A linha tênue entre o amor e o fanatismo por celebridades musicais

Fãs acampam durante meses para shows e dedicam suas vidas aos ídolos — até que ponto esse sentimento é saudável?

Registro dos grupos acampados às vésperas do show. [Imagem: Emilly Gondim]

Por Emilly Gondim, Maria Carolina Milaré e Mariana Carneiro

Se engana quem pensa que o termo “fanáticose aplica apenas a seguidores devotos de religiões ou doutrinas políticas. Atualmente, fãs da mais ampla variedade de artistas — músicos, atores, escritores, supermodelos ou até mesmo influenciadores digitais — dedicam-se a subir hashtags para seus ídolos nas redes sociais, homenageá-los em montagens de vídeo, conhecidas popularmente como fancams (“câmera do fã”, em tradução livre), postar atualizações a cada uma de suas aparições públicas e acompanhar suas rotinas (o que gera sensação de proximidade). 

A admiração intensa e passional por celebridades ganhou força na era digital, marcada pelo fácil e ininterrupto acesso à informação, mas não surgiu com ela. O primeiro caso de fanatismo por um artista que se tem registro aconteceu em 1841, em Berlim, quando uma série de apresentações do compositor húngaro Franz Liszt (1811-1886) gerou reações histéricas entre a juventude alemã. Três anos depois, em abril de 1844, o poeta Heinrich Heine cunhou o termo Lisztomania, ou febre de Liszt, para descrever o fato.

“Quando anteriormente eu ouvi falar de surtos de desmaios ocorridos na Alemanha e especialmente em Berlim, quando Liszt lá se apresentou, encolhi meus ombros com pena (…). Ainda que eu estivesse errado, depois de tudo, sem ter notado isto até a semana passada, na Casa de Ópera Italiana, onde Liszt deu seu primeiro concerto… Não se tratava da audiência germanicamente sentimental, diante da qual Liszt tocou, completamente sozinho, ou apenas acompanhado por seu gênio. E ainda assim, quanto a sua mera aparição convulsivamente os afetos! Quão tempestuoso foi o aplauso que soou para saudá-lo!…Que aclamação! Uma autêntica insanidade, sem precedentes (…)”

– Trecho de um folhetim publicado por Heine em 25 de abril de 1844, que inclui um relato do autor sobre a reação do público europeu aos concertos de Liszt.

Retrato de Liszt pelo artista Henri Lehmann, 1839. [Imagem: Reprodução/Museu Carnavalet, Paris]
Descrito pelo jornal The New York Times como “a personalidade do século 19 mais próxima do status de uma estrela de Hollywood”, Liszt redefiniu o formato dos recitais de piano da época e estabeleceu um novo padrão para futuros músicos. Durante as primeiras décadas do Romantismo, movimento artístico e filosófico que surgiu na Europa em meados do século 18, era comum que pianistas ficassem de costas para o público durante as performances e não memorizassem suas composições, ato considerado esnobe. Já Liszt deliberadamente posicionava seu piano de perfil para a plateia, para que os fãs pudessem ver seu rosto e verificar seu talento — o instrumentista não levava partituras ao palco e tocava de memória.

Relatos de espectadores, de acordo com o texto de Heine, comparavam a reação dos fãs às performances do pianista a uma espécie de êxtase místico. Seguidores de Liszt disputavam para adquirir peças de seu vestuário (como luvas ou lenços), cordas rompidas de seu piano e, até mesmo, mechas de seu cabelo. 

Médicos da época classificaram a Lisztomania como um transtorno mental maníaco. No entanto, alguns pensadores acreditavam que a conduta dos fãs era uma ação compensatória — uma distração do cenário de crise econômica, fome e repressão governamental que afetou o continente europeu no século 19.

De 1841 à 2022: o que mudou?

Atualmente, frio, perigo, noites passadas na rua, alimentação precária e outras adversidades são parte do dia-a-dia dos fãs de música mais apaixonados, que acampam durante meses para assistir um espetáculo de apenas algumas horas de duração. Para investigar o fato, nossa equipe foi até o acampamento de fãs que aguardavam pelo show de Louis Tomlinson, cantor e ex-integrante da One Direction, boyband que foi um grande fenômeno adolescente do início da década de 2010. A apresentação aconteceu no Espaço Unimed, em São Paulo, no dia 28 de maio, sábado. No dia anterior conversamos com integrantes da Barraca 1, ou B1 — composta por 67 pessoas, acampadas no local desde dezembro de 2019 — sobre a experiência.

