
A obra de Sófocles Édipo Rei tornou célebre a história do herói que, já adulto, com filhos e coroa, descobre ser filho de uma outra família — mais precisamente, filho de sua esposa, Jocasta, e do homem que ele havia assassinado. A descoberta de sua verdadeira identidade provoca um choque e tem consequências trágicas para o herói: incapaz de viver com a culpa, ele fura os próprios olhos.
O que parece uma história de ficção improvável, constitui — em partes — a trajetória de 132 cidadãos argentinos, que foram sequestrados quando bebês pela ditadura militar somente para, muitos anos depois, descobrirem suas verdadeiras origens. Mas, diferente do destino de Édipo, essa descoberta é um convite à visão — ou melhor, à memória.
Cativeiro intrauterino
Uma das marcas da ditadura argentina, que vigorou de 1976 até 1983, foi a onda de desaparecimentos. Segundo a Comissão Nacional de Desaparecimentos de Pessoas (CONADEP), cerca de 9.000 argentinos foram vítimas dessa prática. Outros grupos, como as Mães da Praça de Maio, apontam para um valor ainda maior: 30.000 desaparecidos.
Esses dados também englobam as centenas de bebês sequestrados pela ditadura. “Se uma militante detida estava grávida, esperavam ela dar à luz para assassiná-la e se apropriavam dessas crianças”, explica Aline Murillo, pesquisadora da USP e autora da tese Pessoas e memoriais: práticas de parentesco e política na Argentina. O destino das cerca de 500 crianças sequestradas era incerto. Algumas eram dadas para famílias de militares e apoiadores do regime, enquanto outras eram abandonadas ou mesmo vendidas.
A busca das Avós da Praça de Maio
A fim de localizar os recém-nascidos sequestrados e devolvê-los às suas famílias, foi criada a Associação das Avós da Praça de Maio, uma organização liderada pelas mães das prisioneiras grávidas que foi responsável pela restituição de 132 crianças — que hoje são adultos de cerca de 40 anos.
“A luta começou clandestinamente, mas, depois da redemocratização, as avós começaram a lutar pela institucionalização da busca”, conta a pesquisadora. Como uma organização reconhecida, foi possível criar um banco de dados genéticos que cruzava o DNA das crianças com os de parentes vivos, facilitando o reencontro com os netos.
Os olhos abertos de Édipo
Para a dissertação, Murillo entrevistou netos já adultos, reapropriados a partir dos anos 2000, para investigar o papel dessas descobertas identitárias na memória coletiva sobre a ditadura. “A minha pesquisa foi sobre o reencontro de pessoas adultas com a História, uma história que é de si e é do país”, conta a pesquisadora.
O título da dissertação, Pessoas e memoriais, é uma referência a esse reencontro. “Cada vez que se encontra uma criança na Argentina se fala sobre ditadura. A população relembra o que a ditadura fez com as crianças e com seus pais.”, relata Murillo.
Apesar de terem suas vidas pessoais expostas, muitos adultos reapropriados escolhem engajar na luta das Avós da Praça de Maio e dedicam-se a contar suas trajetórias para o mundo. “Ao difundirem suas histórias de vida, eles estão difundindo memórias da ditadura militar, como memoriais vivos”, conta a pesquisadora.
[Imagem de capa: Reprodução/ Governo da Argentina]
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