Os efeitos do isolamento social para além do vírus

Enquanto a Covid-19 atinge o sistema respiratório, outras partes do corpo humano são afetadas pelo distanciamento

Créditos: yanalya/ Freepik

Por Gustavo Zanfer, Lívia Magalhães, Lucas Zacari, Maria Clara Abaurre, Rebeca Alencar e Rodrigo Tammaro,

Durante a pandemia ocasionada pelo novo Coronavírus, aborda-se muito a importância da saúde mental em tempos de isolamento. Os famosos influenciadores digitais vêm criando destaques nos stories da rede social Instagram, como propagandas de cursos de yoga online a altos preços. Neste ínterim, psicólogos e psiquiatras se unem para disponibilizar atendimento gratuito; e são promovidos vários eventos para discutir essa temática. A saúde mental, contudo, não é a única afetada quando pessoas passam longos períodos isolados dentro de casa.

O excesso de tempo diante de telas, a carência de exposição solar e a diminuição dos exercícios físicos são apenas alguns dos fatores atrelados à quarentena que afetam, além da saúde mental, à saúde física. A totalidade desta problemática só será compreendida no futuro, porém, especialistas já fazem estimativas dos danos. 

Em contrapartida, ao ficarem em casa, algumas pessoas conseguiram buscar hábitos mais saudáveis. Um exemplo disso foi o aumento do consumo de alimentos naturais durante a pandemia. Ao deixar de sair e se expor a ambientes poluídos, também houve relatos de pessoas que sofreram menos com alergias e gripes durante o isolamento social. 

Confira a seguir como a pandemia tem afetado — para o melhor ou o pior — o corpo humano, a partir da audição, do paladar, da respiração, do olfato, do tato e da visão. 

Respiração e olfato

Quando a pandemia surgiu, os sintomas da infecção se mostraram muito semelhantes aos de pessoas que vivem com alergias respiratórias, como asma e rinite. Estas doenças inflamatórias crônicas das vias aéreas acometem mais de dois milhões de pessoas anualmente no Brasil, segundo dados do Hospital Israelita Albert Einstein, e são causadas por uma resposta exacerbada do sistema imunológico contra alguns agentes muito presentes em casa e considerados inofensivos quando inalados, como proteínas de ácaros, mofo, poeira doméstica, pólen e pelos de animais domésticos.

O doutor em Alergia e Imunopatologia e professor na Faculdade de Medicina (FM) da Universidade de São Paulo (USP), Pedro Giavina-Bianchi, afirma que as proteínas dos chamados alérgenos ou aeroalérgenos podem causar asma ou desencadear uma crise.

“Quando começa o inverno, a pessoa pega uma malha que está empoeirada há mais tempo no armário. Ela vai ter contato com esse ácaro que está ali na poeira e pode ter uma crise, ou então quando alguém limpa a casa, a mesma coisa”, exemplifica Bianchi. As longas jornadas em casa durante o isolamento social e o trabalho remoto impuseram a asmáticos e riníticos mais momentos de crise.

A maioria dos ácaros adultos medem entre 0,25 e 0,75 mm de comprimento. Créditos: Pixabay

O Coronavírus é uma infecção que também prejudica o aparelho respiratório e os sintomas se confundem com a asma, então o paciente pode apresentar tosse, falta de ar e dor torácica na manifestação das duas doenças. Algumas pistas ajudam a diferenciar cada uma delas, como as condicionantes de febre ou a presença de um “chiado” (sibilância) na respiração de asmáticos, ausente em infecções por Covid-19.

Bianchi lembra que, nos primeiros meses da pandemia, pensava-se que a combinação coronavírus-asma resultaria na internação de muitos pacientes asmáticos com o agravamento do quadro clínico, assim como o desencadeamento de crises e piora de asma. 

