Por Adrielly Kilryann, Ana Paula Medeiros, Guilherme Bento, João Dall’ara e Rian Damasceno
Nas ruas da Avenida Paulista ecoam centenas de vozes a todo instante. O movimentado centro financeiro da capital de São Paulo é um dos grandes polos culturais do país, conhecido pela sua diversidade de arte, música, culinária e atividades a céu aberto. Especialmente aos domingos, quando as ruas se fecham para o transporte e se enchem de pedestres, uma das suas grandes atrações se destaca: os artistas de rua.
Cantores, sósias, ilustradores, escultores, dançarinos, instrumentistas e até mágicos realizam as suas performances a céu aberto. Como profissão, renda extra ou somente um hobby, os artistas obtêm seus ganhos ao demonstrar as suas habilidades de variadas formas.
Diante da entrada do Shopping Center 3, uma voz se destaca em meio à multiplicidade de sons: a de Marcio Henrique de Aguiar, mais conhecido como o “Elvis da Paulista”. Ele canta clássicos do rei do rock e famosas canções nacionais, além de dançar, fazer imitações, poses e interagir com as pessoas que passam por ali.
Ao lado do seu letreiro que dá “boas-vindas a Las Vegas” e com o seu microfone em estilo clássico, o artista relata que está no ramo há mais de 15 anos, sendo intérprete de Elvis Presley há uma década. Ele conta que já trabalhou em muitas outras áreas, mas que prefere viver através de suas performances nas ruas.
Marcio narra que chegou na Avenida Paulista para se apresentar em 2010, quando o ato ainda era muito mal visto e proibido. Na época, a Operação Delegada, estabelecida em 2009, por Gilberto Kassab, através de um convênio entre a Prefeitura paulistana e o Governo de São Paulo, reforçou a atuação de policiais militares contra os artistas que se apresentavam na região.
Com o afrouxamento da medida em 2013, a partir da gestão de Fernando Haddad, o setor cultural da Avenida Paulista voltou a “explodir”. Como consequência, o “Elvis da Paulista” conta que passou a perceber certo prestígio e constância, devido ao dinheiro que recebia dos transeuntes. No entanto, com a chegada da pandemia, anos depois, a instabilidade retornou à sua rotina.
“Como foi a pandemia para artistas de rua?”
“Não foi. Morri. Na pandemia, não deu”. Essa é a resposta de Valmir Ramos, caricaturista da Avenida Paulista, quando questionado sobre sua experiência com o período pandêmico. “Tive que fazer encomendas em casa. Trabalhar na rua não rolou.”
O ilustrador conta que há mais de 30 anos desenha pessoas em eventos fechados e nos espaços públicos. Enquanto era entrevistado pelos repórteres da Agência Universitária de Notícias (AUN), Valmir fez uma caricatura de uma menina em cerca de 5 minutos.
O relato dele se assemelha aos de outros artistas, que também sentiram o impacto das restrições para conter a disseminação da covid-19. “A pandemia foi pior do que o inferno”, diz Aguiar.
Além das recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), o medo do vírus deixou as ruas vazias. As medidas contra aglomeração de pessoas impossibilitaram que o setor cultural continuasse a funcionar normalmente. Os artistas perderam o público e a renda caiu expressivamente. A repressão policial também aumentou, afastando ainda mais os profissionais de seu local de trabalho.
Por isso, durante o auge da crise sanitária, Marcio guardou sua guitarra e foi para Minas Gerais, ficar junto de seus familiares. Assim, como grande parte dos artistas, ele precisou procurar um emprego fora do setor cultural para sobreviver.
Essa alternativa, no entanto, não estava disponível para todos. Os profissionais que continuaram a trabalhar com arte tiveram que se adaptar ao mundo digital, participar de eventos privados ou correr o risco de serem contaminados nas ruas.
