Transexuais não cirurgiadas e travestis enfrentam mais dificuldades para alterar registro civil

Judiciário ainda valoriza critérios biológicos na hora da decisão

Imagem: reprodução. Fonte: www. justificando.cartacapital.com.br

Segundo dados publicados pela ONG europeia Transgender Europe (TGEu) em 2016, o Brasil foi o país que mais matou travestis e transsexuais no mundo, tendo registrado 868 homicídios de indivíduos pertencentes a esses grupos em oito anos. Uma das inúmeras lutas que pessoas trans enfrentam ao longo de suas vidas é a alteração de seu registro civil para que ele fique de acordo com o gênero com o qual ela se identifica. No Brasil, tal procedimento ainda acontece de maneira extremamente burocrática e vagarosa. Buscando analisar as problemáticas presentes nesse processo, a pesquisadora Rachel Macedo Rocha da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, produziu a dissertação Capricho, farsa ou imitação da realidade: discursos do direito em acórdãos de retificação de registro civil de travestis e transexuais.

Em seu estudo, Rachel analisou 45 acórdãos (decisão final proferida sobre um processo por tribunal superior) de processos de retificação de registro civil de homens trans e mulheres transexuais e também de travestis. “Em minha atuação profissional, identificava que as decisões de primeira instância sugeriam um discurso sobre ‘verdades’ sempre disciplinando o nome e o sexo a partir da biologia, do binarismo de gênero, valendo-se, ainda, da ciência médica para narrar uma sentença”, conta a pesquisadora. “Gênero e sexo estavam e estão colados nas entrelinhas das decisões com as quais tive contato, então eu me ‘aventurei’ a desconfiar dessas verdades e dessas certezas das sentenças”, completa.

Rachel buscou entender qual era o discurso presente nos documentos e descobrir quem eram as pessoas que acessavam o judiciário em busca de uma prestação jurisdicional que lhes assegurasse o nome e o gênero com o qual se identificavam, e o que significava ser “homem e mulher” no discurso do judiciário. “Meu maior desafio foi identificar o que os acórdãos diziam, de quem diziam e sobre o que diziam e fazer uma crítica do que está construído e tentar desnaturalizar e desconstruir o que está produzido”, comenta.

Caminho para a mudança

Inicialmente, para solicitar a alteração do registro, a maioria dos indivíduos percorrem um caminho não muito fácil que começa com o acolhimento nos Ambulatórios de Saúde para Travestis Transexuais e mais recentemente em alguns postos de saúde, onde é feito um atendimento clínico que indica o acompanhamento no processo transexualizador, o qual inclui acompanhamento psicológico, psiquiátrico e endocrinológico. O psicólogo atua fornecendo suporte emocional a essa pessoa, o psiquiatra concede um laudo diagnosticando o indivíduo a partir de documentos patologizante. Apesar de problemática, esta ainda é uma norma oficial para o procedimento. Mas este processo ambulatorial não deveria ser requisito para retificar o nome, informa a pesquisadora.

De posse de alguns desses documentos, inicia-se a etapa judicial, na qual o indivíduo dá entrada em uma ação de retificação de nome e redesignação de gênero. Antes do juiz emitir a sentença, um promotor público se manifesta à favor ou contrário ao pedido. Parecer emitido, a ação segue ao juiz que decide se aprova ou não o pedido. Sendo o resultado totalmente favorável nesta instância, é realizada a mudança do registro civil (Certidão de nascimento) da pessoa trans em cartório.

Entretanto, muitas vezes, o Ministério Público recorre da decisão favorável do juiz e, com isso, a ação é passada para outras instâncias de poder para ser reavaliada. É nesse momento que o processo acaba se estendendo, aumentando, ainda mais, as dificuldades para pessoas que não fizeram a cirurgia de transgenitalização.

Barreiras

Apesar de em maio de 2017 o Superior Tribunal de Justiça, STJ, ter decidido que a cirurgia não é requisito para a retificação do registro civil, dos 45 pedidos analisados pela pesquisadora, 19 foram rejeitados pelo Tribunal, sendo todos eles de pessoas não cirurgiadas.

Rachel aponta que as práticas do poder judiciário não dialogam com os estudos de gênero. “O debate ainda é do direito positivado, do que significa ser ‘normal’, ‘normalizado’, ‘normatizado’; o direito ainda se vale de documentos de outros saberes para alicerçar uma sentença”, comenta.

