Bioeconomia na Mata Atlântica se estrutura como forma de combater o desmatamento

Na esteira do mês em que se comemora o Dia Mundial do Meio Ambiente, bioma mais devastado do Brasil é berço de projetos que reconectam a sociedade à natureza, em respeito aos seus limites

Texto alternativo: Paisagem de floresta com úm homem olhando para a copa das árvores e outro tirando uma foto com o celular.
Rafael Fernandes mostra vegetação nativa no Parque Villa Lobos, em São Paulo, para visitantes do Viva a Mata [Imagem: Nicolle Martins]

Por Diogo Silva, Gabriel Carvalho, João Chahad, Lucas Lignon e Nicolle Martins

A Mata Atlântica já foi o bioma de maior biodiversidade do Brasil e um dos mais importantes da América Latina, atrás somente da Floresta Amazônica. Atualmente, devido ao desmatamento sofrido ao longo dos anos, menos de 7% da vegetação inicial está preservada com áreas acima de 100 hectares. 

O principal fator que diferencia a Mata Atlântica das outras florestas é sua abrangência territorial em variadas latitudes e altitudes, o que contrasta o clima e a vegetação. O bioma está presente em 3.429 municípios de 17 estados brasileiros, entre eles, São Paulo, cuja capital tem 30,4% de sua extensão coberta por remanescentes da mata. São 45,9 mil hectares de vegetação somente na cidade. Como um todo, a área original do bioma no Brasil é de 1,1 milhão de quilômetros quadrados, e ainda há uma pequena porção na Argentina e no Paraguai.

Texto alternativo: A imagem apresenta um mapa do projeto "Aqui tem Mata?" com informações sobre a Mata Atlântica em São Paulo. Na capital do estado, a área total de floresta é de 26.359 hectares, para mais de 150 mil hectares de território e população de 12.038.175 pessoas em 2023. O mapa indica também que a maior concentração de mata no município está no Sul, próxima a Unidades de Conservação.
O site ‘Aqui tem Mata?’ realizado pelo SOS Mata Atlântica e pelo INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) específica locais onde há Mata Atlântica e qual sua extensão [Imagem: Reprodução/Aqui tem Mata]
Devido à importância do bioma, foi sancionada em 12 de dezembro de 2006, após 14 anos de tramitação, a Lei da Mata Atlântica (Lei nº 11.428), que prevê como deve se dar a utilização e a proteção da vegetação nativa e a firma como Patrimônio Nacional. Dois anos depois, o decreto nº 6.660, de 21 de novembro de 2008, veio para fortalecer a legislação ao estabelecer como, o que e onde pode haver intervenção ou uso sustentável da Mata Atlântica.

O histórico de desmatamento da Mata Atlântica

Desde 1500, a Mata Atlântica começou a ser desmatada com a chegada do que seriam os colonizadores do território, interessados no lucro gerado a partir do comércio, principalmente do pau-brasil. Desde então, ciclos predatórios econômicos, como o da madeira, do açúcar, da mineração, da pecuária, do café e dos eucaliptos, juntamente como a expansão urbana, passaram a ser os principais causadores do desmatamento. É o que explica Luís Fernando Guedes, diretor executivo da SOS Mata Atlântica, principal ONG na atuação na preservação do bioma.

O desmatamento, no entanto, está longe de ficar no passado. Segundo o Relatório Anual do SOS Mata Atlântica de 2022, último publicado, houve um aumento de 66% no desmatamento em relação ao ano anterior. Foram 21 mil hectares de Mata Atlântica desmatados entre 2020 e 2021, que contrastam com os 13 mil do biênio anterior.

Cobertura original de Mata Atlântica contrastada com os remanescentes atuais. [Animação: Reprodução/SOS Mata Atlântica]
A perda de biodiversidade, degradação do solo e alterações nos padrões climáticos são algumas das consequências causadas pelo desmatamento endêmico de um ou mais biomas. A recente tragédia no Rio Grande do Sul, cujas enchentes resultaram em 175 óbitos, 38 pessoas desaparecidas, 806 pessoas feridas e mais 423 mil pessoas desalojados, é um exemplo do que pode ocorrer quando há um descuido com a preservação da natureza, além, é claro, de negligência do Estado.