Segundo eles, o engajamento do público e a arrecadação de dinheiro nas redes sociais era muito baixo comparado com as apresentações presenciais, mesmo com uso do Pix – meio de pagamento instantâneo criado pelo Banco Central. Além disso, para fazer lives no Instagram, por exemplo, era necessário letramento digital e equipamentos tecnológicos que alguns não tinham.
Desassistidos pelas políticas públicas, com pouco dinheiro e longe do público, a saúde mental dos profissionais da arte foi fortemente afetada. “Me senti como um passarinho preso na gaiola”, desabafa o sósia do Elvis Presley. Angústia, ansiedade e medo se tornaram comuns por causa do movimento de precarização do trabalho que foi acentuado pela pandemia. Certos grupos de artistas concordam que a criatividade também foi prejudicada.
A arte no contato com o outro
Ana Maria Pimentel Teixeira, especialista em arte urbana e mestre em Artes Visuais pela Universidade de São Paulo, comenta que a sociedade costuma andar no espaço público muito anestesiada, sobretudo em grandes centros como São Paulo. Sua arte se baseia no contato com o outro: “Minha ideia sempre foi parar esse caminhar anestesiado e dar uma sacudida naquela pessoa, não para ela se tocar com a minha arte, não é isso, a ideia é provocar um acontecimento.”
A maior parte de suas obras funciona a partir de interações com outras pessoas. A artista já trocou sonhos, uma iniciativa em que ela escutava os sonhos de desconhecidos e oferecia o doce sonho em troca. Além disso, já esteve no espaço público com a proposta de escutar histórias de amor, inclusive em outros países.
Em meio ao distanciamento por conta da pandemia, esse contato foi prejudicado. As trocas com o público transcendem a arte. “Muitos anos depois, me dei conta de que esse trabalho era um trabalho de viés político e ativista, porque oferecer uma escuta no espaço público é um ato político”, afirma Ana, que também menciona o fato de ser mulher e ocupar o espaço urbano com um fazer político.
Durante o período de isolamento, a artista pensou em outras formas de se conectar com as pessoas. Em sua casa, ela utilizava um retroprojetor para exibir frases nos prédios da vizinhança. “Chamava de tatuagens na pele da cidade. Era como se estivesse tatuando os prédios com frases.”
Ana relata que a atuação do governo durante a pandemia foi destrutiva para muitos colegas. “Foi como se tivesse caído uma bomba que causou estragos imensos. Tenho vários amigos que chegaram a passar necessidade, artistas muito competentes, principalmente as pessoas que dependiam dos editais, do teatro, da dança e da música, elas tiveram muita complicações”.
O descaso com a cultura pode ser explicado por alguns motivos. “A arte é vista como perigosa, porque uma coisa que a arte pode fazer é provocar a pensar, falar do seu próprio tempo. Então, partindo desse pressuposto, dá para percebermos que a cultura não interessa e nunca interessou”, diz a artista.
Apesar do presente problemático, Ana comenta que o futuro deve ser melhor e cita que a nomeação da cantora, compositora e ex-atriz Margareth Menezes para o Ministério da Cultura confere esperança para os artistas brasileiros: “É uma mulher negra, ativista e com muita experiência com o público”.
Auxílios econômicos para a cultura
Alguns incentivos foram pensados para amenizar os danos causados pela pandemia. E o caso da Lei Aldir Blanc, que definiu uma série de medidas de emergência para o setor cultural durante a covid-19. Segundo Sharine Machado, pesquisadora de pós-doutorado no Instituto de Estudos Avançados da USP e membro da Funarte, embora não tenha “resolvido magicamente as dificuldades do setor cultural”, a Lei Aldir Blanc foi fundamental para muitos artistas e trabalhadores da cultura durante a pandemia de covid-19.
No entanto, houveram falhas na distribuição dos recursos: nem todos os municípios enviaram propostas ou empregaram toda a verba recebida. São problemas que refletem as discrepâncias de um país continental como o Brasil, ressalta Sharine.
