“As bases do trabalho doméstico no país foram marcadas por fortes desigualdades raciais e de gênero, que evidenciam uma desvalorização sistemática da categoria’’, revela a pesquisa de Larissa Cristina Margarido, bacharela em direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP-RP), mestra e doutoranda na área pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Taís Dias de Moraes, formada em ciências econômicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestranda em desenvolvimento econômico pela mesma universidade, em entrevista para a Agência Universitária de Notícias (AUN).
Assim como em outras regiões da América Latina e Caribe, o Brasil desenvolveu-se a partir de uma frágil economia periférica, utilizando da mão de obra escrava como principal meio de produção. Não apenas como forma de reafirmação social e status, os senhores de engenho utilizavam do trabalho forçado tanto no campo como nas casas-grandes, sendo as mulheres negras as principais responsáveis pelos afazeres domésticos e de cuidado. Essa relação perdurou até 13 de maio de 1888, quando a lei aúrea foi assinada e a escravidão abolida em nível nacional.
A pesquisa revela que sem suporte social e letramento adequado, os agora ex-escravos passaram a ocupar as mesmas atividades que antes, de forma remunerada. Diferente do que se imaginava, as relações trabalhistas não encerraram a exploração doméstica e a continuidade dessa atividade perpetuou uma espécie de estigma social.
Larissa Margarido conta que apesar de décadas de transição, as empregadas domésticas continuam sendo vistas como propriedade: “Não apenas na lógica de tratamento, como no viés de reconhecimento, elas são tratadas como utensílios domésticos”. Apesar do fator de afetividade ser evidente, o discurso de pertencimento familiar, “ela é quase da família”, é grande. Ele inibe que a profissional, mesmo reconhecendo os abusos, corra atrás de seus direitos, levando em conta a afeição pelos patrões e o medo, explica ela.
Na pandemia esse cenário foi ainda mais latente. Durante o isolamento social, as trabalhadoras enfrentaram um difícil dilema entre a necessidade de manterem suas casas e o risco de contaminação. Taís Moraes conta que nesse período cresceram os relatos de condições degradantes e denúncias de violação aos direitos fundamentais por parte das trabalhadoras aos sindicatos, como casos de cárcere privado e jornadas exaustivas. Ela complementa dizendo que quando há uma queda no crescimento econômico, a tendência é que pessoas em ocupações socialmente desvalorizadas, indivíduos pobres e vulneráveis, passem a ocupar esse tipo de trabalho.
Nesse quadro, a pesquisa relata que apesar de haverem avanços no âmbito social e do trabalho, como a implementação da PEC das domésticas em 2013, a categoria continua sendo alvo de baixos rendimentos e condições precárias de trabalho, mesmo considerando seu papel essencial na manutenção dos lares do país.
Enquanto alguns possuem o poder adquisitivo para terceirizar essas funções, outras mulheres acumulam duplas ou triplas jornadas de trabalho, considerando suas responsabilidades fundamentais dentro de casa. “É um papel essencial, mais de 50% das trabalhadoras domésticas, em 2022, eram chefes de família, ou seja, são mulheres responsáveis por domicílios com filhos”, afirma Tais.
A PEC das Domésticas
Em relação à chamada PEC das Domésticas – emenda que prevê igualdade de direitos trabalhistas incluídos na CLT – o estudo conta que apesar de existir, sua efetivação ainda não é realidade para a grande maioria das trabalhadores, considerando que muitas trabalham na informalidade ou como diaristas, onde as atividades são esporádicas e sem a necessidade formal de registro em carteira.
Taís comenta que caso a implementação fosse efetiva, mudaria drasticamente o cenário. “Asseguraria para essa categoria direitos há muito tempo garantidos para outros tipos de ocupação enquadradas na CLT, como proteção contra a demissão arbitrária ou sem justa causa, acesso ao seguro-desemprego e ao FGTS, remuneração do trabalho noturno superior à do diurno, salário-família e assistência gratuita aos filhos e dependentes, por exemplo”.
Perspectivas para o Futuro
Quando questionadas sobre expectativas para o futuro da classe trabalhadora, as pesquisadoras dizem não se sentirem muito otimistas em curto e médio prazo, ‘’Esse tipo de ocupação tem em suas bases estruturadoras fenômenos complexos da sociedade brasileira, que mantém essa categoria em uma posição subalterna e desvalorizada’’.
Larissa conta que, apesar da PEC ter completado 10 anos, seus efeitos legais ainda são recentes. Por esse motivo, melhorias nas condições de trabalho, fiscalização e julgamentos na esfera pública e judicial não devem ocorrer a curto prazo. Por outro lado, ela lembra que as domésticas se sentem mais otimistas com uma melhora do cenário. Isso porque, com a criação da PEC, o diálogo entre os sindicatos e as associações melhorou, facilitando as negociações.
Apesar da demora, há avanços perceptíveis no debate acerca da categoria, a exemplo do tema de redação de 2023 do Enem – Exame Nacional do Ensino Médio, que pediu para que os alunos dissertassem sobre o trabalho de cuidado feminino, uma discussão que ajuda a evidenciar a luta secular de uma classe por afirmações sociais e jurídicas.
Faça um comentário