Rafael Fernandes, gerente de restauração florestal na Fundação SOS Mata Atlântica, explica à Agência Universitária de Notícias (AUN) em um evento de conscientização Viva a Mata, realizado no parque Villa Lobos, que uma das maiores e mais degradantes ações de contra o meio ambiente é a emissão de carbono para a atmosfera. Ele destaca a importância dos serviços ecossistêmicos da floresta para conter essa ameaça:

 

Não existe nenhuma tecnologia tão boa quanto uma árvore para sequestrar carbono e diminuir os impactos ambientais

Rafael Fernandes à AUN

Ainda que o cenário pareça negativo, há muito que pode ser feito pela restauração da Mata Atlântica. Segundo Rafael, a área do bioma que, à luz da lei, deve ser preservada, chega há 4 milhões de hectares e, para realizar o trabalho de preservação, “são necessárias muitas pessoas coletando sementes, produzindo mudas, cuidando, monitorando as áreas, fazendo projetos e convencendo os donos de terra que essa é uma atividade válida”.

A questão dos donos de terra é sensível quando se fala em preservação. Para Luís Fernando, essa relação não é recente, e sim uma herança cultural do passado colonizador. “O indigena, por exemplo, é parte da natureza, a floresta é a casa dele, o quintal, o jardim, o mercado. O ‘homem branco’ não, para ele, é uma sujeira, um empecilho, um ‘mato’, e não há o entendimento de que todos dependemos desses recursos”. 

Rafael Fernandes, de capa de chuva amarela, mostra para um grupo de pessoas uma árvore nativa acima de sua cabeça
Rafael Fernandes mostra vegetação nativa no Parque Villa Lobos, em São Paulo, para visitantes do Viva a Mata [Imagem: Nicolle Martins]
Tanto Luís Fernando quanto Rafael concordam que uma forma de dialogar com aqueles que, na relação com a natureza, estão somente interessados no benefício econômico, é tocar exatamente neste ponto. “Destruir a natureza é um prejuízo econômico, e as soluções de uma bioeconomia podem gerar riqueza”, ressalta o diretor executivo. 

A criação de um mercado sustentável

A bioeconomia é a ciência que busca criar modelos de produção que utilizam recursos biológicos de maneira sustentável, evitando o uso de recursos não-renováveis e diminuindo ao máximo a degradação do meio ambiente. O termo foi cunhado por Nicholas Georgescu-Roegen, economista e matemático romeno, em 1975, que, à época, não foi bem aceito

A prática acontece no Brasil desde a década de 1970, com a implementação do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), que alçou o país ao posto de maior produtor mundial de etanol. No entanto, o termo “bioeconomia” só ganhou destaque após a crise humanitária da Covid-19, que acendeu a luz de emergência sobre a conservação do meio ambiente.

Recentemente, a bioeconomia ganhou os holofotes. Neste Dia Mundial do Meio Ambiente, o atual governo lançou o decreto nº 12.044/2024, que institui a “Estratégia Nacional de Bioeconomia”. São indicados pontos sobre sustentabilidade, produção ética e respeito aos povos indígenas. A descarbonização e a promoção da bioindústria também são tópicos trabalhados pelo decreto lançado no dia 5 de junho. Isso indica um aumento da preocupação do setor público e privado com os temas relacionados à bioeconomia.

A interdependência está mais do que clara, passamos muito tempo desmatando sem perceber que precisávamos daquela natureza

Luis Fernando Guedes à AUN

Na Mata Atlântica, diversos grupos promovem projetos de conservação do bioma, entre eles, o The Nature Conservancy (TNC) que, nesse bioma e em outros, “colabora para encontrar e compartilhar boas ideias, que melhorem a vida das pessoas e protejam o planeta”, conforme seu site o descreve. 

A AUN conversou com Marina Campos, líder de conservação da TNC, que contou que começou a trabalhar na ONG ao perceber que seu trabalho como pesquisadora em biodiversidade e gerenciamento ecológico parecia não chegar onde mais importava: nos produtores agrícolas e moradores de áreas de preservação. “A gente quer conservar, mas escreve um artigo que vai pra prateleira, e as pessoas que realmente moram aqui, que podem preservar, não tem acesso”. 

