A criminalização do aborto no Brasil

A questão que impacta a vida de milhares de mulheres brasileiras ainda é tabu e crime no País

Imagem: Reprodução/ Rawpixel

Por Bianca Camatta, Caroline Kellen, Eduarda Ventura, Isabella Oliveira e Rosiane Lopes

Risco de vida a gestante, estupro e anencefalia do feto. Esses são os únicos casos em que a lei brasileira permite a realização de aborto. Outras situações são caracterizadas como crime. Ainda que exista a tentativa de legalizar essa prática no Brasil, como já aconteceu em outros países da América Latina, a maioria dos projetos de lei no país tentam restringir a prática. 

Estima-se que mais de 500 mil abortos são realizados todos os anos no Brasil segundo a pesquisa Percepções do Aborto no Brasil realizada pelo Instituto Patrícia Galvão. No entanto, esse número não é exato, visto que grande parte das interrupções de gravidez são feitas de maneira clandestina. De acordo com o Ministério da Saúde, apenas em 2019, foram registradas 195 mil internações no Sistema Único de Saúde (SUS) por complicações decorrentes do aborto. 

Alguns fatores são obstáculos para a prática, mesmo nos casos em que é legalizada. Por exemplo, nem todos os estados brasileiros possuem serviços de abortamento legal. Segundo uma pesquisa de 2016, realizada pela Universidade Estadual do Piauí juntamente Universidade de Brasília, sete estados não possuíam nenhum serviço ativo e apenas quatro ofereciam o procedimento fora das capitais. Além disso, atualmente, constam no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) 90 locais que oferecem esse serviço, entretanto, nem todos garantem o procedimento de fato.

As questões religiosas, morais ou de outra categoria ainda são um argumento usado por muitos para manter a criminalização, visto que uma pesquisa recente aponta que 41% dos brasileiros é contra qualquer tipo de aborto. Enquanto isso, do outro lado, há uma crescente busca pelos direitos das mulheres para que possam tomar essa decisão independentemente do motivo. Essa restrição, mesmo sendo apoiada pela maioria no cenário político brasileiro, pode trazer consequências psicológicas e físicas às mulheres que seguem com a gravidez indesejada ou realizam o aborto de maneira clandestina. 

Segundo o Guttmacher Institute, em países onde o aborto é legalizado, a taxa dessa prática caiu de 46 para 27 abortos a cada mil mulheres em idade reprodutiva. [Imagem: Reprodução/ Freepik]

O cenário brasileiro

À exceção das três situações previstas por lei, o aborto é proibido no Brasil, condição que todos os anos leva milhares de mulheres a buscarem serviços clandestinos, muitas vezes, em locais insalubres, o que aumenta o risco de morte ou complicações. 

Mulheres vítimas de violência sexual têm direito à atendimento gratuito pelo Serviço Unificado de Saúde (SUS), porém, para o aborto ser realizado, a gestação não pode passar de 22 semanas e o feto deve pesar no máximo 500 gramas. 

Para Juliana Wahl, mestranda em antropologia social pela USP, “a criminalização do aborto no Brasil não impede que mulheres abortem, o que impede é que as mulheres façam isso de uma maneira segura. Ela cria um estigma e não melhora o debate público e os serviços de saúde. Não temos serviços de aborto espalhados por todos os municípios do Brasil, o que deveria ser a realidade.”

Em 2020, um levantamento do DataSUS apontou que a maior parte das mortes causadas por compliçações relacionadas ao aborto entre os anos de 2009 e 2018 foi de mulheres pretas ou pardas, sendo seis em cada dez, ou seja,  número que concorda com o paralelismo entre desigualdade social e racial no país.

A maioria das meninas entre 10 e 14 anos internadas pelo SUS, de 2010 a 2019, também era preta ou parda. Quanto à localidade, a maior parte dos abortos nessa faixa etária ocorreu na região Nordeste (9,9 mil). “As mulheres mais pobres, negras, periféricas, das zonas rurais do Brasil são as mães que estão falecendo por conta de não darmos conta desse debate público”, afirma Juliana.