“Entretanto, observou-se que não tinham muitos pacientes asmáticos internados e com o tempo se viu que a asma, desde que na forma leve e moderada e que esteja bem tratada e controlada, acabou não sendo um fator de risco para a pessoa ter um maior risco de pegar Covid ou de ter uma Covid mais grave”, conta, ao contrário do que acontece com a hipertensão arterial, a obesidade, a insuficiência cardíaca, a doença pulmonar obstrutiva crônica associada ao cigarro e outras cardiopatias, todas associadas como agravantes da Covid-19.

As medidas de contenção da Covid-19 trouxeram benefícios também contra as alergias respiratórias. Durante o inverno de 2020, observou-se a presença de menos pacientes com asma internados nos hospitais procurando os consultórios devido a crises de asma, ou seja, pessoas com asma e rinite tiveram menos crises respiratórias durante o último ano.

Uma das razões que explicam o fato, segundo o doutor Bianchi, “foi justamente porque o distanciamento social, esquiva de aglomerações, a utilização de máscara e lavagem das mãos acabaram combatendo a transmissão do Coronavírus, mas também a transmissão de qualquer outro vírus que é transmitido pela respiração e pelas gotículas respiratórias”. Todas estas medidas possibilitaram menos quadros de Influenza e de resfriados, além da redução de crises de asma desencadeadas por infecções respiratórias virais.

As medidas de contenção do Coronavírus indiretamente auxiliaram na contenção de outros vírus. Créditos: Pexels

O médico alerta para a letalidade das alergias respiratórias, quando não controladas, mesmo das formas mais leves, tanto em relação ao Coronavírus quanto para a alergia em si. O paciente deve manter o tratamento da asma e da rinite mesmo em casos de suspeita de infecção por Covid-19. “Embora a gente tenha internado muito menos pacientes, ainda há pacientes graves e perdemos cerca de cinco a sete pacientes todos os dias por asma. […] Nenhum dos medicamentos utilizados está contraindicado durante a pandemia; ao contrário, o paciente tem que manter o tratamento como indicado por seu médico”, conclui Bianchi.

A perda do olfato pode ocorrer em até 86% dos infectados pela SARS-CoV-2. Créditos: Pixabay

O nariz faz parte do sistema respiratório e abriga as chamadas fossas nasais, que incluem a área olfatória. A anosmia é a perda do olfato e disfunções olfatórias como essas foram agravadas com o Coronavírus, podendo ocorrer em até 86% dos pacientes infectados pela SARS-CoV-2, como sugere estudo do grupo de Rinologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP.

A perda do olfato é muito debilitante e até mesmo perigosa na hora de, por exemplo, identificar a qualidade dos alimentos ingeridos. O sintoma também está relacionado à perda parcial e indireta do paladar. Mesmo perdurando por meses, a perda do olfato pode cessar e o indivíduo aos poucos recupera a capacidade de sentir odores. 

No topo da cavidade nasal, o epitélio olfativo é um tecido com neurônios e células sensoriais, maquinaria responsável por enviar ao cérebro informações que se traduzem em cheiro. A pesquisa da USP sugere ainda que entre 1 e 2% das pessoas apresentam quadros mais graves devido à lesão no nervo. Contudo, a maioria dos casos leva à conclusão de que não há perda permanente do olfato.

Uma novidade em relação à perda de olfato foi trazida por um grupo de pesquisadores de Harvard em publicação na ScienceAdvances em julho de 2020. Os estudos sugerem que a perda do olfato está ligada a alterações nas células de suporte olfativas, não a fenômenos ligados aos neurônios. A boa notícia é que os neurônios não precisariam ser reconstruídos em casos de infecção.

O tratamento para que a pessoa volte a sentir cheiro é uma terapia estimulante do nervo olfatório. O paciente deve cheirar frascos, sem saber qual é o conteúdo que está dentro de cada um, tentando identificar do que se trata apenas pelo cheiro. O tratamento é feito continuamente até que o paciente demonstre avanços na capacidade olfativa.

