Por Gabriel Eid, Gabriel Tavares, Laura Toyama, Maria Trombini, Mariana Zancanelli e Thaís Helena Moraes
A cidade de São Paulo tem observado o crescimento no consumo de novas drogas, ainda pouco conhecidas, chamadas popularmente de drogas K. Na mídia, elas frequentemente recebem nomes como maconha sintética, supermaconha e outros termos, que confundem e distorcem a relação entre as variedades de drogas artificiais — como K2, K4 e K9 — e a maconha, originada da planta Cannabis sativa.
Ao longo de 2022, foram registradas 98 notificações de emergência pelo uso de canabinóides sintéticos nas redes pública e privada. Em 2023, apenas no primeiro semestre, foram contabilizados mais de 620 casos, segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde. Esses números reúnem quadros clínicos que se assemelham aos sintomas do abuso das drogas K, dentre os quais podem-se destacar convulsões, alucinações e entorpecimento – em muitos casos, resultando em overdose.
A diferenciação entre K2, K4 e K9 dá-se de acordo com a maneira como são consumidas, seja por meio de papel borrifado com a substância, do uso de selos e micropontos, inalação ou fumo. Ainda não é possível afirmar que todas as notificações são decorrentes do consumo das novas substâncias sintéticas, já que um dos grandes empecilhos na detecção dos princípios ativos é sua combinação com outras drogas conhecidas, como o ecstasy e a heroína. No momento, estão sendo desenvolvidos sistemas de vigilância toxicológica para detectar o uso de drogas sintéticas a partir de fios de cabelo, mas que ainda não foram colocados em prática.
Segundo a Polícia Técnico-Científica de São Paulo, o rastreio de substâncias produzidas artificialmente é muito complexo, uma vez que as características químicas da droga mudam rapidamente conforme são sintetizadas em laboratórios clandestinos. Maurício Yonamine, professor de toxicologia da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP), conta que mais de 1.200 compostos formam as drogas sintéticas. Atribuir às drogas K um patamar de similaridade com a maconha significa menosprezar os efeitos muito mais nocivos e perigosos que elas podem causar.
A Secretaria de Saúde de São Paulo explicou que algumas das consequências são comprometimentos neurológicos, como prejuízos na atenção, falha de memória e da execução e localização visuoespacial. Os efeitos no usuário também podem ser de desorientação e delírios, fazendo com que o comportamento deste se assemelhe ao de um “zumbi”, comparação recorrente na mídia. Contudo, para Luiz Fernando Petty, um dos organizadores da Marcha da Maconha, o uso desse paralelo não é apropriado e desumaniza uma população que já é muito criminalizada, além de prejudicar o debate sobre a legalização das drogas.
Supermaconha?
Especializado em estudos sobre drogas de abuso a partir da toxicologia forense, o professor Maurício Yonamine explica à Agência Universitária de Notícias (AUN) que os entorpecentes K tem diferenças significativas em relação às drogas produzidas a partir de fontes naturais, como maconha e cocaína. Enquanto estas duas são conhecidas há muito tempo por autoridades médicas e policiais, as drogas sintéticas como K2, K4 e K9 são produzidas em laboratórios por meio de reações químicas, e sua única similaridade com a maconha é o local em que agem no cérebro.
Contudo, o docente destaca que os entorpecentes sintéticos têm um poder de ação 50 a 100 vezes maior, resultando em efeitos completamente diferentes daqueles associados à maconha convencional, como a sensação de relaxamento. Na verdade, os sintomas apresentados em usuários de drogas K podem ser surtos psicóticos, movimentos descoordenados e desorientação mental.
Por esses motivos, Maurício sustenta ser necessário diferenciá-las nominalmente. “Nomear as drogas K como maconha, supermaconha ou maconha sintética gera uma confusão nas pessoas”, diz. Ele explica ser mais adequado classificá-las como canabinoides sintéticos, desvirtuando-as do que grande parte das pessoas entende como maconha. Essa desinformação, presente na mídia em geral, especialmente em veículos sensacionalistas, pode gerar dúvidas sobre a verdadeira relação e diferenças entre elas.
“No momento, as únicas semelhanças encontradas entre as drogas K são seu princípio ativo, o THC (ou Tetrahidrocanabinol), e seu local de estímulo no cérebro, que são os neurorreceptores CB1 e CB2”, explica o professor. O CB1 (Receptor canabinoide tipo 1) está concentrado de forma mais presente no cérebro e é responsável pela sensação de bem estar, regulação do sono, controle do apetite e de níveis de concentração. Por sua vez, o CB2 (Receptor canabinoide do tipo 2) atua em conjunto ao sistema imunológico e ainda representa um campo de estudos a ser explorado na toxicologia.
O THC presente na maconha é capaz de estimular o neuroreceptor CB1, mas com alcance limitado, ocasionando sensação de euforia, popularmente conhecida como “brisa”. Até o momento, não há registros de overdose por abuso da maconha tradicional, explica o professor. Os canabinoides sintéticos também se ligam ao CB1, porém possuem uma concentração de THC muito superior, resultando em uma potência de estímulo até 100 vezes maior do que a Cannabis sativa.