Ela destaca a importância de que as pesquisas cheguem na população de maneira acessível, mas aponta uma dificuldade: abordar a temática de forma atrativa. “O nosso discurso é de que a floresta não é um ônus, e sim um bônus. As pessoas, no geral, têm essa noção, mas ninguém quer abrir mão do seu ganho pessoal”. O “bônus” em questão é o impacto da floresta no bem-estar da população, principalmente na qualidade da água e do ar, mas a nova tentativa de abordagem é no ganho econômico. “Iniciamos o discurso de que a floresta pode gerar frutos, madeira, e tudo isso em um mercado que é de longo prazo.”

Paisagem com árvores de cambuci de tamanho médio.
Árvores de cambuci, fruto da Mata [Imagem: Reprodução/Mauricio Boff]
Na Mata Atlântica, a melhor forma encontrada para agir de acordo com a bioeconomia é fazer produtos dos frutos nativos. O processo de reflorestar as áreas com a plantação de árvores nativas, ou seja, que não afetarão negativamente o ecossistema, e retirar os insumos com responsabilidade acarreta em um aumento da área preservada e ainda gera empregos. “Essa cadeia de valor pode promover mais de 3 milhões de empregos no Brasil. Ela é interessante porque é muito democrática, são necessárias desde pessoas extremamente especializadas até aquelas que, com pouquíssimo treinamento, já conseguem atuar como coletores de sementes, por exemplo”, destaca Rafael Fernandes. 

A quantidade de pessoas envolvidas no processo é, por um lado, benéfica por possibilitar renda, mas, por outro, dificulta a cooptação de pessoas. “[Para transformar a colheita em um produto] você tem que plantar, desenvolver a tecnologia para melhoramento do fruto, tem que criar a marca, o design, a apresentação para o mercado, e isso não é função só do produtor”, destaca Marina. Para ela, o produtor deve se ater aos frutos, e equipes diferentes devem pensar na tecnologia da produção e na formação do produto como um artigo interessante no mercado.

Este é outro complicador quando se fala no desenvolvimento da bioeconomia. “Se você perguntar para as pessoas quais são as frutas da Mata Atlântica, elas vão engasgar. Elas não vão saber o que falar”, aponta a líder em conservação. A jabuticaba e a acerola, de acordo com ela, são as frutas mais conhecidas, mas ainda não estão no imaginário coletivo como “frutas da Mata Atlântica”

Muitos argumentam que o consumo dessas frutas é dificultado pelo paladar, uma vez que a tecnologia aplicada em sua plantação ainda passa por aprimoramento, o que faz com que elas ainda tenham um gosto mais ácido. Contudo, frutas igualmente ácidas, mas vindas do exterior, têm apelo no mercado. “As pessoas comem goji berry, blueberry, frutas que vêm do outro lado do mundo, mas não comem nossas berries, por quê?”, coloca Marina.

Texto alternativo: Colagem com frutos nativos da Mata Atlântica, como cereja-do-rio-grande, grumixama, bacupari-mirim, ubajaí e araçá-piranga.
Da esq. para a dir: cereja-do-rio-grande, grumixama, bacupari-mirim, ubajaí e araçá-piranga, frutas da Mata [Imagem: Reprodução/Sítio Frutas Raras]
Para consumir as frutas da Mata Atlântica, é preciso que haja interesse por parte das pessoas e, para que ele exista, elas precisam ouvir falar nas frutas. “É um círculo, não tem mercado porque as pessoas não conhecem e elas não conhecem porque não tem mercado”, explica a especialista. É incômodo, para Marina, tentar convencer um produtor a plantar uma safra que, muito provavelmente, ele não terá para quem vender. Por isso, é importante que haja uma injeção do mercado para fazer com que a cadeia funcione. 