Audição

Além das diversas mudanças que a pandemia de Covid-19 impôs, os efeitos colaterais da doença ainda estão sendo investigados por pesquisadores em todo o mundo. Uma das linhas de investigação é a relação entre a doença e a perda da audição. O ouvido é um órgão muito sensível e diversas pessoas já relataram sintomas de complicações auditivas após serem infectadas pelo vírus. 

Segundo a Professora associada do Departamento de Fonoaudiologia da Faculdade de Odontologia (FOB) da USP, Andréa Cintra Lopes, a Covid-19 requer da comunidade científica um empenho adicional no desenvolvimento de estudos para a compreensão das possíveis consequências da doença.

“Apesar de escassos os estudos envolvendo audição e equilíbrio, pode-se observar que tais implicações estão presentes em algumas pesquisas, como perda auditiva, zumbido, tontura, vertigem, otorreia, otalgia e paralisia facial, relatados na literatura”, afirma a professora Andréa em entrevista à Agência Universitária.

Apesar de ainda haver muitas questões a serem respondidas para estabelecer uma associação entre o Coronavírus e as doenças auditivas, os efeitos no ouvido e equilíbrio podem impactar negativamente na qualidade de vida após a infecção, fato que, para a professora, corrobora com a necessidade de mais investigações que relacionem a doença e suas implicações no aparelho auditivo.

O primeiro relato mundial que relaciona a perda auditiva à Covid-19 foi realizado pelos pesquisadores tailandeses Sriwijitalai e Wiwanitkit, que descreveram casos de SARS-CoV-2 positivos com perda auditiva neurossensorial. A literatura internacional comprovou ainda o aparecimento do zumbido e perdas auditivas irreversíveis.

Para a professora da FOB, apesar de ainda não se confirmar a possibilidade de invasão das vias neurais envolvidas na audição e no equilíbrio, observações iniciais sugerem essa possibilidade. “Aqui em Bauru, iniciamos uma investigação envolvendo as equipes do Departamento de Fonoaudiologia da FOB e da Divisão de Saúde Auditiva do HRAC [Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais]”, conta Andréa, que coordena os estudos.

Cerca de 50 milhões de pessoas sofrem com zumbido no Brasil. Créditos: Pexels

A perda auditiva, contudo, também está associada a casos de deterioração cognitiva, como a demência e a transtornos da saúde mental, como ansiedade e depressão. Por isso, a pandemia pode ter um impacto indireto na saúde auditiva devido ao distanciamento social e às diversas situações causadoras de estresse mental. 

“O isolamento e a solidão em que podem estar inseridas as pessoas com perda auditiva podem ter um impacto no seu bem-estar emocional e mental podendo afetar qualquer pessoa, principalmente idosos”, afirma Andréa.

O zumbido, por exemplo, está associado à redução do bem-estar emocional. Em um estudo conduzido por especialistas da Universidade Anglia Ruskin, no Reino Unido, foi constatado que grande parcela das pessoas analisadas acredita que o problema auditivo piorou com as medidas de distanciamento social.

Preocupações, como o medo de contrair a doença, desemprego, solidão e problemas para dormir contribuíram para tornar o zumbido mais incômodo, segundo os pesquisadores. Também estão aliados a essa piora outros fatores: o aumento de videochamadas e o maior consumo de café, por exemplo.

A professora Andréa Cintra Lopes recomenda o uso de headphones, fones em formato de concha que cobrem toda a orelha. Créditos: Pexels

O “novo normal” trouxe mudanças significativas para as rotinas de trabalho e o estilos de vida. Médicos e fonoaudiólogos já vinham chamando a atenção sobre as consequências do uso excessivo de fones de ouvido, mas com o incremento do home office e práticas de ensino remoto, esse uso se intensificou ainda mais. 

“O manuseio prolongado desse tipo de aparelho durante a pandemia de Covid ampliou a probabilidade de problemas de saúde no futuro”, aponta a professora da FOB. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma em cada quatro pessoas viverá com algum grau de perda auditiva até 2050. A estimativa é de que esse risco atinja 50% da população entre 12 e 35 anos de idade, com perda de audição cumulativa provocada por esses novos hábitos. 

