segundo Terena, ao invés de reafirmar a jurisprudência da Corte, “o ministro colocou os direitos indígenas em negociação”. O advogado explica que o processo de conciliação abre caminho para um debate em condições desiguais entre setores do Congresso, principalmente ruralistas e oposição, o que resulta no cerceamento dos direitos indígenas.

Essa discussão foi pautada na 20ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), mobilização que ocorreu dos dias 22 a 26 de abril, em Brasília (DF) e reuniu mais de nove mil pessoas, representando mais de 200 povos pela defesa dos direitos indígenas. Com o tema “Nosso marco é ancestral. Sempre estivemos aqui”, o movimento reivindicou as demarcações das Terras Indígenas e o fim da tese do marco temporal. 

Maurício Terena e os coordenadores-executivos da Apib, Dinamam Tuxá e Kleber Karipuna durante coletiva de imprensa do ATL 2024. [Imagem: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil]
Na carta final do ATL, as organizações do movimento indígena reiteram que a aplicação da Lei 14.701 equivale a uma declaração de guerra aos povos e territórios indígenas. “Alertamos que essa ruptura intencional resultará no aumento das violências e das políticas e práticas de genocídio historicamente promovidas tanto pela sociedade quanto pelo próprio Estado contra os povos indígenas. Desde os períodos mais remotos da história até os dias atuais, incluindo o legado sombrio da Ditadura Militar, cujas consequências ainda ecoam em nossas vidas”, reforça o documento.

Vilipendiados ao longo da história

Nos dias 4 e 5 de junho, o Seminário Nacional Justiça de Transição para Povos Indígenas uniu representantes políticos, defensores dos direitos humanos e comunidades indígenas de todo o Brasil para debater mecanismos de não repetição das violências registradas contra os povos originários.

Durante o evento, momentos de violações dos direitos da população indígenas durante a Ditadura Militar foram relembrados e Eliel Benites, representante do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), comentou a importância da memória para a manutenção de direitos: “a violência ao longo da história é legitimada quando a esquecemos, então é essencial, hoje, a gente promover a política da memória, principalmente para as novas gerações indígenas.”

Da esquerda para direita: Eliana Peres Torelly de Carvalho e Eliel Benites durante fala no Seminário Nacional Justiça de Transição para Povos Indígenas. [Imagem: Tukumã Pataxó e Than Pataxó/Apib]
Entre os anos de 1964 e 1985, o regime militar se instaurou no Brasil e fez vítimas em todas as esferas da sociedade por meio de torturas, censuras e assassinatos. Os povos indígenas não foram excluídos do tratamento desumano. De acordo com o volume dois do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado em 2014, mais de 8 mil indígenas foram assassinados durante a Ditadura. A quantidade, porém, provém da investigação de apenas dez povos – cerca de 3,3% das etnias existentes no Brasil –, o que significa que um número muito maior de vítimas permanece nas sombras.

O Relatório Figueiredo, escrito em 1967 pelo então procurador Jader de Figueiredo Correia, evidencia com detalhes todas as violências que o regime militar impôs aos povos originários. As sete mil páginas do documento relatam que os indígenas enfrentaram fome, trabalho forçado, proibição da língua materna, expulsão de seus territórios, exploração sexual e até exposição a doenças. O descaso e desumanização dos grupos indígenas pelo governo e pelo Serviço Nacional do Índio (SNI) – órgão que antecedeu à Fundação Nacional do Índio (Funai) – pode ser resumido a uma frase do Relatório: “A falta de assistência aos povos indígenas é a forma mais eficaz de matar sem deixar vestígios.”

O Relatório Figueiredo, um dos mais importantes documentos sobre os crimes cometidos na Ditadura contra os povos indígenas, ficou desaparecido durante 44 anos e só foi encontrado em 2013. [Imagem: Reprodução/Relatório Figueiredo]

Anistiados políticos

Os povos Krenak, da TI Krenak de Sete Salões, localizada no município de Resplendor, em Minas Gerais, e Guarani Kaiowá, da TI Guyraroká, situada no município de Caarapó, em Mato Grosso do Sul, conquistaram o reconhecimento das violências sofridas na Ditadura em abril deste ano, “apenas” 60 anos depois do golpe militar.

A decisão foi da Comissão da Anistia, órgão ligado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, que revisou a negativa dada aos Krenak e aos Guarani Kaiowá durante o governo Bolsonaro e transformou esses povos nos primeiros anistiados políticos coletivos da história do Brasil. Apesar da conquista, o título é simbólico e não representa a reparação das violações sofridas nos anos do regime militar. 

Edmundo Dias, procurador da República do Ministério Público Federal (MPF) especializado em direitos dos povos e comunidades tradicionais, relembra a criação do Reformatório Krenak em 1969, que, com o apoio da Polícia Militar do Estado de Minas e a Funai, funcionava como um presídio para indígenas considerados rebeldes. “Ali foi instalada uma verdadeira polícia de costume, como proibição de fala da língua materna, costumes culturais e várias outras questões mediante a instituição de prática de tortura e violações culturais”, comenta Dias no Seminário Nacional.

Apesar de receber o nome do povo Krenak, o Reformatório recebia indígenas de várias etnias. Membros do povo Guarani Kaiowá, por exemplo, também foram detidos e torturados no local.

