A transgeneridade no Brasil ainda é pouco abordada, mas a passos curtos toma espaço nas discussões nos âmbitos social, político, econômico e jurídico. No Direito, as discussões sobre a forma que a legislação deve lidar com essas pessoas são ainda mais polêmicas, e é disso que trata a pesquisa de Pablo Lago, da Faculdade de Direito (FD) da USP.
De acordo com ele, apesar de juristas estarem munidos de informações a respeito de pessoas transgêneras, pouca atenção é dada a elas por estarem em uma posição de invisibilidade. Isso, portanto, faz com que poucas dessas pessoas recorram à dispositivos legais para reivindicar seus direitos.
Até março de 2028, para que os tribunais e juízes reconhecessem uma pessoa através do gênero com o qual ela se identifica, era necessário que — ainda que sejam socialmente reconhecidas como outro gênero ou com o não-gênero — apresentassem um laudo deferido por médicos e psicólogos. Transsexuais e transgêneros só podiam mudar seu registro civil mediante decisão judicial.
No entanto, para analisar questões sobre como as pessoas transgêneras são tratadas no âmbito jurídico, Pablo busca definir o que é “direito” e o que se entende por “gênero”. Após essa definição, é possível conseguir discutir como essas pessoas devem ser tratadas, por exemplo, em relação à previdência social, divisão de banheiros, na saúde e no esporte.
Primeiro, é necessário entender que os vocabulários “homem” e “mulher” podem ser usados para designar gênero e sexo biológico, e isso varia de acordo com o assunto tratado. Na pesquisa, Pablo exemplifica ao falar sobre como, em uma política de incentivos fiscais a fim de incentivar mulheres a fazerem o exame Papanicolau, por conta do alto nível de câncer no ovário e endométrio, a “mulher” em questão é o sexo biológico feminino. Portanto, mulheres transgêneras não são o alvo, mas homens transgêneros que não realizaram a retirada do útero e ovários podem ser. Se “mulher” ou “homem” se refere à gênero ou sexo biológico é, portanto, de mais difícil interpretação no âmbito jurídico, já que as legislações não fazem essa diferenciação nos textos.
Além disso, o conceito jurídico de gênero leva em consideração a expressão de gênero — forma que o indivíduo corresponde às expectativas impostas pelas normas de masculinidade ou feminilidade através, por exemplo, das vestimentas, trejeitos, corte de cabelo e cirurgias plásticas e tratamentos hormonais. O que leva, ainda, ao reconhecimento social do gênero que a pessoa expressa, abarcado também pelo conceito.
Diante disso, o pesquisador abrange três concepções de direito, de acordo com o filósofo Ronald Dworkin. Os direitos morais estão diretamente relacionados à independência ética do indivíduo e à dignidade individual, como, por exemplo, no caso do direito ao casamento. Já o direito político diz respeito a questões oponíveis ao Estado, como liberdade de expressão, de expressão religiosa ou de manifestação. Ambos os conceitos se entrelaçam, podendo se confundir, e também virar um direito legal ao ser objeto da legislação, contudo, isso nem sempre acontece.
Os direitos morais e políticos de pessoas transgêneras, por não estarem em inseridos na Constituição ou em textos legislativos, recebem outro olhar de autoridades jurídicas e políticas. Pablo acredita que os juristas não se fundamentam nas questões de direito moral, mas sim em um jogo político onde direito de minorias acabam por ser rifados para ganhos em outros setores. “Muitos políticos não possuem a consciência do que são as garantias fundamentais dos indivíduos e consequententemente acabam interpretando essas garantias como objeto de deliberação pública.”
O pesquisador analisa em sua tese como as pessoas transgêneras são e deveriam ser tratadas em relação à alguns âmbitos. No âmbito da saúde, as cirurgias de transgenitalização e tratamentos hormonais são direitos garantidos tanto pelo Sistema Único de Saúde (SUS) quanto por planos de saúde da escolha do indivíduo, já que a insatisfação com o órgão sexual traz problemas relacionados à autoestima, convívio social e pode levar ao suicídio e automutilação. Além do mais, é função do direito acobertar as pessoas que comprovam a necessidade de cirurgia, tratamento hormonal e psicológico.
Em relação à aposentadoria, o pesquisador argumenta que mulheres transgêneras devem, sim, receber o benefício feminino — após completar 60 anos ou por 30 anos de contribuição — mesmo que tenha passado pela transição há pouco tempo. Para ele, isso deve acontecer principalmente se existe a alteração de sexo/gênero nos documentos, o que comprova o reconhecimento social do gênero expressado.
Os homens transgêneros, portanto, receberiam o benefício destinado aos homens, também levando em consideração que o sexo biológico não carrega sentido moral ou jurídico relevante, mas o reconhecimento social do gênero sim. Apesar de válido o argumento de que os homens transgêneros sofrem discriminação no ambiente de trabalho, outras minorias também sofrem esse estigma, mas não são encaixados na categoria “mulher” do sistema previdenciário, não podendo ser beneficiados pelos dispositivos legais atuais. Sendo assim, seria necessária a criação de novas categorias e regimes de aposentadoria. Pessoas não-binárias, no entanto, seriam enquadrados de acordo com o gênero que já expressou em algum momento, ou com a categoria mais benéfica.
Nas competições esportivas, muito é discutido sobre uma vantagem que mulheres transgêneras possuem sobre mulheres cisgêneras em algumas categorias por conta da diferença física. Esse debate, portanto, trata do direito político, já que implica em um tratamento desigual. A questão foi resolvida nas Olimpíadas de 2016 com a determinação do Comitê Olímpico Internacional (COI), de que mulheres transgêneras comprovassem que o nível de testosterona não fosse maior que 10nmol/L nos 12 meses anteriores à competição poderiam participar.
Ainda assim, a questão segue em aberto, já que o risco de prejudicar o equilíbrio de forças nas competições está sempre presente, o que torna necessária a análise de cada caso. Apesar disso, é importante que se abra espaço para que pessoas transgêneras (binárias ou não) participem de competições. O pesquisador sugere como saída algo semelhante ao que acontece nos Jogos Paraolímpicos, onde as divisões levam em consideração as limitações do atleta.
Nas categorias em que o sexo é um fator determinante, Pablo acredita que é importante notar se o fator relevante para a divisão é o sexo propriamente dito, ou a quantidade de hormônios produzidos, o que pode ser levado em consideração na distribuição de pessoas nessas categorias.
Por conseguinte, o especialista acredita que seria necessária uma melhor formulação do curso de Direito para melhorar a perspectiva de garantia de direitos morais, políticos e legais. “É necessária uma mudança do sistema de ensino. É preciso adotar uma perspectiva crítica e humanitária, que é fundamental na formação de qualquer pessoa que assumirá a posição de julgador”, critica. Ele levanta ainda que os juízes não possuem noção sobre como é a vida das pessoas transgêneras.
Faça um comentário