Independência do Brasil e sua instrumentalização política

Conferência da FFLCH discute mitos, verdades, e usos políticos da História da Independência brasileira

A proclamação da Independência, de François-René Moreaux, 1844. Museu Imperial de Petrópolis, Rio de Janeiro.

A Independência do Brasil tem sido instrumentalizada por diversos agentes políticos ao longo da História em uma verdadeira ginástica narrativa, com diferentes personagens e enredo para cada versão. Na conferência A Independência: passado, presente e futuro do Brasil?, do XI Seminário Humanidade em Tempo de Pandemia, o historiador João Paulo Garrido Pimenta, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, discute mitos, verdades, e usos políticos deste processo histórico. O evento, virtual devido à pandemia, foi transmitido pelo canal da FFLCH-USP no YouTube, às 18h do dia 9 de setembro de 2020.

Pimenta é especialista em América portuguesa (séculos XVIII e XIX); Independência do Brasil e da América espanhola; Império do Brasil; questão nacional e identidades políticas; e história do tempo histórico. Segundo ele, o ofício do historiador é interpretar o tempo como constitutivo das realidades sociais, sendo que os historiadores, mesmo observando realidades do passado, também precisam estudar os usos deste passado no presente. Por isso, é importante se atentar não só para a História da Independência como verdade histórica, mas também para a história de sua instrumentalização política

Heroísmo ou presepada? O que não foi a Independência 

João Paulo Garrido Pimenta afirma que, apesar de a historiografia da Independência do Brasil, desde os anos 1980, ser muito séria e bem construída, não é possível blindá-la contra carências interpretativas, polarizações e humores da sociedade, o que faz com que seja frequentemente distorcida e reconstruída. 

De acordo com o pesquisador, a instrumentalização política da Independência começou no próprio momento de sua concretização, em 1822. “Desde que ocorreu, ela vem sido instrumentalizada de muitas maneiras. Existe toda uma história dos usos da independência nos primeiros anos de Império, na República Velha, na Era Vargas, na Ditadura Militar, na Redemocratização, e também no Brasil atual.” 

Tais usos servem de termômetro dos humores de uma sociedade em seu próprio tempo, aponta Pimenta. Um processo de independência seria, portanto, duplamente importante: “ele gera impacto por aquilo que essa independência significou em sua própria época, mas também por aquilo que ela produziu em termos de processos históricos dela derivados”. 

E como a Independência do Brasil costuma aparecer no imaginário brasileiro? Para Garrido Pimenta, são duas correntes principais que oscilam e estão em disputa. A primeira é a de heroicização da independência. Nesta versão, Dom Pedro I e José Bonifácio seriam heróis, agentes imaculados da libertação, da criação de uma nação maravilhosa, divina, igualitária pela miscigenação dos povos, com grandes episódios, dramatizada, emotiva, e cheia de mártires. 

A outra tendência, mais recente, é a de ridicularização da História da Independência, que se expressa muito em novelas, filmes, livros e outras manifestações culturais. Como exemplos que apresentam traços desta corrente, Pimenta cita o longa Carlota Joaquina, dos anos 90, e os livros de Laurentino Gomes e Leandro Narloch. 

O pesquisador explica que esta tendência se caracteriza por criar uma espécie de versão da história que, por ser diametralmente oposta à versão oficial, acredita se aproximar da verdade. “Esta versão diz mais ou menos o seguinte: esqueça tudo o que você aprendeu na escola […] agora nós vamos te contar a verdade, que é: Dom Pedro era um idiota, sua esposa era uma louca, Dom João era um trouxa, nada disso foi sério, foi uma piada, e é por isso que o Brasil hoje é uma piada.”

O que essas duas versões têm em comum? Para Pimenta, o ponto de coincidência destas narrativas é sua incapacidade de explicar a História, já que são pautadas por critérios do presente, e não do passado, ignorando os estudos de historiadores sérios. “Graças à qualidade da historiografia da Independência, muito diversificada e pujante, nós não precisamos inventar uma versão da Independência que justifique nossas posições políticas no presente.”