O cantor, que não pisava em solo brasileiro desde 2014 — ano da última apresentação da One Direction no país, e pouco antes do grupo anunciar uma pausa indeterminada na carreira — estava com o show inicialmente marcado para 10 de maio de 2020. Porém, com a pandemia, a apresentação foi adiada sucessivas vezes. Com a ameaça sanitária do covid-19 e o início da quarentena, em março de 2020, o grupo de fãs, que já acampava na entrada da casa de shows há quatro meses, viu a oportunidade de conhecer seu ídolo desvanecer. “Chorei muito, porém mantive a esperança. O Lou [apelido carinhoso dado ao cantor por suas fãs] estava remarcando muitos dos seus shows cancelados”, relatou uma das jovens, que pediu para que seu nome não fosse divulgado.

Como forma de demonstrar seu amor e carinho pelo ídolo e registrar a experiência de aguardá-lo por meses, o grupo de fãs criou um diário de acampamento nas redes sociais, atualizado constantemente com fotografias e muito sentimentalismo.

Postagem no diário de acampamento um dia após o show. [Imagem: Reprodução/Twitter/@B1WallsTour]
Para quem assiste de fora, o funcionamento e logística de um acampamento desse porte podem gerar uma série de questionamentos. Em entrevista à Agência Universitária de Notícias, as integrantes da B1 explicaram que o grupo se organizava a partir de uma planilha de revezamento — cada acampante adaptava sua rotina para estar na barraca, mesmo se apenas por uma hora, com certa periodicidade. Cada integrante deveria cumprir um número determinado de horas no local por mês, e fãs que não residem em São Paulo poderiam contribuir financeiramente. 

Uma das acampantes, Luiza (a pedido das entrevistadas, os nomes utilizados nesta reportagem são fictícios), de 21 anos, conta que é de Campinas, cidade no interior do estado de São Paulo, mas atualmente estuda em Minas Gerais. Durante os oito meses de acampamento, a estudante esporadicamente viajava até a capital paulista para cumprir os horários de revezamento atribuídos à ela. “Ficava um dia inteiro aqui e depois voltava para minha casa. Eu cheguei a dormir [no acampamento] algumas vezes em 2019 e 2020, quando não estava tendo aula”, diz Luiza. “Depois veio a pandemia, e passei na faculdade, mas tinha fé que algum dia o show iria voltar, então não pedi reembolso. Expliquei minha situação para as administradoras da barraca, elas compreenderam e nos organizamos”.

Devido à criminalidade crescente na metrópole paulista, o grupo procurou não deixar a barraca vazia ou uma de suas integrantes sozinha em momento algum. A quantidade de pessoas acampando em um mesmo horário era relativa, pois o revezamento funcionava de acordo com a disponibilidade de cada membro, mas Gabriela, de 21 anos, garante que havia sempre ao menos duas acampantes no local. “A região não é muito segura, mas algumas meninas fizeram amizade com os seguranças do Espaço das Américas [atual Espaço Unimed], o que ajudou um pouco”, conta a fã.

A organização foi um fator essencial para que as jovens pudessem conciliar a rotina de acampamento com suas atividades externas, suas vidas pessoais e familiares, estudos, amigos e relacionamentos. Sabrina, de 18 anos, explica: “Quando se pensa em acampamento, parece que nós vivemos aqui, que ficamos aqui o tempo inteiro, mas não. Em um dia que está um pouco mais cheio [de obrigações, afazeres], por exemplo, você pensa: ‘vou lá fazer só duas horas, porque tem mais gente fazendo horário’. E em dias que a rotina está mais tranquila, você fica o tempo que quiser e precisar”. Sobre conciliar a vida no acampamento com outros relacionamentos pessoais ou familiares, Sabrina relata que não há muitos problemas: “No show do Niall [Horan, também ex-integrante da One Direction que se apresentou em São Paulo em 2018], quando eu acampei, tinha uma menina que namorava. O namorado dela vinha e ficava fazendo companhia. É uma situação que não atrapalha”. 

