Um retrato do home office no Brasil

Por Giovanna Farnezi, Ana Carolina Guerra, Theo Sales, Carlos Everton, Iasmin Rodrigues e Luana Machado

A relação da humanidade com o trabalho segue em transformação o longo dos séculos com um ritmo variável, em que mudanças radicais podem acontecer alavancadas por alterações sociais, econômicas, avanços tecnológicos e, também, por fatalidades humanitárias, como é o caso do impacto da pandemia de coronavírus no mercado de trabalho.

Foi a partir de março de 2020, quando foi decretado estado de calamidade pública no Brasil em razão da pandemia do novo coronavírus, que o home office deixou de ser uma possível tendência do futuro. O teletrabalho chegou abruptamente para uma enorme parcela de trabalhadores do país, no setor público e privado, como uma estratégia mais efetiva de segurança sanitária, o distanciamento social, até que as vacinas fossem criadas e disponibilizadas.

Como relata o comunicador e influencer, Pedro Balciunas, 28 anos, “a empresa mandou pegarmos nossas coisas, notebooks e etc, e irmos para casa indefinidamente. Porém, o banco já estava ensaiando o home office há algum tempo”. A pandemia é o estopim que estabelece o modelo de trabalho à distância nas mais diversas atividades possíveis ao redor do mundo.

Os preconceitos, medos e conservadorismos das pessoas e empresas já foram quebrados pela necessidade de adaptação à mudança repentina. Os desafios da consolidação desse modelo de trabalho não se relacionam com as incertezas mas questionam sobre a necessidade de uma reestruturação planejada, de uma nova legislação e mudanças de mentalidade para então fundamentar o modelo remoto no pós-pandemia, que será muito diferente da realidade de ‘home office forçado’ vivida atualmente.

A bancária Amanda Rescke, 33, voltou de sua licença-maternidade diretamente para o home office, e conta que foram grandes as dificuldades dela e de seu marido para organizar a rotina com o filho recém-nascido e a filha de seis anos. As incertezas da pandemia e a falta de preparação das escolas e empresas foram os pontos mais complicados no início. Durante este período, os pais estão tendo que lidar com as crianças em casa, e auxiliá-las nas aulas online durante seu expediente de trabalho, mas essa é uma das dificuldades que não deve ser predominante no modelo de trabalho remoto pós-pandemia.

Arquivo pessoal: bancária Amanda Rescke com o seu caçula em home office.

“Conversando com pares que possuem filhos, sinto que para estes profissionais o trabalho remoto foi algo negativo e adicionou uma sobrecarga de estresse”, relata o designer Bruno Delgado, 28. Na opinião dele: “sinto que as pessoas estão achando que a experiência que temos hoje é home office, o que não é verdade. Tivemos que nos adaptar por conta da pandemia para manter o negócio, mas trabalhar de forma remota precisa de todo um trabalho e preparação”, explica.

Arquivo pessoal: designer Bruno Delgado trabalhando de casa.

Cenário brasileiro

Um estudo americano da Universidade de Cambridge avaliou 83 países sobre o potencial de trabalho remoto com o início da pandemia. O Brasil ficou na 45ª posição, com 25,65% de teletrabalho em potencial. Com isso, potencialmente, 20 milhões de trabalhadores poderiam estar em regime de home office durante o ano de 2020. Além disso, esse percentual também posiciona o Brasil no terceiro entre os doze países da América Latina avaliados, ficando atrás apenas do Uruguai (27,28%) e do Chile (25,74%). A pesquisa nota uma relação direta entre essas porcentagens e as rendas per capitas.

A partir de dados nacionais pelo IBGE, em novembro de 2020, havia cerca de 7 milhões de pessoas em regime de trabalho remoto. Esse número variou ao longo do ano, sendo o início de junho o pico de pessoas em home office, com quase 9 milhões, mas ainda bem abaixo do potencial apontado pelo estudo americano.

Quando se analisa os estados da Federação, considerando o mês de junho de 2020, que teve o maior índice de trabalho remoto, São Paulo aparece com o elevado número absoluto de pessoas em home office, mais de 3 milhões, e o Distrito Federal posiciona-se com o maior percentual, aproximadamente 25% do total de trabalhadores. Em contrapartida, Roraima e Acre são os estados com menores números absolutos, ambos com apenas quase 15 mil casos, enquanto que o Pará possui o menor percentual (4,1%).