Além da criação do Reformatório, a prática da Guarda Rural Indígena, que recrutava e militarizava indígenas em todo o país para perseguir seus iguais, também foi um marco entre as violações cometidas pela Ditadura. O curta Arara, encontrado no Museu Nacional do Índio, exibe dois guardas indígenas marchando com outro indígena pendurado em um pau de arara. “Era realmente uma forma de hierarquização e militarização dos povos indígenas”, explica o procurador.

Em registro do curta Arara, indígenas alinhados juram à bandeira na conferência de formatura da Guarda Rural Indígena. [Imagem: Divulgação/Museu Nacional do Índio]

Perdas do passado que afetam o presente

Entre as muitas violações do período, a retirada forçada de povos indígenas de seus territórios era a mais comum. O volume dois do relatório final da CNV traz relatos de grupos que foram expulsos por fazendeiros, fugiram em função do assédio e ameaças dos colonos ou foram manipulados por missionários evangélicos, que ofereciam vantagens aos indígenas que aceitassem deixar suas terras. 

Um dos casos mais emblemáticos de deslocamento forçado envolve o povo Avá-Guarani, das TIs Tekoha Guasu Guavira e Tekoha Guasu Ocoy Jakutinga, localizadas no oeste do Paraná, e a implementação da Usina Hidrelétrica (UHE) Itaipu Binacional entre Brasil e Paraguai na década de 1970.

Itaipu foi a maior hidrelétrica do mundo durante 21 anos. Hoje, ocupa o segundo lugar no ranking mundial, atrás da Hidrelétrica das Três Gargantas, inaugurada na China em 2003. [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]
Celso Japoty Alves, representante do povo Guarani Yvyrupa, expõe que a construção da Barragem de Itaipu expulsou e espalhou o povo Avá Guarani da região, além de promover o alagamento de diversas aldeias, áreas sagradas e cemitérios indígenas próximos ao rio Paraná. “Estamos lutando há 42 anos contra o empreendimento da UHE Itaipu Binacional, que foi construída na época dos militares. Meu povo foi destruído nessa região”, conta Japoty.

A inundação e a violência física, entretanto, não foram os únicos métodos usados para completar a expulsão desse grupo da região, conforme o relatório Avá-Guarani: a construção de Itaipu e os direitos territoriais, feito a pedido de Raquel Dodge, ex-procuradora-geral da República. O documento afirma que Itaipu, a Funai, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e o Governo do Paraná agiram de modo coordenado para inviabilizar a presença dos Avá-Guarani em suas terras. Os “critérios de indianidade” estabelecidos negaram a identificação de diversos indígenas ao classificá-los como posseiros, para ocultar o real quantitativo de população originária no local.

A Barragem de Itaipu representa a participação direta do Estado na usurpação de terras dos povos indígenas e, para Celso, a demarcação dos territórios tomados pela Hidrelétrica é urgente, pois “quando estamos numa área não demarcada, a gente não tem direito à saúde, à educação, nada”.

Reparação e restituição dos direitos territoriais

Os processos de expulsão e remoção dos povos indígenas de seus territórios durante o período da Ditadura caracterizaram-se como a força motriz para todas as graves violações de direitos humanos cometidas contra povos indígenas no período. Ainda, segundo o relatório da CNV, a emissão de falsas certidões negativas sobre a existência de grupos indígenas nos territórios foi um dos mecanismos utilizados pelos órgãos de Estado para legitimar esse processo de expropriação em todo o país.

As perdas territoriais sofridas pelos povos indígenas durante a Ditadura Militar demonstram a incoerência da tese do marco temporal, uma vez que é comprovado o histórico de expulsões e deslocamentos forçados para atender os planos governamentais e empresariais do período.

Marlon Alberto Weichert, procurador Regional da República no MPF que atua na defesa dos direitos humanos, reforça que quanto mais se produzir memória e verdade sobre esse período, mais a tese perde o sentido. “A artificialidade do marco temporal vai estar demonstrada, porque poderemos exibir que em 1988 quem não estava no seu território é porque tinha sido vítima de graves violações de direitos humanos e precisam ser reparados”, explica Weichert durante o Seminário Nacional.

Da esquerda para direita: Paulo Abrão, Marlon Weichert e Maíra Pankararu durante mesa do Seminário Nacional. [Imagem: Tukumã Pataxó e Than Pataxó/Apib]
Uma das formas de reparação das violações sofridas pelos povos indígenas é a demarcação dos territórios, uma das principais demandas do movimento indígena. Ela objetiva garantir o direito indígena à terra e assegurar a proteção dos limites demarcados, impedindo a ocupação por terceiros.

Para serem regularizadas, as TIs dependem das etapas sequenciais de identificação, declaração e homologação sob responsabilidade da Funai, Ministério da Justiça e Presidência da República, respectivamente. Entretanto, o processo de demarcação pode levar até 40 anos, o que afeta a garantia e segurança territorial dos povos.

“A demarcação não é uma dádiva, é justiça, por que sem terras, quem somos nós?”, questiona Paulino Montejo, representante da Apib, “Somos povos originários e o direito à terra é originário, desde antes da Constituição do estado brasileiro”.

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