Com a adoção do ensino remoto, crianças pequenas têm sido expostas diariamente a sons em alto volume. Segundo Andréa, “antes do ensino remoto, o uso dos fones de ouvido não estava associado a esse público tão jovem”.

A fonoaudióloga ressalta que, para proteger a audição, é necessário adotar hábitos seguros e, assim, evitar a perda auditiva, zumbido, intolerância a sons fortes e outros efeitos não auditivos. Ela ainda sugere algumas dicas, como usar os fones de ouvido com até 60% da potência máxima, realizando pausas após cada hora com o aparelho, e optar por headphones ou fones com cancelamento de ruído, se possível.

Surdos e deficientes auditivos enfrentam desafios ainda maiores durante a pandemia. Crédito: Pexels

A pandemia ampliou, ainda, os desafios para pessoas com deficiência auditiva. O uso de máscaras prejudica a comunicação, seja em Libras (Língua Brasileira de Sinais) ou por leitura labial, impactando na qualidade de vida e na evolução dos quadros clínicos desses indivíduos. 

Todavia, a ampliação do uso das ferramentas de teleconsulta permitiu que muitos dos serviços fonoaudiológicos continuassem operando de forma regular e ininterruptamente. No entanto, ressalta Andréa Cinta, “é imprescindível que o fonoaudiólogo, que prestar telefonoaudiologia, garanta a equivalência aos serviços prestados presencialmente, sendo obedecidos o Código de Ética da Fonoaudiologia, assim como outros dispositivos que regem as boas práticas de sua área de atuação”.

Paladar

Além dos problemas auditivos, a ampliação do ensino à distância e do home office, misturou o ambiente de descanso, estudo e trabalho . Com isso, a alimentação foi um dos muitos aspectos do cotidiano individual afetada no período.

A estudante Isabella Padrão é uma das pessoas que diz ter sentido esses impactos. Segundo ela, sua rotina alimentar não era regrada por conta dos compromissos da faculdade, mas sempre preparava as próprias refeições porque tinha horários reservados para essa finalidade, mesmo que não fossem fixos. Atualmente, Isabella conta que o cenário é um pouco diferente. “Agora, eu não tenho mais esse costume. Às vezes fico muito tempo sem comer, tanto que até emagreci durante a pandemia”, relata.

A possibilidade de obter maiores intervalos durante as refeições não foi a única mudança em relação à alimentação diária do brasileiro. Os produtos consumidos também mudaram drasticamente. Segundo a nutricionista e membra do Núcleo de Pesquisa de Nutrição em Produção de Refeições da Universidade Federal de Santa Catarina (NUPPRE/UFSC), Mariana Kraemer, pesquisas informam que, embora o consumo de frutas, verduras e legumes tenha aumentado na população como um todo, nas regiões economicamente menos desenvolvidas e de menor índice de escolaridade, os alimentos ultraprocessados assumiram um protagonismo.

Pesquisas da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional apontam que, no último trimestre de 2020, 116,8 milhões de brasileiros se encontravam em algum nível de insegurança alimentar – Créditos: Pixabay

“Esse cenário nos mostra uma tendência de popularização dos alimentos processados e ultraprocessados e de elitização do consumo de alimentos frescos durante a pandemia”, comenta, relacionando a maior vulnerabilidade a prejuízos na saúde a curto e longo prazo para essa parcela da população. A maior preocupação, no entanto, se refere à crianças e adolescentes, uma vez que dados do POF/IBGE revelam que essa faixa etária é a que mais consome alimentos ricos em gorduras e açúcares. Nesse sentido, Kraemer afirma que dedutivamente pode-se considerar que este consumo, que já era alto antes da pandemia, subiu ainda mais. 