A partir desses números, é possível notar as discrepâncias entre o potencial estimado de pessoas em regime de home office, além da já apontada relação entre a renda per capita e o trabalho remoto. As análises feitas pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram um retrato ainda mais nítido desse cenário e permitem traçar um perfil de quem é mais provável de ser um trabalhador de home office.

Como já foi apontado indiretamente, a Região Sudeste é aquela que se manteve com os maiores índices de teletrabalho ao longo do período analisado (de maio a novembro de 2020). Na sequência há a Região Nordeste, Sul, Centro-Oeste e, na última posição, a Região Norte. A explicação para esse panorama pode ser elucidada quando se observa o percentual de home office por setor produtivo: o setor de serviços é o que se manteve sempre em primeiro lugar com aproximadamente 43,5%, seguido pelo setor público (que variou entre 31% e 40%), setor industrial (em torno de 7%), de comércio (entre 5% e 6%) e, em último lugar, o setor agrícola (que manteve taxas abaixo de 1%).

Ao ponderar que o setor de serviços se concentra mais na Região Sudeste enquanto o Norte se baseia mais em agropecuária, a disparidade entre as unidades federativas faz sentido e é uma das marcas da desigualdade no país.

 

O setor privado é o que continua apresentando maior parcela dos trabalhadores em home office, mesmo que a repartição pública tenha crescido no período analisado. Além disso, 85% destas pessoas em teletrabalho estão em empregos formais e 15%, em informais.

Ao analisar um perfil mais individual, combinando dados do Ipea, cerca de 56% das pessoas em trabalho remoto eram mulheres e 44% eram homens. Em um recorte de cor/raça, 65% eram pessoas brancas contra 35% pessoas pretas ou pardas (não haviam dados sobre pessoas de outras etnias). Mais de 75% dos trabalhadores neste regime tinham o Ensino Superior completo ou Pós-Graduação. Com isso, a faixa etária mais predominante foi de pessoas entre 30 e 39 anos (aproximadamente 32%), seguida do intervalo entre 40 e 49 (25%) e depois pela faixa dos 20 aos 29 anos (20%).

Além disso, de acordo com dados do Ipea, em novembro de 2020, havia cerca de 7 milhões de pessoas trabalhando remotamente. Apesar desse montante representar apenas 9,1% dos 80,2 milhões de ocupados e não afastados, a remuneração desses profissionais corresponde a 17,4% da massa de rendimentos.

Um estudo realizado em 2020 pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP aponta que 70% dos entrevistados afirmaram que gostariam de continuar trabalhando no modelo de home office. O levantamento entrevistou cerca de 1300 pessoas, sendo a maioria de trabalhadores de alta qualificação e renda. Do total, 19% não gostariam de continuar nesta modalidade e 11% apresentaram-se indiferentes.

Em entrevista para a AUN, Wilson Amorim, professor da FEA e um dos coordenadores da pesquisa, afirma que os resultados foram uma surpresa. Segundo ele, essa satisfação pode ser vinculada à redução do tempo de deslocamento até o trabalho, à segurança e à preservação durante a pandemia, além do fato da pessoa conseguir estar empregada em um momento no qual o desemprego aumentou de forma significativa.

Sobre o perfil social do público que faz home office, o professor afirma que são “pessoas de altíssima qualificação, que têm condição de barganha em sua relação de trabalho e de escolher o lugar onde vaitrabalhar”. Essas características explicam a discrepância observada no levantamento do Ipea, que mostra uma participação na renda muito maior que a porcentagem de trabalhadores.

Para Amorim, o número de pessoas nessa modalidade de teletrabalho deve aumentar, mas vai continuar seletivo a determinados segmentos. “Nós vínhamos numa tendência de digitalização do trabalho e essa tendência iria se impor. E a pandemia deu um tranco digital, deu um empurrão”, afirma o professor.

Segundo o especialista, o home office veio para ficar e, após a pandemia, deverão surgir modelos híbridos, em que serão considerados os custos e as necessidades das empresas e dos trabalhadores. Os ambientes de trabalho devem ser reavaliados, de forma a diminuir o tempo necessário de permanência nos escritórios a fim de reduzir custos e aumentar a eficiência.