Também existem diversas questões subjetivas, como ser abandonada pelo parceiro, que fazem com que uma mulher decida por não prosseguir com uma gestação, afirma a psicóloga. “O aborto muitas vezes acontece porque nenhum método contraceptivo é 100% eficaz. Nós, mulheres podemos sofrer violência sexual, podemos utilizar um método que não funciona, podemos ser coagidas”.

O aborto em um país cristianizado

“Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento e aborto provocado por terceiro são crimes no Brasil cuja a pena aos envolvidos varia de um a quatro anos, de acordo com o sistema penal brasileiro (decreto de lei 2.848 publicados em 1984, artigos 124, 125, 126 do capítulo I: dos crimes contra a vida)” [Imagem: Reprodução/ Pxhere]
Um dos entraves na descriminalização do aborto é o ressoar de uma país cristianizado, cujas leis também recebem influência religiosa. Em relação a isso, o pastor cristão Renato Alves, formado no Seminário Teológico de Guarulhos da Assembleia de Deus de Guarulhos, explica que a valorização do feto e da mulher é explícita em toda a Bíblia. “No êxodo, capítulo 21, versículo 22 ao 25, diz que se uma mulher estivesse gerando, algum homem a ferisse e a criança viesse a falecer, ele deveria morrer no lugar da criança, o que evidencia o quão seriamente o assunto era abordado”. 

Na perspectiva cristã, a vida é abordada de maneira integral, ao englobar o processo em toda sua completude. Assim, por meio de argumentos como a presença do Espírito Santo em João Batista, ainda no ventre de sua mãe, entre outras inúmeras passagens bíblicas, a população cristã brasileira se coloca contra a prática. Uma vez que esse grupo detém intenso poder político — especialmente no Congresso Nacional, ao formar a chamada Bancada Evangélica —, o não prosseguimento de políticas públicas e mudanças legislativas voltadas para abordagem segura é justificado.

O pastor exemplifica que “muitas mulheres, por terem esquecido de tomar uma pílula,  alguém não ter tido cuidado na relação ou o método contraceptivo ter falhado, por exemplo, acabam engravidando e abortam, porque é algo não programado.” Então, na ótica cristã, que rejeita a aleatoriedade dos fatos, e ao passo que se compreende a onisciência de um Deus triuno (Pai, Filho e Espírito Santo), o cenário muda em prol de tornar digno de vir ao mundo todo ser humano, mesmo durante a gestação. Por outro lado, há cristãos que afirmam que a bíblia não aborda diretamente a interrupção da gravidez, ou seja, essa afirmação seria construída a partir de uma reinterpretação desse livro para condenar o aborto.

“Somos uma sociedade extremamente libertária do ponto de vista de manifestações comportamentais, como sermos o país do Carnaval, por exemplo, de sermos um país que cultua a sexualidade de forma explícita, mas é o mesmo país que bota um véu sobre algumas temáticas, entre elas, o aborto”, afirma doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Priscila Lapa, em entrevista.

Prática e consequências 

Os motivos para realização dos abortos que hoje são legalizados no Brasil  — quando a mulher é vítima de estupro, quando há risco de vida para a mãe e quando o feto é anencefálico — não são os únicos considerados pelas mulheres. Razões como a falta de condições psicológicas e financeiras também constam entre as alegadas para o não prosseguimento da gravidez.

E, mesmo quando a circunstância do aborto é legal, as mulheres podem ter dificuldade de realizar esse procedimento. Um exemplo disso foi o caso de uma criança de 11 anos que foi vítima de estupro pelo tio e engravidou. A menina teve o aborto negado por um hospital e foi induzida a não realizá-lo por uma juíza. 