Questões práticas sobre o acampamento, como a manutenção da higiene pessoal diária, também despertaram a curiosidade da nossa equipe. “Tomei um banho agora, tem uma menina aqui no acampamento que alugou um hotel aqui atrás e ofereceu o quarto dela pra gente tomar banho”, diz Maria, de 20 anos. “E eu trouxe lencinho umedecido, então caso não aconteça um banho decente [até o momento no show, no dia seguinte] vai ser um ‘banho de gato’ mesmo, fedida eu não fico”. Já outros acampantes planejavam visitar amigos que moram nas proximidades ou, no caso dos paulistanos, voltar para casa para tomar banho, comer, e retornar ao acampamento posteriormente.

Em relação ao apoio de seus familiares, as respostas das acampadas variaram. “Minha mãe acha que eu sou maluca”, diz Sabrina, seguida por Jaqueline, de 18 anos:A minha [mãe] não gosta, mas ela me ajuda”. Giovanna, de 17 anos, é uma das poucas que relatam encorajamento por parte dos pais. A minha mãe acampou comigo no show do Niall e no show do Shawn Mendes. Esse é o primeiro show que ela não está comigo e está arrasada, porque o Louis é o favorito dela. No show do Niall, eu e minha mãe dormimos duas noites na rua. Muitos pais têm certa resistência, ‘ah, é perigoso, é loucura’, mas tem muitas mães que apoiam, também, e a minha é um exemplo”, narra a adolescente. 

“O que o Louis Tomlinson representa para você?” — com essa pergunta, encerramos nossa entrevista. Maria detalha sua relação com o artista no seguinte relato:

“Tenho uma conexão com ele que não consigo explicar. O Lou sempre foi meu favorito. A Jay [Johannah Deakin, 25/3/1973 – 7/12/2016], mãe do Lou, faleceu de câncer e eu também perdi muita gente da minha família [para a doença]. Minha bisá, inclusive, faleceu com uns dois, três meses de diferença [para a morte da mãe de Tomlinson]. Sempre amei ele demais, e eu tenho uma identificação muito forte por tudo que ele passou. Passo por vários problemas de estabilidade mental e o Lou é uma âncora para mim. Sei lá, não consigo explicar. Então eu estou esperando a realização desse sonho, de ver ele ali, de ouvir ele, ver ele cantar com a mãozinha na barriga, porque não tem nada, nada nesse mundo que eu não faria por ele. Sério mesmo. Não tem!”

O psicanalista e doutorando pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Thiago Gomes Marques, explica que o comportamento fanático é resultado da projeção de características do próprio fã na pessoa idolatrada: “Ao reconhecer que uma figura artística, ou banda musical, por exemplo, é muito boa, de alguma forma eu coloco nessa figura uma série de coisas minhas. Eu projeto nela coisas pessoais que vão torná-la, de alguma forma, especial”. “Essa identificação tem uma função de confiança, de proteção, pertencimento social”, complementa. 

Thiago expõe que a relação levantada por Maria, sobre os casos de câncer em sua família e aquele sofrido pela mãe do cantor, refere-se ao pensamento de imaginar que o outro está sofrendo dos mesmos sentimentos, criando uma espécie de identificação. “Os sentimentos de vazio e perda que a pessoa sente acabam gerando pressuposições de que o cantor também os sente. E esses aspectos criam afetos de solidariedade”.

Quanto à questão financeira, a Barraca 1 possuía uma reserva de dinheiro para mantimentos básicos, como água e alimentos, e para reparos na barraca e colchões. Cada integrante do grupo ajudava com o valor que podia — algumas possuíam sua própria independência financeira, e outras dependiam de sua família, o que demonstra a pluralidade do público.

Nossa entrevista foi interrompida momentaneamente por uma situação inesperada: uma briga entre acampantes de múltiplas barracas. A busca pelo lugar mais próximo do ídolo na plateia e o medo de não chegar perto o suficiente do palco após meses de espera causaram uma avalanche de discussões, motivadas por boatos e informações distorcidas que circulavam entre os fãs. Oficialmente, 67 pessoas integravam a B1, contudo, membros de outras barracas acreditavam que o número ultrapassava a marca de 200 integrantes. 