Uma das circunstâncias que favoreceu esse cenário foi o aumento do uso de serviços de entrega. Isabella é uma das pessoas que passou a fazer mais pedidos de refeições por delivery por dois fatores: tempo e preço. “As coisas ficaram mais caras, tem sido difícil preparar uma refeição mais elaborada e encontrar um momento específico para cozinhar devido aos preços e à rotina mais cheia”, explica. A observação da estudante, no entanto, é algo real não só no Brasil, mas em todo o mundo. Segundo dados da Organização das Nações Unidas, em junho de 2021, os valores globais dos alimentos atingiram os níveis mais altos nos últimos dez anos.

Com o aumento de pedidos via delivery, os fast foods se tornaram ainda mais presentes na mesa dos brasileiros – Créditos: Pixabay

Entretanto, a nutricionista ressalta que esses não são os únicos motivos que provocaram a mudança nos hábitos alimentares durante a pandemia. “Uma pessoa que perdeu um parente próximo ou seu emprego, por exemplo, possivelmente terá uma série de mudanças de vida que podem impactar diretamente na rotina de refeições, como estresse, ansiedade, entre outras questões”, detalha ela. 

Em vista disso, Mariana afirma que os profissionais da Nutrição, quando procurados para tratar dessas questões, devem enxergar o paciente de forma humanizada, entender que a alimentação faz parte de um contexto e fazer o melhor possível para trabalhar a situação de forma adequada. No entanto, o progresso desse cenário depende somente dos profissionais e das pessoas que se encontram nessas circunstâncias? Segundo ela, depende também de políticas públicas e decisões governamentais.

“O sistema alimentar hegemônico no Brasil propicia o fácil acesso e o elevado consumo de alimentos menos saudáveis. Isso porque o modelo de produção baseado na larga escala e voltado para produção de commodities monopoliza a maior parte das terras e dos recursos públicos destinados à agropecuária”, explica. Para finalizar, Kraemer aponta que esse é um cenário complexo e que já deveria ter sido analisado pelas autoridades e sociedade, e se tornou ainda mais urgente agora, durante a pandemia.

Tato

A coluna também é uma vítima da pandemia, apesar das dores já serem muito prevalentes mesmo antes da Covid-19. Um levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostra que 80% da população já teve ou terá essa condição de saúde, número menor somente ao da dor de cabeça.

Durante o isolamento social, mais pessoas passaram a sofrer dores na coluna. Um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) aponta que mais de 40% dos brasileiros lidam com esse problema, o dobro do registrado antes da Covid-19, quando esse número era de 18%.

O sedentarismo e o sobrepeso são apontados como causas importantes e também foram impactados durante a pandemia, o que pode explicar esse aumento. Ainda segundo o estudo, o número de pessoas que praticam atividade física caiu pela metade e representa somente 14% dos brasileiros. Um levantamento do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP (Nupens) aponta que 20% dos adultos são obesos e uma em cada cinco pessoas ganhou peso durante o período de isolamento. 

Manter a postura adequada é fundamental para evitar dores e lesões. Créditos: Freepik

“O sedentarismo em qualquer formato faz mal para o sistema muscular e esquelético pela perda de flexibilidade e força muscular”, explica Júlia Maria D’Andréa Greve, professora do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina (FM) da USP. Desta forma, indivíduos inativos apresentam redução na amplitude dos movimentos e atingem a fadiga muscular mais facilmente, o que dificulta a manutenção da postura adequada.

Outro fator importante é que as pessoas sedentárias têm propensão ao sobrepeso, o que estimula os desvios posturais. O aumento do peso acarreta um deslocamento no ponto de equilíbrio, o que gera problemas como, anteriorização da cabeça, hiperlordose lombar e sobrecarga nas articulações.

O tempo gasto em frente ao computador, à televisão ou no uso de celular também aumentou durante a pandemia, tornando-se uma situação agravante. “Ficar sentado durante longos períodos pode prejudicar a coluna vertebral”, afirma Júlia. Segundo a professora, assumir posições mais viciosas e relaxadas ou “largadas” podem causar danos nos discos intervertebrais, encurtar os músculos e diminuir a lubrificação das articulações.

