“É como se nos tornássemos prisioneiros dos deveres e do trabalho dentro das nossas casas, sem a possibilidade de sair para aliviar a tensão sem que isso trouxesse ainda mais tensão”. É o que diz o pesquisador Jefferson Peixoto, doutor na área de saúde ocupacional pela Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, sobre os impactos do trabalho em home office na saúde mental dos trabalhadores durante a pandemia.
Peixoto é autor da tese “Invasão multiforme da vida pelo trabalho entre professores de educação básica e repercussões sobre a saúde”, orientada pela professora Frida Fischer, do Departamento de Saúde Ambiental da FSP. O estudo sobre o desgaste mental dos professores pode ajudar a compreender possíveis efeitos do regime de trabalho em casa durante a pandemia do coronavírus. O isolamento social trouxe a diluição dos limites entre os espaços de descanso e o local de trabalho, e a distribuição de tempo acompanhou esse processo.
“Quando você está em casa, parece mais difícil separar o tempo de trabalho do de não trabalho, mas é necessário fazer isso”, comenta Fischer. A professora ressalta, ainda, que uma das tendências das novas formas de trabalho é a intensificação do home office, mesmo após a pandemia. “Isso torna ainda mais importante estabelecer uma rotina”, completa.
Organização do trabalho
Segundo Peixoto, é essencial compreender que, no Brasil, o equilíbrio social foi construído de maneira a ressaltar a diferença entre as classes sociais e reforçar os papéis de dominação, considerando aspectos como a escravidão. “Estamos falando de uma sociedade que tem uma série de elementos potencialmente adoecedores balizando as relações e a organização do trabalho”, comenta.
“Os aspectos tradicionais da organização do trabalho na sociedade brasileira remetem a um passado de autoritarismo e violências estruturais diversas, que precisa ser enfrentado e superado, tanto em termos de saúde ocupacional, como também em termos de ‘visão de negócio'”, diz Peixoto.
Nesse sentido, seria essencial que os trabalhadores tivessem mais controle sobre as características do trabalho, além de se construir uma perspectiva preventiva em relação à saúde do trabalhador. “Buscar fazer ajustes em processos de trabalho que já foram organizados sem levar em conta as questões de segurança e saúde costuma ser pouco praticável, resultando em muitos desfechos que clamam por reparo e mitigação e pouco espaço e/ou margem para evitar que tais desfechos ocorram”, afirma.
Pandemia e distanciamento
Os aspectos que geram adoecimento podem ser agravados no contexto de trabalho à distância, especialmente num contexto emergencial. “Do modo abrupto como a pandemia de covid-19 chegou e se impôs, diversas atividades de trabalho tiveram que ser transferidas para casa de uma hora para outra, sem o devido preparo. Só isso já trouxe, sem dúvida, muito estresse e ansiedade”, comenta Peixoto. “A vida em tempos de pandemia passou a ser um contínuo de medo, tensão e deveres a cumprir.”
A situação diluiu os limites entre o trabalho e o descanso ao facilitar a invasão da vida pessoal pelo trabalho. Segundo a professora Frida Fischer, essa invasão significa que você vai prejudicar o seu repouso para poder completar tarefas de trabalho. “Então você vai ter menos tempo para se recuperar, socializar, fazer coisas que você gosta, se relacionar com os amigos, com a família”, discorre.
Peixoto ressalta também que, na pesquisa envolvendo os professores, foi observado que um fator importante de adoecimento era a frustração por aspectos como a baixa remuneração e a falta de interesse dos alunos. “O sentido do trabalho vai se esvaindo e é isso que mais os estava impactando. Constatamos que não era o fato de levar o trabalho material para casa que mais estava afetando os professores, mas sim o de levar as frustrações, o abalo emocional de dias de trabalho não realizados porque os alunos rejeitaram suas aulas.”
Uma relação prejudicial com o trabalho gera conflitos com a vida pessoal e familiar, produz dificuldades de conseguir se desligar e traz a sensação de falta de reconhecimento. “A experiência dos professores nos mostra que a invasão da vida pelo trabalho pode levar a estes desequilíbrios e que isso pode ser nocivo à saúde, principalmente a mental”, afirma Peixoto.
Uma consequência comum dessa sobrecarga é a Síndrome de Burnout, episódio marcado por desgaste mental e problemas relacionados ao envolvimento pessoal e à despersonalização. “Seria uma expressão exacerbada do desgaste mental em que a pessoa não consegue fazer nada. Ela fica quase imobilizada mentalmente, muito cansada, não consegue se dedicar a uma tarefa, a atividades”, explica a professora Fischer.
Para Peixoto, contudo, há questões maiores por trás da situação. “É como se, ao falarmos de Burnout, o conceito não fosse capaz de contemplar elementos que dizem respeito àquilo que vem antes e depois do próprio fenômeno”, diz. O antes trata das condições determinadas pela organização do trabalho, e o depois “seria o conjunto de efeitos nocivos provocados pela síndrome, algo que uma simples recuperação ou ‘recarga’ pós esgotamento não resolveria”.
Em prol de evitar o adoecimento, é essencial delinear os limites entre trabalho e vida pessoal, especialmente no contexto de home office, em que eles são menos visíveis.
“Neste processo, é importante admitir as próprias limitações e evitar cair na cilada da onipotência. Nem tudo está sob nosso controle e ter consciência disso é fundamental. Um trabalhador doente não poderá realizar o trabalho, e uma pessoa que não consegue alternar entre trabalho e não trabalho vai acabar adoecendo, não aguentará por muito tempo. Não há processo de trabalho saudável sem pausas e tempos de recuperação”, destaca Peixoto.
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