Pesquisador propõe releitura sobre Donzelas Guerreiras e fala da representação de dissidências na literatura brasileira

Professor analisa em sua pesquisa como personagens dissidentes eram interpretados pela crítica literária nacional

[Imagem:piqsels\rawpixel]

A literatura LGBTQIA+, hoje, é mais plural do que nunca. No entanto, essa nem sempre foi a realidade no Brasil. Em obras de séculos passados, aqueles que, atualmente, seriam denominados homossexuais, quando representados, eram figuras marginalizadas e lidas superficialmente por parte da crítica literária.

A partir deste cenário, Helder Maia propõe em seus estudos uma releitura de textos em que personagens homossexuais estavam presentes, mas que foram minimizados pela crítica.  Maia é professor colaborador do Programa de Pós-graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), e bolsista de pós-doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Em seu artigo, Transgressões canônicas: Queerizando as donzelas-guerreiras, o pesquisador trabalha com o conceito que vem da crítica — Donzelas Guerreiras — e expõe sua leitura sobre essas figuras. Ele as define como personagens que foram designadas como mulheres no nascimento, mas que viveram como homens em determinado momento da vida e foram para a guerra. Ou seja, são pessoas que passaram pelo que chama-se, atualmente, de transição de gênero.

“Peguei 16 personagens que a crítica literária disse que eram Donzelas Guerreiras e observei como elas foram analisadas”. Helder diz que percebeu a redução do processo de transição de gênero ao fingimento. É duro olhar para essas experiências de pessoas que viveram 17, 20, 50 anos como homens e, simplesmente, dizer que é só um disfarce”, conta o professor. “Um sujeito vive e é reconhecido pela sua comunidade como homem e a crítica diz que é um disfarce, não faz sentido”. 

O pesquisador cita alguns exemplos para ilustrar sua tese. Mulan, que diferentemente da narrativa da Disney, viveu 17 anos como homem. Diadorim, de Grande Sertão: Veredas, ao ter sua masculinidade questionada, reage violentamente e, mesmo que nunca tenha sido descrito como mulher, é interpretado como uma nas críticas feitas sobre a obra. Maia relembra também as figuras históricas de Maria Quitéria de Jesus, que lutou como soldado Medeiros na Independência da Bahia, e Maria Úrsula de Abreu e Lencastro – ou Baltasar – que viveu mais de 20 anos como homem e combatente.

“Recuperar esses textos e rever esses personagens é uma forma de pensar que as transmasculinidades sempre estiveram narradas e há muito tempo existem historicamente e literariamente. O que tenho feito é relê-los a partir da seguinte dúvida: e se essa transição for mais que um disfarce?”, explica o professor.

A representação dos dissidentes no século 19

Paralelamente a sua pesquisa das Donzelas Guerreiras, Helder, junto a César Braga Pinto, professor adjunto de Literatura Brasileira Comparada em Northwestern University, reuniu quase 100 textos, em que personagens dissidentes — que hoje seriam denominados LGBTQIA+ — estavam presentes e publicou, em dois volumes, o livro Dissidências de Gênero e Sexualidade na Literatura Brasileira: uma antologia (1842-1930). A iniciativa veio do incômodo de ambas as partes diante da ausência de variedade representativa de personagens homossexuais em obras nacionais do século 19 reconhecidas pela crítica.

A partir da busca por esses textos, o pesquisador indica que existem três grandes vertentes da representação LGBTQIA+ no século 19 na literatura. A primeira, da pornografia, em que os personagens aparecem como um corpo erótico e devasso. A segunda, ligada ao naturalismo, onde os dissidentes saem do lugar do desejo e caem na ideia de patologia. A terceira e última, que não se desvincula das duas primeiras, produz um sujeito orgulhoso de si mesmo. “A gente começa a ver figuras que passam a se afirmar e a se defender orgulhosamente”, diz Maia.

Segundo o professor, é no século 19 que se percebe as primeiras aparições conhecidas de personagens dissidentes, ainda que silenciadas pela crítica literária. Antes desse período, a publicação de obras que abordavam conteúdos LGBTQIA+ não era segura para os autores, visto que a perseguição e a violência contra homossexuais eram realidade no Brasil. 

Contemporaneamente, cada vez mais obras brasileiras despontam com temáticas queer — termo utilizado para se referir às diversas possibilidades de gênero e sexualidade e protagonismo LGBTQIA+, o que permite dar espaço e explicitar a presença da comunidade na literatura. “Meu objetivo é produzir memória sobre esses sujeitos, afirmar que sempre existimos. Esses textos podem nos ensinar a importância desses sujeitos para a cultura e identidade nacional”, conta Maia sobre a sua percepção da necessidade de se trazer uma nova perspectiva sobre textos em que dissidentes estão presentes.

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