Apesar de frequentemente associados aos idosos, os desvios posturais também prejudicam as crianças, especialmente nos contextos da pandemia. De acordo com Júlia, as alterações na infância podem inclusive ser mais graves, pois prejudicam um corpo em desenvolvimento. “Alguns tipos de deformidades da coluna, como as escolioses idiopáticas e as cifoses, aparecem na infância e precisam ser corrigidas durante o período de crescimento”, ressalta ela.

Diante disso, diversos cuidados podem ser seguidos para evitar esse quadro. É importante adequar o ambiente e ajustar a altura da cadeira, da mesa, do monitor e do teclado. A professora Júlia também orienta a prática de atividades físicas. “Caminhada, exercícios de alongamento e exercícios ativos são fundamentais para manter a saúde do sistema musculoesquelético”, diz. É recomendável ainda fazer uma pausa a cada 60 minutos para relaxar, se movimentar e sair do imobilismo.

Mesmo cumprindo todos esses cuidados, é importante manter a atenção. “A presença de dor demanda sempre uma avaliação médica para o diagnóstico e melhores medidas terapêuticas. A dor significa que alguma coisa está errada e precisa ser corrigida”, comenta.

Visão

Assim como várias outras questões apresentadas, os problemas de visão já eram motivos de preocupação pelas principais organizações médicas do mundo. De acordo com o Relatório Mundial sobre a Visão, produzido pela OMS, no ano de 2019, no mínimo 2,2 bilhões de pessoas no mundo possuíam algum distúrbio relacionado ao sistema ocular.

Para o oftalmologista e professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, Mário Camargo, o uso de computadores e celulares em excesso foi primordial para esses números altos. “O aumento do uso das telas provoca uma sobrecarga no olho. Se você não está usando nenhuma dessas telas, você está usando o olho, mas não sobrecarregado. Com a tela, ele fica sobrecarregado, produz um estresse, um cansaço ocular”, explica. 

E essa estatística tenderia a crescer cada vez mais, sobretudo pelo aumento populacional e o período de permanência cada vez maior em ambientes fechados, além do uso massivo das telas. Segundo o estudo, somente os casos de miopia aumentariam de 1,95 bilhão, em 2010, para 3,36 bilhões, em 2030, um crescimento de mais de 72%.

Esse cenário foi rapidamente acelerado a partir do isolamento social, como forma de proteção contra a Covid-19. A necessidade de ficar em casa para tentar diminuir a circulação do vírus impulsionou ainda mais o uso das telas digitais. “Elas são usadas hoje em dia para tudo: trabalho, lazer, redes sociais, mensagens eletrônicas”, completa Camargo.

As videochamadas passaram a ser ferramentas fundamentais de interação durante o isolamento social. Créditos: Freepik

Do ensino à distância ao home office, percorrendo até às relações sociais, tudo foi deslocado para o ambiente virtual. De acordo com a Global Digital Overview, através de pesquisa realizada pelo site We Are Social com o Hootsuite, entre 2019 e 2020, a média mundial do uso diário de internet aumentou em 4% — de 6 horas e 38 minutos para 6 horas e 54 minutos. Para efeito de comparação, o Brasil foi o segundo país que mais utilizou a internet nesse período, elevando o tempo de 9 horas e 17 minutos para 10 horas e 8 minutos.

O tempo dentro de casa, com o enfoque total para as telas digitais, aliado ao pouco tempo de exposição do olho à luz natural — que auxilia na mitigação desses distúrbios —, gerou uma explosão de casos de erros refracionais oculares, sobretudo de miopia. Esse fenômeno, chamado por especialistas de “Myopia Boom”, está acometendo principalmente crianças. 

