Pandemia gerou adaptações além das tecnológicas para o ensino básico

Inovações colocadas em prática durante período de isolamento social podem ser valiosas para formação de novos educadores, propõe pesquisa da Faculdade de Educação da USP

Saberes curriculares foram modificados como resposta aos desafios de adaptação impostos pelo ERE. (Reprodução/tonodiaz/Freepik)

Ensinar no contexto da pandemia da Covid-19 trouxe novos desafios aos professores, que não foram preparados para esse desafio durante sua formação profissional. “Quando expostos a uma realidade tão diferente de tudo que a academia tinha posto para esses professores, é provável que outras coisas tenham sido aprendidas e que eles tenham produzido outros saberes ao buscarem soluções para essa nova dinâmica”, diz a mestranda da Faculdade de Educação (FE) da USP, Paula Suelí.

Paula, que é também professora de História do Ensino Médio, tem estudado a possibilidade do surgimento dos professores da Educação Básica como produtores de saberes, e não apenas receptores e transmissores. 

Baseada em Maurice Tardif, a pesquisadora analisa teóricos que contribuíram, nos anos 1980, para o entendimento do professor como profissional da educação. “Parece estranho, mas isso é uma ressignificação recente”, diz. Partindo desse pressuposto, os estudiosos demonstram que a divisão entre acadêmicos e técnicos não é tão rígida quanto parece, e que os educadores fora da Universidade também podem produzir saberes originais. Para a sua dissertação, que está em andamento, a pesquisadora escolheu uma abordagem qualitativa, baseada em três entrevistas com professoras das disciplinas de Artes, Biologia e Matemática do Ensino Médio de uma escola filantrópica localizada no centro de São Paulo. 

Dificuldades tecnológicas

Na ocasião do Ensino Remoto Emergencial (ERE), vivido por essas professoras, observou-se pouco letramento digital para o ensino à distância. Além desse aspecto, que não fez parte da formação das educadoras entrevistadas, percebeu-se uma dificuldade relacionada aos próprios estudantes. “Existe, no caso específico dessa escola, um volume muito grande de alunos que dependiam de um único aparelho celular de uma pessoa da família para que pudessem fazer as atividades. Esse familiar, muitas vezes, trabalhava fora o dia inteiro, e no final do dia é que essas crianças e adolescentes iam fazer suas atividades”, explica a pesquisadora.

Por conta dessa dificuldade, a inserção de tecnologias para complementar o aprendizado dos alunos se tornou limitada. “[O uso de tecnologia] era sempre pensado para aumentar a comunicação, criar um momento de respiro ou, no caso de uma das professoras, era uma coisa mais ligada à produção de planilhas, dinâmicas no Excel, do que como utilizar esse recurso digital para tornar aprendizagem mais favorável para os estudantes”, diz Paula.

A pesquisadora defende que um dos legados desse período é uma maior valorização da interação humana, ainda que mediada por alguma tecnologia (Foto: Reprodução/Senado Federal)

Novo conhecimento gerado

Tais obstáculos envolvendo o uso de tecnologias impulsionaram a formação de novos saberes docentes, isto é, os conhecimentos que compõem a experiência do profissional da educação. O “ouro” dessa pesquisa, segundo Paula, é descobrir em quais aspectos os saberes docentes se transformaram.

Agrupados em quatro, esses saberes compreendem a formação profissional, estruturada em cursos de Pedagogia; os disciplinares, transmitidos por cursos que não são os de Educação; os curriculares, que envolvem as metodologias de cada escola; e os da experiência, desligados dos espaços acadêmicos e que dialogam com as vivências individuais dos professores. 

“O que tenho percebido é que não é apenas um rearranjo. (…) Por causa da falta de tempo e das limitações do formato digital ao qual as professoras não estavam acostumadas, elas tiveram que reduzir muito o tempo de exposição dos conceitos de cada disciplina e isso significa que tiveram que reaprender a ensinar esses conceitos”, explica Paula. 

Com a facilidade de dispersão do ensino remoto, foi preciso diminuir o tempo de exposição do aluno às aulas teóricas. “Elas tiveram que, por exemplo, no caso de saberes disciplinares, encontrar um núcleo daquele conteúdo, o que é indispensável”, explica a pesquisadora. “Elas sabiam ensinar numa certa sequência, agora elas tiveram que reinventar isso, pensar como expor com fidelidade o centro desse conteúdo de forma que esse aluno não ficasse com uma lacuna e que ele estivesse pronto para os próximos conteúdos.”

A prática dentro da sala de aula

Ao decorrer de sua pesquisa, Paula observou uma mudança significativa nos saberes curriculares, como resposta aos desafios de adaptação impostos pelo ERE. “Uma coisa que tenho notado é a ênfase para a prática, como todas as professoras rumaram numa mesma direção de aulas mais curtas com exercícios, oportunidades de aplicação”, afirma Paula. De acordo com a pesquisadora, essa atuação se diferencia de outras já vistas na escola, já que compreende o fazer dentro da aula, e não em casa, como tarefa para o aluno. 

Segundo os relatos, essas experiências alteraram profundamente a didática dessas professoras, impactando em sua docência pós-pandemia. Como legado desse período, então, tem-se uma maior valorização da interação humana, ainda que mediada em algum nível por programas digitais. “Os saberes que se desenvolveram são menos dependentes das tecnologias digitais do que poderíamos imaginar depois de viver tanto tempo em torno delas.”

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