O aborto é um processo complexo. Os impactos psicológicos não são poucos. Segundo a psicóloga sistêmica Carolina Dantas, mestra em Intervenções Clínicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), as consequências psicológicas para quem realiza o procedimento depende de como a interrupção da gravidez é decidida e realizada. Carolina conta que, mesmo quando abortar é uma escolha consciente da mulher, o processo não é fácil. As mulheres não são só afetadas fisicamente, mas, também, psicologicamente. 

“Abortar não é uma experiência simples, deixa suas marcas. Quanto menos assistida e acolhida a mulher estiver, mais julgada e condenada vai se sentir e, quanto mais arriscado for o procedimento, maiores as chances desenvolver algum trauma, entrar em um quadro de depressão ou estresse pós-traumático”, explica a psicóloga. Por outro lado, quando a pessoa é acolhida, ouvida e há a oportunidade da realização de um procedimento legal e respeitoso, os impactos psicológicos podem ser atenuados. 

A psicóloga explica que não se pode afirmar quais são as consequências de gerar e parir um filho não desejado, visto que cada caso é diferente. Porém, dar continuidade a uma gestação indesejada pode refletir na dificuldade de conexão entre mãe e prole e na qualidade do vínculo entre eles. Há também a chance da transferência de culpa para esse filho, que pode crescer acreditando ter estragado a vida da mãe. Apesar disso, existem casos em que a mulher acaba por se sentir grata por não ter abortado, por criar vínculos com a criança. Cada caso tem suas particularidades. “Não temos como prever como será, mas a única coisa que temos certeza é de que essa escolha é contaminada por crenças, medos e ameaças.” 

Carolina afirma que o apoio psicológico é essencial, mas a criminalização impede políticas que ofereçam suporte a todas. Mulheres com maior poder aquisitivo conseguem buscar tratamentos, enquanto as mais pobres ficam desamparadas. “A legalização seria uma alternativa para minimizar os problemas e diminuir as mortes. É necessário, no mínimo, a descriminalização para que políticas de assistência e acolhimento sejam possíveis.” 

Para além da manutenção da saúde física da mulher durante o aborto, a realização do procedimento de maneira segura e legal permite entender o que motivou a interrupção da gestação e orientar as mulheres com relação ao uso de métodos contraceptivos.

A divulgação de métodos contraceptivos é importante para a saúde da mulher e é uma opção que contribui para diminuição do aborto nos países onde essa prática é legalizada. [Imagem: Reprodução/Unsplash]

Abordagem médica

A interrupção da gravidez é segura quando feita com profissionais que conhecem a técnica. “Tanto que chega a ser 10 vezes mais seguro do que um aborto natural, espontâneo, que é aquele que acontece sem qualquer intervenção”, conta Jefferson Drezett, professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP e membro do Conselho Consultivo do Consórcio Latinoamericano Contra o Aborto Inseguro (Clacai).

O aborto pode ser realizado de maneira segura ou insegura. O procedimento seguro é realizado dentro de condições legais, em um ambiente propício e com profissionais qualificados, enquanto o inseguro é feito na clandestinidade e realizado por pessoas que não têm capacitação para realizá-lo. “Nós também vamos considerar o aborto como inseguro quando é realizado num espaço físico que não reúne os mínimos requisitos sanitários e de segurança”, complementa o professor.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 35 milhões de abortos inseguros são praticados por ano e, desses, 97% ocorrem em países em desenvolvimento na África, Ásia e América Latina. “Abortos inseguros são praticados em países que em sua maioria mantêm legislações e leis penais que criminalizam ou restringem fortemente o acesso das mulheres ao aborto”, continua Jefferson. 

De acordo com estimativas do Ministério da Saúde, uma mulher morre a cada dois dias devido a práticas abortivas inseguras. “Nem todas as mulheres morrem por aborto, mas podem terminar com sequelas bastante graves para sua saúde, muitas vezes, que estão dentro do campo sexual”. Assim, uma mulher que não está preparada ou não pode ser mãe em determinado momento e se submete ao aborto clandestino, pode não conseguir ter um filho quando desejar devido às sequelas que impedem a reprodução. 