Um estudo feito por pesquisadores chineses, publicado na revista científica Jama Ophthalmology, em janeiro de 2021, mostrou que, durante o confinamento, comparado aos cinco anos anteriores, houve um aumento significativo de casos de miopia entre crianças de 6 a 8 anos. Segundo o trabalho, ao estudar os olhos de mais de 75 mil crianças nessa faixa etária, as maiores presenças de míopes aconteceram no ano de 2020 — de 5,7% para 21,5% aos 6 anos; de 16,2% para 26,2% aos 7 anos; e de 27,7% para 37,2% aos 8 anos. Ainda foram estudadas crianças de 9 a 13 anos, porém não foi perceptível um aumento significativo nos números verificados.

Camargo aponta que, por estar em desenvolvimento, o tecido do olho dos jovens é mais maleável e, por isso, mais propenso a realizar a acomodação, movimento essencial para a visão próxima, porém que prejudica a visão de longe. “Essa acomodação é realizada com a contração do músculo ciliar, que produz o foco na lente do olho, no cristalino. Ele vai ficando contraído e, a longo prazo, tem dificuldade de relaxar. O problema da miopia é justamente não enxergar de longe, porque tem um foco ocular mais perto. Se ficar com esse músculo contraído, induz o aparecimento da miopia”, explica o oftalmologista. 

O acelerado processo de utilização dos computadores por crianças já apresenta consequências na qualidade da visão. Créditos: rawpixel.com / freepik

No entanto, não são apenas os mais jovens que estão sofrendo com o uso de telas durante o isolamento social. Com o direcionamento quase que total do olhar para o computador ou celular, é comum o aparecimento de sintomas como: ardência e sensação de areia nos olhos, coceira, visão embaçada, cansaço ocular, fotofobia e dores de cabeça.

Esse conjunto de sintomas pode ser referente à Síndrome Visual Relacionada a Computadores (SVRC). Além do grande tempo em frente às telas, o distúrbio é impulsionado por um ambiente mal iluminado, o nível de proximidade do olho com os equipamentos eletrônicos, ambientes muito secos e, ainda, a presença de outros problemas de visão ainda não tratados. A Sociedade Brasileira de Oftalmologia estima que 90% dos usuários que utilizam computadores por mais de 3 horas por dia, e considerando que a média diária de uso da internet do brasileiro é de mais de 10 horas, um contingente alto, possuem tais sintomas. 

A principal causa da Síndrome é o ressecamento ocular pela falta de piscadas, enquanto se usa computadores e celulares. Isso decorre, porque o movimento de piscar é essencial para lubrificar e hidratar os olhos e, durante a experiência digital, o número de piscadas diminui. “A gente pisca, normalmente, 15 a 20 vezes por minuto. E quando a gente está olhando para a tela, diminui para 3 a 5 vezes por minutos”, aponta Camargo.

Para mitigar os problemas de visão relacionados ao tempo gasto em frente às telas, o oftalmologista aponta como essencial tirar uma pausa para o descanso dos olhos. “Eu falo até uma regrinha: 20 minutos de trabalho, descanse 5 segundos e olha para uma distância infinita, olha para uma janela”, aconselha Camargo. Além disso, a constante lubrificação, inclusive com colírios, pode impedir o desenvolvimento desses distúrbios.

O acelerado processo de utilização dos computadores por crianças já apresenta consequências na qualidade da visão. Créditos: rawpixel.com / freepik

É importante lembrar que, durante a pandemia de Coronavírus, as pessoas foram afetadas de diferentes formas e níveis; e um dos aspectos que mais cresceram durante este período foram as desigualdades sociais. Em relatório anual, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) estimou que a taxa da pobreza na América Latina em 2020 chegou a 33,7% da população, ou seja, 22 milhões de pessoas a mais do que no ano anterior.

Essa desigualdade em relação à economia, relaciona-se também com a qualidade de vida e de saúde. Ainda assim, a professora Júlia dá algumas sugestões que podem ser utilizadas para que todos busquem o bem-estar. “O corpo é uma máquina que, quando bem cuidada, dura bastante e não adoece. Dormir bem, alimentação saudável, manter o peso corporal e exercitar-se seriam recomendações gerais, já conhecidas, mas muito eficientes”, conclui ela.

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