Outro fator que motivou a discussão foi o conceito de membros “pagantes” na barraca — como explicado anteriormente, a B1 sustentava, com a contribuição de todos os participantes, uma reserva financeira para manter as condições do acampamento. No entanto, fãs que não moravam em São Paulo ou que não tinham tempo disponível para acampar contribuíam com valores maiores para garantir seu lugar na fila. Segundo as entrevistadas, não havia intenção de lucro — todo o dinheiro fornecido por membros unicamente pagantes era utilizado para a manutenção do espaço e o apoio com a alimentação e outras carências dos acampantes.

Consequências do fanatismo

Os aspectos de identificação e projeções pessoais observados em pessoas que possuem um amor exacerbado por figuras musicais não são, necessariamente, prejudiciais aos indivíduos.  O psicólogo Thiago Marques cita que muitas de nossas relações cotidianas passam por isso, uma vez que é normal querermos nos aproximar de pessoas que possuam características semelhantes às nossas. 

O problema surge quando tal admiração atinge um ponto em que o fã não consegue tolerar aquilo que é diferente ou antagônico a seu objeto de fanatismo. “Preciso anular as outras bandas, as outras pessoas que discordam de mim, e acabo reforçando aquele pensamento de que a minha banda é melhor. Ao anular o diferente, eu vou cada vez mais fechar esse ciclo de mesmice, reforçando minhas próprias crenças”, exemplifica Marques.

À exemplo disso, podemos citar a rixa existente entre os fandoms army e blink, grupos de fãs das bandas sul-coreanas BTS e Blackpink, respectivamente. Os dois grupos se atacam frequentemente nas redes sociais, dirigindo comentários ofensivos uns aos outros. Essa relação deve-se à competitividade, pelo fato das duas bandas, atualmente, serem as mais populares do cenário do K-Pop. Os integrantes das próprias bandas nunca pronunciaram-se negativamente uns contra os outros, mas seus fãs acreditam que as ofensas são um modo de demonstrar qual banda é melhor.

Outras características prejudiciais que se manifestam em indivíduos com comportamentos fanáticos, segundo o psicólogo, são os pensamentos obsessivos, ciúmes, ideias delirantes e ciclos de pensamento que sempre levam a um determinado objeto de sacramentalização.   Quando um fã possui uma identificação muito grande com certo artista e o transforma em algo extremamente significativo em sua vida, tudo o que seu ídolo canta, suas atitudes e seu posicionamento político e social acabam sendo recebidos como uma ordem. O sujeito incorpora todas as características, pensamentos e doutrinas que aquele cantor ou grupo musical propagam. “Se uma banda tem, por exemplo, um posicionamento neonazista, é muito fácil que um fã ache que aquele é o caminho certo, porque ele não consegue criticar seu objeto de idolatria”.

O fanatismo também apresenta consequências para a celebridade alvo. De acordo com Thiago, após um período de tempo cultuando um famoso, o sujeito fanático vai ter dificuldade de aceitar até que o próprio ídolo cometa “erros” — por exemplo, demorar para lançar músicas, ou criar uma música que vá em desacordo com o gosto pessoal do fã. “Se essa banda se tornar diferente daquilo que o sujeito uma vez projetou, a chance de ele ter um comportamento agressivo contra a própria banda é grande”, reitera o psicólogo.

A data de 8 de dezembro de 1980 é um exemplo dessas situações. Neste dia, o cantor e integrante do grupo musical Beatles, John Lennon, foi assassinado por um fã. O autor do crime, que se declarava amante da banda, estava se sentindo irritado com as letras mais recentes do músico. O fã não aceitava as declarações dos Beatles sobre se considerarem “mais famosos que Jesus”, e canções como God e Imagine iam contra suas crenças religiosas e pessoais. O resultado foi uma fatalidade que marcou a história da música e, séculos após a Lisztomania, reacendeu, na época, o debate sobre o comportamento patológico que pode surgir do simples amor de fã.

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