Jefferson também explica que a qualidade do aborto não legalizado pode variar, a depender do perfil da mulher, uma vez que aquelas que têm menos recursos econômicos “geralmente estão mais sujeitas à violência de um aborto praticado de maneira clandestina”. 

“Quando se sai da clandestinidade, você pode oferecer mais do que uma interrupção de gestação: você pode oferecer uma qualidade de saúde sexual e reprodutiva melhor.” (Jefferson Drezett) 

Onda Verde e aborto na América Latina 

A legalização do aborto não é um tabu apenas no Brasil. Nos países latino-americanos, a discussão política sobre a necessidade de descriminalização da prática leva milhares às ruas, todos os anos, pelos direitos das pessoas com útero. Segundo uma pesquisa feita em 2017 pela Organização Mundial da Saúde, três a cada quatro abortos realizados na região são considerados inseguros. 

Dos 20 países latino-americanos, oito deles permitem a realização de aborto em qualquer circunstância. São eles: Cuba (o primeiro país da região à legalizar a prática), Porto Rico, Uruguai, Guiana, Guiana Francesa (uma vez que, no país europeu do qual faz parte, o aborto é legal até 14 semanas de gestação), México, Argentina e Colômbia. 

Na Venezuela, Costa Rica, Chile, Panamá, Guatemala, Equador, Paraguai, Belize, Bolívia, Peru e Brasil, a prática é permitida apenas em condições de risco para a gestante ou para o feto. 

Por sua vez, Suriname, Haiti, República Dominicana, Nicarágua, El Salvador, Jamaica e Honduras proíbem abortos em quaisquer circunstâncias.

“A culpa não era minha, nem de onde estava, nem do que eu vestia” foi o grito de milhares de mulheres da América Latina, que protestaram pela legalização do aborto nos países da região [Imagem: Reprodução/Pixabay]
A luta militante pela descriminalização na América Latina é chamada de Onda Verde. O movimento teve início na Argentina, inspirado pelas Mães da Praça de Maio, mulheres que, nos anos 1970, lutaram em nome da memória e da justiça por seus filhos e netos desaparecidos na última ditadura civil-militar no país. Na época, as vanguardistas utilizavam lenços brancos nas cabeças. Por isso, a escolha pelo lenço é um símbolo da luta por direitos — na atualidade, o de escolher o que fazer com os próprios corpos. Já o verde foi eleito por não ter nenhum outro significado político atrelado à cor, além de a mudança significar a renovação da luta. 

A maré verde das argentinas conquistou frutos no país: em 2020, a prática do aborto foi legalizada de forma segura, legal e gratuita para gestantes com até 14 semanas de gravidez. Então, o movimento se estendeu até o Chile, onde, em 2022, o direito ao aborto em qualquer circunstância foi incluído no esboço da nova Constituição. 

Por fim, foi a vez da Colômbia descriminalizar essa prática em seu território. Claudia Patricia Vélez Ramírez, colombiana de 52 anos e assistente social, afirma que dois fatores foram decisivos para que isso pudesse acontecer: a saúde pública na Colômbia, devido à constante morte de mulheres submetidas a abortos ilegais, e a possibilidade de autonomia e liberdade das mulheres para decidir sobre seus corpos. “Não ter essa liberdade era visto pelas organizações de direitos humanos como uma forma de discriminação contra as mulheres”, afirma a assistente social. 

O contexto dos abortos realizados nos demais países latino-americanos segue o mesmo padrão brasileiro: quem os realiza são, em sua maioria, mulheres em situação de vulnerabilidade social, e, consequentemente, os procedimentos são feitos de maneira perigosa

Claudia, entretanto, enxerga na Onda Verde uma esperança para as mulheres não apenas da Colômbia e da América Latina, mas de todo o mundo. “É um marco histórico; neste cenário, há espaço para maiores discussões, reflexões e para a implementação de práticas associadas à equidade de gênero, justiça social e empoderamento feminino”. 

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