Nos meses de agosto e setembro foram realizadas campanhas de vacinação contra raiva para cães e gatos, a fim de manter o controle seguro da doença nas áreas urbanas como já acontece há algumas décadas. Enquanto animais domésticos apresentam cada vez menos perigo de transmissão, a ameaça do vírus em sua variante silvestre é não apenas real como também intensificada pelos discursos anti-vacina e o desmatamento.
“O vírus da raiva se adaptou aos mamíferos. Qualquer um deles pode contrair a enfermidade e transmiti-la”, diz Felipe Rocha, pesquisador da pós-graduação da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da Universidade de São Paulo. Divide-se a raiva em “urbana” (comumente transmitida por cães e gatos) e “silvestre”, cujo principal agente é o morcego hematófogo, também conhecido como “morcego vampiro”, que se alimenta de sangue. “O vírus, na verdade, nunca será erradicado, mas pode ser eliminado dos ambientes. É possível dizer que as Américas caminham em passos largos para eliminar a raiva urbana do continente como um todo. Porém, não é possível acabar com o vírus em uma população silvestre”, diz ele.
A alta letalidade do vírus se deve à sua preferência por se instalar e se desenvolver no tecido nervoso. Transmitido pela saliva na mordida de um mamífero infectado, o vírus penetra pela mucosa e atinge os nervos periféricos do corpo, iniciando um processo de caminhada pelo sistema nervoso em direção ao cérebro. Lá ele irá se multiplicar e descer para outras partes do corpo, como as glândulas salivares. “O vírus destrói as células do hospedeiro usadas para se multiplicar e causa uma grande degeneração do tecido nervoso cerebral. A partir disso, os sintomas evoluem de forma muito rápida, de um dia para o outro. É muito chocante tanto para o doente quanto para os que estão ao seu redor”, declara o pesquisador.
Segundo Felipe, os tratamentos para raiva têm baixíssima eficácia porque poucos medicamentos conseguem atravessar a barreira natural do sistema nervoso: “o vírus consegue chegar lá porque vem por dentro do próprio sistema, mas os medicamentos são aplicados de forma externa e precisam penetrar.” Até hoje, poucas dezenas conseguiram sobreviver à doença, ainda que com graves sequelas. Por isso é necessário que pessoas atacadas por animais suspeitos procurem atendimento para receber a vacina antirrábica, mesmo sem manifestar nenhum sintoma. “A ideia da vacina pós exposição é dar ao organismo meios de combater o vírus antes que ele chegue ao ponto em que não pode mais ser combatido. É muito importante ser imunizado logo depois da agressão, isso salva vidas. Uma vez que os sintomas se manifestam, a doença é fatal”, diz ele.
O perigo do discurso anti-vacina já é uma realidade na raiva
Foi um conjunto de fatores que levou ao quadro de quase eliminação da raiva urbana nas Américas, entre eles: a conscientização dos governos, os avanços tecnológicos que a vacina teve e o consenso de que se deve combater a enfermidade em sua raiz. “Foi necessário um entendimento de que não basta prevenir a raiva no homem, sendo necessário combater onde a doença se mantém: na população canina. Houve avanços significativos na forma como se faz campanhas de vacinação”, afirma ele.
Além disso, quantificações mais verossímeis da população canina permitiram estimar quantos cães são necessários imunizar para atingir uma meta de segurança. Isso faz com que, hoje, episódios de pessoas contaminadas por animais domésticos sejam considerados muito pontuais e isolados – como o caso de uma senhora na zona rural de Santa Catarina, que morreu após ser arranhada por um gato doente, em maio de 2019.
Mesmo dentro desse cenário de controle, o pesquisador alega ver com muito alarmismo e preocupação a existência de grupos contrários à utilização de vacinas – o que já é uma realidade na raiva. Ainda neste ano, um grupo religioso passou a adentrar uma reserva ambiental, localizada na zona leste da cidade de São Paulo, para realizar orações onde dezenas de pessoas foram agredidas por morcegos hematófogos. Nenhuma delas aceitou receber vacina ou qualquer tipo de protocolo de prevenção. “Mesmo assim, essas pessoas continuam indo ao que chamam de ‘monte das orações’ e seguem sendo feridas por morcegos sem receber atendimento. Eu não me surpreenderia se tivéssemos um caso de raiva por morcego hematófogo em São Paulo capital. É algo muito sério”, diz Felipe.
