O que Mário de Andrade revela sobre a cozinha brasileira?

Evento organizado pelo IEB reúne estudiosas das obras de Mário de Andrade para discutir a culinária e identidade brasileira

“Mário de Andrade mostrou uma sensibilidade extrema sobre o que poderia significar falar de comida para expor valores culturais”. É o que revela Claude Papavero, uma das convidadas para a palestra “Fome estomacal de Brasil: Mário de Andrade e a cozinha brasileira”, que foi organizada pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP e aconteceu no dia 29 de junho.  

O escritor Mário de Andrade se empenhava em conhecer a identidade brasileira e criticamente compreendê-la, como destaca Marcos Antonio de Moraes, professor do IEB e um dos mediadores do evento. Viviane Aguiar foi a outra mediadora e, desde 2016, estuda a relação entre Mário de Andrade e a construção de uma ideia de cozinha brasileira. Seus estudos partem de um texto que ele escreveu, em 1939, chamado ‘Tacacá com Tucupi’, o único que ele dedicou inteiramente a essa temática. 

A ideia do IEBinário era apresentar ao público o interesse de Mário pela cozinha brasileira, “ que ainda é pouco conhecido e explorado, mesmo no meio acadêmico”, diz Viviane.  A “fome estomacal de Brasil”, citada pelo escritor em uma de suas cartas e que dá nome à palestra, tinha muito a ver com a vontade visceral do autor de conhecer o país, seus costumes, mas também pode ter um sentido mais literal. Um que diz respeito à busca da compreensão do local e seu povo por meio dos alimentos, sua cultura culinária. 

Cartaz de Divulgação do Evento

Três pesquisas apresentadas no evento focaram de formas distintas o interesse do escritor pela culinária. A graduada em gastronomia pelo Centro Universitário SENAC e mestre pelo IEB, Paula Feliciano, inicia seus estudos explorando a importância da sociabilidade intelectual em restaurantes na época de Mário a partir da coleção de cardápios que ele deixou e que se encontram no arquivo do IEB. 

Os menus eram signos de sociabilidade das elites brasileiras e colecioná-los era uma prática bem presente nos séculos XIX e XX. O trabalho de mestrado de Paula se baseou, então, sobre o enlace entre a gastronomia e a coleção de cardápios do Mário. Os menus eram formatados pelos moldes da culinária francesa, mesmo os mais simples.

O escritor não foi anfitrião em nenhum dos menus, mas foi uma personalidade convidada bastante emblemática e é possível notar, a partir deles, que ele circulou em diferentes espaços sociais, colocando-se em contato com uma grande variedade de escritores, artistas, músicos e políticos. Os cardápios são uma grande testemunha de sua vida profissional, política e, até mesmo, pessoal. 

Um dos encontros que Mário participou foi um banquete relacionado às raízes do movimento modernista e aconteceu no Salão Trianon, em São Paulo, no ano de 1921. O evento foi motivado pelo lançamento da obra “As Máscaras”, de Menotti del’Picchia, e é considerado como lançamento público do movimento principal da época, antecedendo a Semana de Arte Moderna. 

A mestre e doutora em Letras pela USP, Jakeline Cunha, trouxe para sua apresentação a centralidade do caju nas obras de Mário de Andrade. “No livro Macunaíma, o que a gente pode notar é o projeto do Mário e essa preocupação de buscar o elemento específico do Brasil. O elemento particular é recolher tudo que temos. Um dos motivos que nos particulariza é a nossa mesa de alimentos, de frutas”, diz Jakeline. Segundo ela, a obra demonstra que o “gosto Brasil” tem muito a ver com o “gosto caju”. 

A intenção dele era “conhecer ‘as dimensões’ do país pelos sentidos, não só visual, tátil, olfativo, mas também gustativo”, como propôs Claude Lévi Strauss. O personagem Macunaíma, então, come vários alimentos característicos brasileiros e o caju representaria, como disse Jakeline, a alimentação dos estados nordestinos, na obra. Quando Macunaíma se encontrou doente no meio do mato, os cajueiros foram seu abrigo, alimento e remédio para o herói. 

Gilberto Freyre, em “O Caju, o Brasil e o Homem”, afirmou que há “uma significativa associação do caju com o homem”. Para Jakeline, “o gosto travoso do caju é o gosto do Brasil, país marcado por contradições, como diz Mário de Andrade ‘de corpo espandongado, mal costurado’”. 

Para a sobremesa, a última apresentação foi de Claude Papavero, formada em Ciências Sociais pela USP e mestre e doutora em Antropologia Social também pela USP. Claude é uma referência em antropologia da alimentação, no Brasil, e expôs parte de seus estudos que deram origem ao artigo “Uma arte literária: O banquete de Mário de Andrade”.  

Em “O Banquete”, livro inacabado devido ao falecimento do escritor, Mário muito sutilmente, diante de cada elemento servido, mostrava as reações de cada um ao ingerir as comidas, diz Claude. Mesmo que não tenha sido finalizada, a história de um almoço elegante apresentou, portanto, usos literários inovadores de comidas. Claude apresenta que, com o desenrolar dos fatos, surgem discussões sobre a política da época e “dos problemas que a produção e a recepção pública das atividades musicais brasileiras enfrentavam por volta de 1940”. 

“Nessa sensibilidade de Mário de Andrade – que não somente gostava de comidas, mas era profundamente comovido [por elas] – é muito interessante perceber que ele teve uma sensibilidade extremamente precursora sobre o que a alimentação poderia representar para a compreensão dos valores culturais de uma sociedade. O que esse banquete, mesmo inacabado, oferece é essa visão”, finaliza Claude. 

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