Obras de captação construídas na crise hídrica não resolveram o problema

Pesquisa detecta falhas na atuação do Estado de São Paulo, que baseava-se principalmente na engenharia

Barragem da Cascatinha, em Mairiporã, que pertence ao Sistema Cantareira. Fonte: Rovena Rosa/Agência Brasil

O Estado de São Paulo passou em 2014 por uma intensa crise hídrica. Na época, racionamentos e obras para captação de água foram algumas das medidas tomadas na tentativa de controlar a situação. Ana Lúcia Gerardi critica, em seu doutorado, a atuação do governo durante a crise, pautada em grandes obras de engenharia, que geram sérios impactos a longo prazo. Para isso, sua pesquisa analisou as diferentes ações implementadas durante o período, a partir de uma metodologia conhecida como modelo de coalizão de defesa.

Esse modelo combina duas teorias já existentes. Segundo a primeira, as políticas públicas são montadas de forma totalmente racional e consciente, enquanto que, para a segunda, elas são apenas fruto dos interesses pessoais dos políticos. O modelo de coalizão é basicamente um meio termo entre ambos e possui grande influência da psicologia. De acordo com ele, muitas crenças e valores dos políticos são traduzidas em políticas públicas de forma inconsciente. “Assim como nós temos valores muito intrínsecos e inconscientes que reproduzimos nas nossas ações e ideias, eles [políticos] também têm. Então, não é totalmente racional, nem só por interesse. É um modelo híbrido”, explica a pesquisadora que defendeu seu doutorado no Instituto de Energia e Ambiente da USP (IEE).

Para o modelo, a sociedade é dividida em subsistemas, neste caso, o da gestão de recursos hídricos na região metropolitana durante a crise. Um subsistema pode ser dividido em algumas coalizões de defesa, que nada mais são do que agrupamentos entre diversos atores, formais ou não. Esses atores estariam unidos principalmente pelas suas crenças e valores. Na crise hídrica, por exemplo, houve duas coalizões: a dominante e a de resistência. A primeira era caracterizada principalmente pelos atores do governo, que possuem grande poder político. “É quem conseguia traduzir suas ideias em políticas públicas”. A segunda, por sua vez, era formada pela Aliança pela água – articulação montada pela sociedade civil para o combate da situação – movimentos sociais, ONGs e até a mídia.

Gestão da oferta e da demanda

Ideologicamente, essas duas coalizões estavam separadas pelas propostas de enfrentamento da crise. A dominante pautava sua atuação pela gestão da oferta, ou seja, procurava gerenciar os recursos hídricos para atender a população, através de obras de engenharia. A pesquisadora entrevistou membros do Comitê da Bacia Hidrográfica do Tietê, órgão de discussão com representantes do governo e da sociedade, que confirmaram essa tendência. “Na época, surgiram políticas de enfrentamento da crise. Todas elas tinham aquele conjunto de obras de transposição. Todas”. A pesquisadora explica que na época o órgão teve poucas funções. “Ele foi inutilizado durante a crise. Todas as obras foram aprovadas sem passar por ele, chegavam prontas lá.”

Entre essas obras estão a interligação Jaguari-Atibainha, que pretende conectar as represas Jaguari, na Bacia do Paraíba do Sul, e Atibainha, do Sistema Cantareira; a instalação do Sistema Produtor São Lourenço, que vai bombear água de uma cachoeira em Ibiúna até Vargem Grande Paulista; e a reversão das águas do Rio Itapanhaú para o Sistema Produtor Alto Tietê.

Obras na Interligação Jaguari-Atibainha. Fonte: Governo do Estado de São Paulo

Já a coalizão de resistência buscava uma gestão de demanda, em que as ações humanas são gerenciadas de acordo com os recursos disponíveis. Racionamentos, programas de bônus para quem consome menos e redução da pressão, que diminui os vazamentos e fraudes, são algumas ações do tipo.

A pesquisadora aponta diversos problemas na gestão da oferta implementada pelo governo. “São grandes obras que sempre tem algum tipo de impacto social ou ambiental. Custam muito dinheiro e buscam água de um lugar que não é o mesmo onde ocorre o consumo, podendo trazer problemas de abastecimento para esse local”. Segundo ela, construções nesse molde tendem a ficar cada vez mais caras. A população vai continuar crescendo e a água terá de ser buscada cada vez mais longe, já que as alternativas mais próximas irão se esgotar. Além disso, ela explica que, em meio à crise, muitas das obras recebem caráter emergencial não passando por todas as avaliações ambientais.

Além de interesses próprios, Gerardi conta que também existem motivos psicológicos para as atitudes da coalizão governamental. “É o paradigma hidráulico, da necessidade do homem dominar a natureza, do medo da mortalidade. São obras gigantescas para deixar legado.”

A atuação da coalizão de resistência era pautada principalmente pela participação pública e conservação ambiental. A intenção era implementar medidas mais ligadas à gestão da demanda, o que realmente ocorreu. No entanto, elas foram meramente paliativas e sem continuidade. A dificuldade para colocar essas ações na prática deveu-se principalmente à falta de recursos “financeiros, políticos e midiáticos [grande mídia]”. A pesquisadora explica que normalmente essas articulações entre ONGs e movimentos sociais ocorrem apenas em momentos de emergências, mas se fragmentam depois.

A ideia para a pesquisa e a gestão de água no Brasil

Em 1997, foi criada a Política Nacional de Recursos Hídricos que visava descentralizar as decisões sobre o assunto, criando, entre outras coisas, os comitês de bacias hidrográficas. Gerardi explica que, passados mais de 20 anos, os instrumentos legais ainda são insuficientes como a crise detectou, uma vez que os comitês foram praticamente inutilizados. “Ainda é muito frágil, porque em situações de crise fica totalmente centralizado.”

A pesquisa faz parte de um projeto internacional conhecido como BlueGrass, desenvolvido na França. A ideia é fazer diversos estudos de caso ao redor de conflitos pela água, em diferentes países, como Peru, México e EUA. Todos eles utilizando a mesma metodologia. Só no Estado de São Paulo foram feitos três trabalhos, um deles o de Ana Lúcia. A pesquisadora entrou no projeto quando começava a conversar sobre seu doutorado com seu orientador. “Ele falou do projeto, eu li, gostei e ao invés de escrever um projeto próprio acabei me adequando no projeto geral”, completa.

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