A assessora de comunicação, Rafaela Sonim, 26, conta que gosta da “praticidade de acordar quase no horário, trabalhar com a roupa que quiser, fazer um café a qualquer hora, almoçar em casa, tomar banho na hora do almoço”, são coisas simples que podem até aumentar a produtividade e felicidade no trabalho. Para a profissional a desvantagem do processo é “que não tem muito horário para encerrar o expediente, inclusive nos finais de semana às vezes rola algum pedido inusitado de trabalho. Reuniões demoradas e contato com outras pessoas também é um ponto negativo no home office, você se acostuma a passar mais tempo sozinha”, ressalta.

Home office e as leis trabalhistas

Desde 2017, antes da pandemia, o Brasil já possuía uma lei que regulamentava o teletrabalho. O artigo 75-A, que foi implementado no decreto-lei nº 5.452, também chamado de Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Entretanto, como a adesão ao home office ocorreu de forma abrupta, a legislação trabalhista não conseguiu se adaptar no mesmo ritmo.

Esse artigo refere-se ao teletrabalho que é caracterizado “pela prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, por meio de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo”, explica Alessandra Barichello Boskovic, doutora em Direito e pesquisadora integrante do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (GETRAB-USP).

Com isso, o teletrabalho é uma modalidade de trabalho na qual o funcionário trabalha em um espaço que não engloba as dependências físicas da empresa. Quando o teletrabalho é realizado na residência do empregado, este é chamado de home office. “É, portanto, uma modalidade de teletrabalho, de modo que a legislação sobre esse tema se aplica também àquele”, expõe Boskovic.

Entretanto, o  artigo 75-A da CLT não apresenta uma regulamentação detalhada e extensa sobre os direitos e os deveres dos patrões e empregados na modalidade de trabalho home office. “O marco legal do teletrabalho não contempla uma série de aspectos práticos inerentes a essa forma de trabalho”, ressalta a doutora.

A legislação delega aos empregados e empregadores as decisões sobre questões como, responsabilidade sobre equipamentos, jornadas de trabalho e abonos. “Mas isso não é algo necessariamente ruim. As negociações coletivas de trabalho, celebradas pelos sindicatos representativos de cada categoria, têm importante papel de ajustar a legislação estatal às necessidades específicas da realidade de trabalho de seus representados”, aponta a advogada. Contudo, essa flexibilização da lei pode acabar afetando o bem-estar do trabalhador.

Entre as questões flexibilizadas no home office está a jornada de trabalho. Segundo a CLT, no teletrabalho, os patrões podem escolher controlar ou não o expediente do empregado. Assim, a empresa não é obrigada a pagar horas extras, caso o funcionário extrapole o horário de serviço. “A ausência de controle de jornada é um dos pontos de maior vulnerabilidade do teletrabalhador, pois poderá levá-lo a desempenhar excessivas jornadas e comprometer seus períodos de descanso”, comenta Boskovic.

A falta de controle da jornada também possui pontos positivos como a flexibilidade do horário e do ritmo de trabalho, “que pode refletir em aumento de produtividade e maior satisfação pessoal”, acrescenta a integrante do GETRAB-USP.  A flexibilização da jornada também permite ao profissional trabalhar de forma segmentada, o que pode acarretar na quebra da fronteira entre a vida profissional e a pessoal/familiar. Dessa forma, a pessoa acaba realizando as atividades do trabalho em momentos que antes eram dedicados ao lazer e à família.

Nesse sentido, Fernando Lucas, 28, vive uma experiência parecida. “Minha rotina se tornou mais confortável, porém, tenho dificuldade em desligar a chave do trabalho e ligar a chave da vida pessoal. Além disso, por estar em home, algumas pessoas pensam que você está disponível 24 horas”. Somada às jornadas expandidas, aparece a problemática da banalização do uso de equipamentos pessoais, Pedro preconiza que não gosta da “simbiose que se criou entre vida pessoal e profissional, acredito que a maior parte das pessoas perdeu a noção de que WhatsApp não é ferramenta de trabalho”.

As legislações trabalhistas também não garantem como direitos assegurados aos teletrabalhadores o recebimento de auxílios financeiros e ajudas de custos. A CLT alega que o patrão e o funcionário devem negociar sobre questões como aparelhos de trabalho e ajuda financeira para pagar os gastos que o trabalhador tem com o home office.  

Rafaela Sonim, assessora de comunicação, também pontua que “estar em casa e trabalhar pode ser muito bom para quem tem alguma estrutura, já para outros não. Tenho meu espaço e um ‘escritório’, mas sabemos que não é a realidade de todos”. Vale ressaltar que se por um lado os trabalhadores têm mais gastos para trabalhar em casa, por outro lado as empresas têm maior economia, considerando que elas podem reduzir significativamente ou até deixar de gastar com aluguel, energia, internet e água.