Junto a ela, há a Lei Complementar nº 195, de 2022, batizada de Lei Paulo Gustavo (LPG), e a nova Lei Aldir Blanc, também chamada de Lei Aldir Blanc 2, que, ao todo, representam os esforços estatais para reestruturar o setor cultural brasileiro, impactado pela pandemia.
A Lei Paulo Gustavo visa liberar o valor de R$ 3,862 bilhões por meio do Fundo Nacional da Cultura (FNC), responsável por fomentar a cultura do Brasil. O objetivo é distribuir os recursos entre os estados e municípios de todo o país e fortalecer o setor cultural após os impactos do período de isolamento. Já a Lei Aldir Blanc 2, aprovada em 2022, prevê um repasse anual de R$ 3 bilhões aos governos municipais e estaduais, ao longo de cinco anos, para o financiamento de iniciativas culturais.
No final de agosto, o presidente Jair Bolsonaro editou uma medida provisória, adiando os pagamentos dos recursos para o setor cultural estabelecidos pelas leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2. Nos textos, os repasses começariam em 2022 para a LPG e em 2023 para a nova Aldir Blanc. Com a MP, elas só entrarão em vigor em 2023 e 2024, respectivamente.
Passados os piores momentos da pandemia, Sharine se mostra confiante em relação ao retorno das atividades culturais e do setor como um todo, mas com ressalvas: “Com a retomada das atividades presenciais, há uma grande demanda reprimida por atividades artísticas. No entanto, ainda faltam incentivos públicos e recursos financeiros para que o setor possa se desenvolver plenamente no Brasil”.
A retomada
Se por mais de um ano os cinemas, teatros e centros culturais sofreram as restrições da pandemia, a “praia de São Paulo” voltou a ser, desde junho de 2021, uma opção de lazer para ciclistas e pedestres aos domingos. Ao mesmo tempo, pessoas como Marcio Henrique de Aguiar, Valmir Ramos e José Antônio Gomes – artista plástico –, puderam sentir novamente o gostinho de mostrar a sua arte para quem passa pela Avenida Paulista.
Agora, ao sair da Estação Consolação, um grupo de adolescentes pode ser visto andando animado e às pressas em direção ao Cine Marquise para assistir a um dos filmes em cartaz. Um pouco mais à frente, quem chama a atenção com seus riffs de guitarra e uma voz pouco conhecida, mas que performa músicas que faz todos ao redor cantarem e vibrarem juntos, é uma banda cover de rock que toca ao lado do MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand), cartão-postal da cidade.
Mas, enquanto há efervescência do público em um local clássico de divertimento na capital, em contrapartida, os artistas da Paulista não sentem grandes impactos em seus rendimentos na volta da circulação de pessoas. É quase um consenso entre os entrevistados: depois da pandemia, os ganhos não voltaram a ser os mesmos de antes.
A pandemia de covid-19 desestruturou a economia nos primeiros meses e, mesmo aos poucos, muitas famílias ainda não conseguiram se reerguer totalmente. Fora os cortes orçamentários no setor cultural, a instabilidade econômica atingiu São Paulo de tal maneira que o centro foi considerado abandonado e suas ruas passaram a ser evitadas por diversas pessoas que temem por sua segurança.
Nesse cenário, o qual também acompanha as transformações tecnológicas, bolsas e caixas no chão destinadas às doações de cédulas e moedas do público em apoio aos artistas se encontram mais vazias. E as tentativas de receber dinheiro via Pix nem sempre são bem-sucedidas, visto que não é incomum encontrar alguém com medo de ter seus pertences roubados na avenida mais conhecida da cidade.
Ao lado dos artistas, banners informativos sobre suas contas nas redes sociais são um meio de chamar a atenção das pessoas para um lugar além das ruas. Ainda assim, fica a expectativa de melhora e de adaptação para os novos tempos, os quais pedem mais presença na internet.
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