A origem das drogas K
Na década de 1980, o químico norte-americano John W. Huffmann começou a sintetizar canabinóides em busca de novos medicamentos, pesquisa que resultaria em mais de 400 compostos canabinóides sintéticos. Em 2008, os compostos foram identificados em um laboratório forense na Alemanha, colocados em folhas de plantas e vendidos com o nome de Spice.
“A indústria farmacêutica parte de princípios ativos naturais tentando criar uma molécula que sirva a algum tratamento, mas muitas vezes ela não passa nos testes. E, de alguma forma, essas substâncias são vazadas e caem na mão de traficantes, por exemplo”, explica Yonamine. Ele conta que as substâncias são frequentemente chamadas de “fail de farmacêuticas”, seja por sua ineficácia ou pela geração de efeitos adversos indesejados.
Em fevereiro deste ano, o PCC proibiu a venda da Spice – outro nome para os canabinóides sintéticos – na região da Cracolândia, na capital paulista, decisão motivada pela percepção do alto poder destrutivo da droga. Para o professor Maurício, a proliferação do que a Organização das Nações Unidas (ONU) tem chamado de Novas Substâncias Psicoativas (NSPs) é um desafio pela dificuldade de detecção. “Cada formato de consumo da droga K – K2, K4 ou K9 – vem combinado com ao menos outras duas substâncias estimulantes, conhecidas ou desconhecidas. Nesse sentido, é muito mais trabalhoso para as autoridades identificarem qual droga é responsável por qual efeito e pensar medidas de contenção.”
Saúde ou segurança pública?
Para Luiz Fernando Petty, a chamada “Guerra às Drogas” – postura do Estado e da polícia que reprime o uso de substâncias psicoativas, mirando especialmente uma população marginalizada e vulnerável – nunca impediu o consumo, nem evitou que novas drogas mais potentes fossem criadas, como é o caso das drogas K. Segundo ele, a proibição fez com que a sociedade virasse as costas e deixasse de olhar para a questão como um problema de saúde pública. Para o ativista, a regulamentação de consumo de substâncias no Brasil é urgente. “A partir do momento que se tem uma regulamentação, há maior controle sobre as substâncias que circulam entre os usuários.”
Especialistas indicam que a Lei de Drogas aumentou o encarceramento, especialmente de jovens da periferia, que são presos portando quantidades pequenas de droga e acabam sendo incorporados ao sistema prisional à espera de julgamento, Em 2022, o Brasil tinha cerca de 825 mil presos, sendo que cerca de 60% estava encarcerada por tráfico de drogas ou crime patrimonial, segundo relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de junho de 2023.
Os dados compilados pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) apontam ainda que 53% da população carcerária do país é de pessoas negras. Ainda, do total de presos, cerca de 37% têm menos de 30 anos. Esse cenário de encarceramento resulta na exposição de jovens aos presídios superlotados, onde atuam facções criminosas que aliciam pessoas, o que é chamado de “universidade do crime”.
Luiz ressalta ainda que a descriminalização deve ser olhada sob uma perspectiva de reparação histórica, tendo em vista as desigualdades sociais. “Quem está sendo preso hoje? Não é a pessoa que tem não sei quantas plantas na cobertura de um prédio em Ipanema, nem é o político que anda com helicóptero cheio de cocaína. É o jovem da comunidade”, aponta. Para ele, se observa uma clara seletividade penal, deixando evidente os grupos que sofrem as maiores consequências da criminalização das drogas.
O Supremo Tribunal Federal (STF) está atualmente julgando a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal. A Corte julga a constitucionalidade do artigo 28 da “Lei de Drogas”, a lei 11.343 de 2006. O julgamento começou em 2015, mas foi suspenso por um pedido de vista – ou seja, mais tempo para análise.
Para o ativista, a criminalização do porte de drogas para uso pessoal não tem fundamentos: “Constitucionalmente, a autolesão não é crime. A partir disso, o artigo 28 da Lei de Drogas cai”. O ministro do STF Gilmar Mendes, relator do caso, teve um entendimento nesse sentido ao proferir seu voto em 2015.
“A criminalização da posse de drogas para uso pessoal conduz à ofensa à privacidade e à intimidade do usuário. Está-se a desrespeitar a decisão da pessoa de colocar em risco a própria saúde”, escreveu o ministro. Diferentemente de Luiz Petty, contudo, o ministro descarta o acesso livre às drogas. “Não chego ao ponto de afirmar que exista um direito a se entorpecer irrestritamente. É perfeitamente válida a imposição de condições e restrições ao uso de determinadas substâncias, não havendo que se falar, portanto, nesse caso, em direito subjetivo irrestrito”, destacou Gilmar Mendes. Na visão do ativista, a luta pela descriminalização se justifica pelos benefícios que pode trazer à sociedade. “É óbvio que é um sonho um pouco utópico, e a gente entende isso, só que a gente não pode deixar de brigar”, defende.
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