Devido ao poder econômico e de comando dos patrões, a negociação de benefícios entre os teletrabalhadores e os empregadores, muitas vezes, pode pender para o lado do superior. “Por isso, aspectos importantes não devem ser deixados a cargo de negociação individual entre as partes”, esclarece a advogada trabalhista.

“Os sindicatos também poderão definir, em Convenção ou Acordo Coletivo de Trabalho, responsabilidades pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e disponibilidade de infraestrutura necessária à prestação do trabalho remoto”, adiciona a advogada. A inclusão de termos sobre o home office nas negociações e acordos coletivos de trabalho se tornou mais presente com a pandemia. Segundo levantamentos da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), até o mês de agosto de 2020, 15,9% das negociações coletivas possuíam cláusulas sobre o trabalho remoto, contra apenas 2,9% em 2019.

Já os direitos assegurados por lei aos trabalhadores da modalidade presencial também são destinados aos teletrabalhadores, como aceitação de atestado médico de dispensa e licença-maternidade. “Atestados médicos que recomendam o afastamento do trabalho são causa de interrupção do contrato de trabalho, tanto no modelo presencial como no remoto. Não há distinção”, destaca Boskovic. O direito à licença-maternidade também é designado para todas as modalidades de trabalho, dessa maneira, as gestantes que trabalham por home office devem ter suas atividades trabalhistas totalmente suspensas durante a licença.

Pandemia, saúde e teletrabalho

O trabalho remoto traz uma série de implicações para a rotina, qualidade de vida e, consequentemente, bem-estar físico e mental do empregado. Durante a pandemia, as demandas do ambiente doméstico juntaram-se às tarefas do trabalho, o que afetou a maneira das pessoas enxergarem suas vidas privadas e profissionais. Uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde da Faculdade Getúlio Vargas (FGV) constatou que mais de 84% dos entrevistados afirmaram não ter recebido suporte ou avaliação de saúde e bem-estar de seus empregadores na modalidade de trabalho home office.

O questionário foi aplicado para 653 pessoas entre julho e agosto de 2019. Ele também atestou por meio do uso do instrumento WHO-5 (Índice de Bem-estar da OMS), o qual associa níveis de qualidade de vida a pontuações de 0 a 25, que quanto mais comprometido o bem-estar mental do trabalhador maior o risco de acometimento de sintomas físicos.

O desequilíbrio de rotina ocasionado pelas exaustivas jornadas de trabalho, falta de horários fixos e também devido à falta de separação entre a vida privada e a profissional são fatores de estresse e que abalam o bem-estar do trabalhador no home office. Na pesquisa ministrada pela FGV, a média do bem-estar dos indivíduos era de 13.81, pontuação considerada de risco. Além disso, foi comum a queixa de sintomas, como: insônia (54.8% dos participantes), fadiga (45.2%) e enxaqueca (42% do total).

O psicólogo e especialista em Saúde Coletiva pela Universidade CEUMA, Gilberto Costa, alerta sobre a mesclagem de atividades profissionais e domésticas: “Para demandar uma atividade, seja ela qual for, uma atividade intelectual ou uma atividade física, é preciso foco. Então, se você não está  focado no trabalho, quando se tem demandas no ambiente doméstico, isso gera baixa autoestima, além de fatores estressantes e ansiedade”.

As preocupações de quem trabalha em home office também se agravaram devido à pandemia. Muitos trabalhadores relataram ansiedade quanto às finanças, saúde familiar e sentimentos de solidão característicos do isolamento. O autor do estudo e pesquisador, Alberto Ogata, afirma que: “não é só uma questão mecânica, equipamento, mesa e utensílios, mas as pessoas ficam mais ansiosas, inseguras com o futuro, preocupadas com a pandemia. Trabalhar em casa na pandemia traz repercussões físicas e mentais”, destaca.

Nesse período de home office e isolamento social, é importante que os trabalhadores tentem cuidar da saúde física e mental. Para isso, é necessária uma alimentação saudável, praticar exercícios físicos, intercalar momentos de trabalho com algumas pausas e inserir na rotina atividades de lazer, como hobbies. Também é essencial que os trabalhadores procurem ajuda médica ou especializada caso sintam que o home office está trazendo consequências para sua saúde.

 

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