Desmatamento representa perigo para comunidades indígenas e ribeirinhas
No meio silvestre, os morcegos hematófogos são os principais transmissores da raiva. Esses animais sofrem com o desflorestamento que reduz a disponibilidade de abrigos naturais, causando grande impacto na sua densidade e distribuição, além de influenciar a transmissão de doenças para animais e seres humanos – colocando em risco populações específicas.
O último surto de raiva humana em terras brasileiras se deu em comunidades ribeirinhas da região do Marajó, na foz do rio Amazonas. Nas proximidades, há uma madeireira em atividade, o que fez ambientalistas apontarem os impactos ambientais como uma das causas da situação – contexto muito similar ao surto ocorrido na Amazônia entre 2004 e 2005, que levou a óbito mais de 50 pessoas. A retirada das árvores mais altas destrói a moradia de colônias de morcegos e afasta animais que seriam suas presas, o que pode levá-los a se aproximar de pequenas comunidades no interior da floresta. “O desmatamento é preocupante porque arrasa o ambiente natural desse animal. Ele terá que achar novas formas de sobreviver ali ou irá para partes mais interiores da floresta, onde vai acabar se alimentando de pessoas e criações animais instaladas naquele local”, diz o pesquisador.
Quando questionado sobre a situação atual da Amazônia, com crescimento do desflorestamento e dos episódios de grandes queimadas, Felipe declara que sua maior preocupação são as populações indígenas e ribeirinhas que vivem afastadas dos centros urbanos. “Essas populações são muitas vezes negligenciadas e marginalizadas. Para elas, mordida de morcego é tão comum quanto picada de mosquito”, declara ele.
Prejuízos econômicos ao meio rural
Além disso, o ataque de morcegos a rebanhos causa grandes prejuízos econômicos. Apesar dos métodos de vigilância da raiva nesse cenário, a abordagem tem se mostrado insuficiente para o controle adequado da doença em animais de produção – uma vez que se observou o aumento dos casos nos últimos anos.
Foi sobre essa situação que Felipe se debruçou em sua dissertação de mestrado na FMVZ. O trabalho envolveu um estudo descritivo de padrões do uso de espaço por morcegos na zona rural (através do monitoramento por radiotelemetria), que foi utilizado como base para constituir um modelo de rede de transmissão da raiva – incorporando determinantes geográficos e comportamentais do mamífero.
O pesquisador explica que esse estudo é necessário pois no meio rural, ao contrário do meio selvagem, é feito o controle do morcego hematófogo. “Trata-se de um animal silvestre que perdeu seus hábitos e ataca animais domésticos. Porém, não podemos entender a criação bovina como um problema da raiva. A doença é uma consequência da intensificação da produção, que aumenta a oferta de alimento e, assim, a população de morcegos”, declara ele.
Preservação ambiental e conscientização da população é a saída
“Existe muito misticismo em torno da doença. As pessoas têm um pavor terrível, mas não sabem exatamente o que ela causa”, afirma Felipe. Devido a isso, muitas pessoas acabam atacando e matando morcegos pela falta de informação, especialmente se forem encontrados dentro de casa. Ele crê que falta um canal mais aberto e eficiente entre a população e os serviços oficiais para auxiliar o recolhimento e captura dos animais: “esses serviços municipais existem, mas eles não têm um canal claro, o que gera ainda mais desinformação”.
O pesquisador lembra que é extremamente necessário entender que o morcego não é um problema – tanto o animal quanto a doença existem com a função natural de controle do crescimento exponencial de outra população de mamíferos. “Eles não são animais cruéis que estão aqui para acabar com o homem. Estão aqui muito antes de chegarmos e são tão vítimas da raiva quanto nós. A doença, inclusive, é uma consequência das alterações causadas pelo homem”, afirma. Assim, Felipe aposta na conservação: “talvez a preservação ambiental seja a resposta para a raiva: criar bolsões de proteção e manter os morcegos hematófagos reclusos neles. Não usando esses locais como ‘monte das orações’ ou algo do tipo, você irá conseguir manter a doença no ambiente silvestre”.
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