Marina cita projetos como o do Instituto Auá, que trabalha com o “empreendedorismo que provoca impactos positivos nas mais diferentes esferas da sociedade”, segundo seu site. Em 2017, o Instituto fechou parceria com escolas do interior de São Paulo, como no município de Caraguatatuba, para a entrega, a cada 15 dias, de mais de 750 quilos de cambuci, fruto rico em vitamina C originário da Mata. A fruta é ofertada às crianças em forma de suco, sozinha ou com outras mais conhecidas, ou em forma de vitamina. 

“Uma fruta nativa por semana, ou até uma por mês, que seja, faz com que as crianças conheçam, adaptem o paladar e, então, comuniquem às suas famílias que, quando vir a fruta no mercado, vai querer comprá-la. Esse é um trabalho de comunicação pedagógica para o conhecimento mais amplo do mercado dessas frutas”, descreve Marina. 

Foto de suco de cambuci ao lado da fruta.
Suco de cambuci ao lado da fruta [Imagem: Reprodução/Prefeitura Municipal de Caraguá]
Outras empresas nasceram da necessidade de propagar os insumos da Mata Atlântica de forma sustentável, a exemplo da AR Kombucha, do Vale do Ribeira. A empresa, fundada pelo casal Angélica Araújo e Rogério Godoy, começou como uma produção caseira, vinda do desejo de consumir alimentos mais saudáveis. A kombucha é uma bebida originada na China, é probiótica, adoçada, gaseificada e preparada a partir da fermentação de chás, além de ser conhecida internacionalmente por seus benefícios à saúde.

Em 2019, o casal levou a kombucha para o público pela primeira vez, mas somente para degustação. Devido à demanda gerada a partir do conhecimento sobre a bebida e suas qualidades, iniciaram a produção para a venda durante a pandemia. Eles destacam que a utilização dos insumos da Mata Atlântica é prioridade na produção da bebida, e comercializam sabores como o de Cambuci e Jussara. Os únicos materiais não provenientes da Mata local são a garrafa de vidro, o rótulo e o açúcar. “A gente tem que levar o Vale para frente, representar os sabores e as frutas que encontramos na Mata Atlântica”, destaca Rogério.

Texto alternativo: Angélica, à esquerda, é uma mulher de pele clara, cabelos lisos, escuros e de tamanho médio, usa a camiseta do AR Kombucha, que é amarelo clara, e segura, em cada uma das mãos erguidas, uma garrafa de vidro com rótulo personalizado da AR Kombucha. Ao seu lado está seu marido e sócio, Rogério, alto, branco e de cabelos curtops e escuros, que faz o mesmo movimento e veste a mesma camiseta. Ambos sorriem. Em segundo plano, uma estante industrial preenchida com garrafas de vidro com ou sem kombucha preenchem o cenário
Angélica e Rogério hoje vendem a kombucha em garrafas de vidro, mas, no início, a produção era mais simples, em garrafas plásticas [Imagem: Reprodução/SebraeSP]

Bioeconomia é só o início

A bioeconomia é um incentivo para conter o desmatamento na Mata Atlântica, mas não é a única solução. Há porções de floresta nativa consideradas Áreas de Proteção Permanentes (APPs), que são ambientalmente frágeis e vulneráveis e não podem ter seus recursos explorados. Encontrar um balanço entre o ritmo de resiliência da natureza e os padrões de consumo e produção humanos é o principal desafio apontado pelos especialistas consultados.

Marina Campos destaca que a bioeconomia também deve estar nas cidades. Ela cita projetos, como hortas urbanas, sistemas agroflorestais urbanos, mapeamento de nascentes, identificação de árvores nativas e arborização urbana adequada. “Eles têm um papel muito importante na biodiversidade, no lazer e no bem-estar da população”, afirma. “Se uma praça tem identificação das espécies, as pessoas vão se interessar pelas frutas e interagir com a natureza”.

Para que a bioeconomia possa se consolidar, a conscientização sobre a situação da floresta e a importância dos seus serviços ecossistêmicos deve atingir um público além do diretamente envolvido no cultivo e extração dos recursos naturais. Para Marina, é preciso que, por meio dos projetos citados e do turismo ambiental, por exemplo, as cidades criem a cultura de valorizar produtos locais, da Mata Atlântica. “Se existir demanda, a cadeia vai se organizar”, afirma.

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