O ano de 2020 seria, para ele, um momento de renovação desta disputa em torno da Independência e do passado, que tenderia para a proliferação de manipulações: “O Presidente da República Jair Bolsonaro, em seu discurso no último 7 de setembro, fez este tipo de uso político da Independência, aproximando uma ideia de independência heroica à Ditadura Militar”. 

O historiador João Paulo Garrido Pimenta durante a conferência virtual da FFLCH.

Independência como ela foi 

Apesar de não ter destruído todas as estruturas coloniais, tampouco construído igualdade entre brasileiros, o processo de independência do Brasil, foi, para Garrido Pimenta, um processo revolucionário em si, por conta das transformações que provocou. “A Independência, de fato, não criou um mundo democrático, não acabou com a desigualdade social e racial, não criou uma nação competitiva economicamente, mas não é isso que define seu caráter revolucionário. A Independência é um processo formativo.” 

O pesquisador explica que a Independência criou uma nação que não existia, uma identidade nacional e um Estado nacional, e esses elementos seriam suficientes para caracterizá-la como revolução. “Poucas coisas são capazes de impactar tanto a vida das pessoas quanto a criação de uma nação.”

Isso quer dizer que a Independência do Brasil não foi preparada por nenhum nacionalismo anterior a ela. O pesquisador conta que existem narrativas da Independência que celebram erroneamente a Inconfidência Mineira, por exemplo, como um ensaio heroico para o movimento de libertação da colônia. “Essas foram interpretações muito ruins, produzidas durante o século 19 e uma parte do 20. Na verdade, não havia uma ideia política de Brasil capaz de subsidiar um nacionalismo anti-metropolitano que pudesse fomentar a Independência.” 

Pimenta explica que o processo de Independência do Brasil foi resultado de uma conjuntura muito especial, originada no começo do século 19, no contexto das guerras napoleônicas e da crise das monarquias ibéricas, que resultou na transferência da corte portuguesa e da sede do império lusitano para o Brasil (1808). O pesquisador ainda acrescenta que esta medida, que ansiava por dar unidade ao império, gerou uma série de conflitos entre províncias, e também entre portugueses nascidos na Europa e nascidos na América, com várias revoltas estourando (como a Revolução Pernambucana). 

A nação brasileira nasceu, então, após sua independência. Mas isso não significa a ausência do povo neste processo. Pimenta diz que outro mito comum é o de que a Independência brasileira se deu como mera formalidade. Ele afirma que, ainda que tenha ocorrido sim um acordo entre elites, não se pode apagar as revoltas populares, guerras de Independência, ou mobilização na imprensa, por exemplo.

 “Costuma-se dizer que a Independência não teve participação popular. Isso não é verdade. Também não é verdade que a Independência é contada sem essa participação popular, já faz uns bons anos que muitos historiadores vem falando da participação de negros, de escravizados, da população indígena e das mulheres no processo de Independência”, ressalta o pesquisador. 

Outro ponto em discussão é a falsa noção de Independência pacífica. “Não é verdade que a Independência do Brasil foi um processo sem violência, sem derramamento de sangue, sem guerra civil. Essa foi uma versão criada pelos próprios artífices da Independência no intuito de caracterizá-la como uma “independência boa”, anômala, oposta aos processos da América Espanhola, afastando o Brasil de uma sintonia latinoamericana.” 

Garrido Pimenta caracteriza esta narrativa como “um mito constitutivo da sociedade brasileira”, e diz que não se pode reproduzir a ideia de Independência restrita a um acordo de elites no Rio de Janeiro — que foi o centro espacial da articulação, mas teve apoio, oposição, e participação ativa de muitas outras províncias. Na Bahia, Maranhão, Pará e na Província Cisplatina, por exemplo, houve guerras contra a Independência. 

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