A pesquisa ressalta que ainda há um forte apelo à conformação biológica formulando discursos contra e à favor aos pedidos de mudança do registro civil. “O discurso jurídico está imbricado de soluções médicas para constituir os sujeitos”, comenta. “O corpo é sempre lido a partir do sexo biológico. Gênero e sexo estão sempre colados no corpo. O saber médico tem autoridade de poder na recomendação do veredito final em muitos acórdãos.”

Contudo, a cirurgia de transgenitalização não é garantia que o pedido de alteração será aprovado. O Ministério Público recorreu em 14 decisões de transexuais que haviam realizado a cirurgia entre os 45 casos analisados por Rachel. “Essa prática causa estranheza se pensarmos no papel do Ministério Público enquanto defensor da ordem jurídica e dos interesses da sociedade”, aponta. “De quem e quais são os interesses da sociedade que o órgão ministerial se propõe a defender?”, questiona a pesquisadora.

Experiência

Léo Paulino Barbosa é um homem trans e realizou o procedimento de retificação recentemente. “O meu processo foi mais complicado”, comenta. “Isso porque caí nas mãos de uma juíza que, pela minha sentença, não tinha muito conhecimento sobre a demanda e de um promotor que também não ajudou em nada. Então, com essa “sorte” que tive, demorou quase 1 ano e meio”, conta.

Barbosa também fala que, em vários momentos, sofreu algum tipo de discriminação por parte das próprias instituições. “No processo inteiro a juíza me tratou no feminino”, declara. “A dificuldade está em juízes e promotores legalistas que seguem a lei, mas esquecem da CF/88, que tem como princípio basilar a dignidade da pessoa humana, seguido de outros princípios, tais como direitos de personalidade, liberdade, livre expressão da sexualidade e do gênero”, aponta.

Ele critica as exigências feitas pelos órgãos para a realização do procedimento no Brasil. “Tenho que optar entre ter todo o reconhecimento dos meus direitos com meu nome e sexo adequadamente com a entrega de laudos atestando que sou ‘doente mental’ ou ficar sem meus direitos e seguir minha vida sendo violentado, física, emocional, psicológica e socialmente sem retificar nome e sexo. Sendo que sou um homem de 47 anos que, por não ter ciência desse meu direito de retificação, vivi até os 40 na segunda opção. O reflexo foi 28 anos sem emprego formal em carteira.”

Devido à sua condição, Paulino enfrentou sérios problemas ao longo de sua vida. “Minha fase mais pesada foi logo quando comecei a buscar emprego. Depois que saí do único trabalho que tenho em carteira, em 1989, passei por centenas de entrevistas. E centenas de vezes ouvi: ‘Nós não contratamos pessoas como você!’”, revela. “Isso me levou às drogas. Vivi até os 40 em meio a violência para sobreviver”, desabafa. “Descobri as possibilidades e mudei drasticamente minha vida. Parei com as drogas, o álcool e com o cigarro, entrei na faculdade em 2014 e estou cursando Direito.”

Barbosa acredita que o procedimento pode e deve ser mais simples. “A lei precisa ser administrativa”, afirma. “A pessoa vai ao cartório, se identifica como pessoa transexual, leva as certidões provando que não deve nada ao Estado e faz a mudança na Certidão. Como são várias leis de mudança de prenome e sexo nos documentos que contemplam direitos humanos de pessoa trans. Aqui temos a Lei João Nery, que tem no texto essa possibilidade além de proteger contra discriminação”, completa.

Ele ainda sofre com a transfobia presente na sociedade: “Não consigo estágio… mas não vou desistir!”, declara. “O Léo que sempre fui de fato, agora também é de direito.”

Mudanças

Apesar dos problemas, é possível observar alguns avanços. Na cidade de Sorriso, em Mato Grosso, um juiz autorizou a retificação de prenome e gênero de uma criança de 9 anos. O objetivo foi possibilitar que a criança não sofra constrangimentos na escola. Porém, a retificação teve como condição o acompanhamento e a cirurgia de redesignação aos 21 anos. Outro caso interessante ocorreu em Camaçari, Bahia, no ano de 2015. A Defensoria Pública conseguiu uma retificação em cartório e sem laudos, a partir apenas de um procedimento administrativo, alterando nome e redesignando o gênero de uma mulher transexual. Mais recentemente, em 2016, uma mulher trans de São Bernardo, conquistou a retificação de nome e redesignação de gênero, na vara de família daquele juízo, sem qualquer documentação que atestasse a sua “patologia”.

“É preciso pensar o direito além das identidades fixas e sobre o que pode parecer “estranho”, sobre uma mulher cuja identidade civil seja reconhecida como feminina muito além de uma vagina, e que o judiciário não seja o único caminho possível de acesso à retificação do documento civil”, destaca.

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