A revolução das máquinas chegou?

A invasão das Inteligências Artificiais promete revolucionar o trabalho, a economia e a própria sociedade

Imagem: Juliana Santos

Por Gabriela Teixeira, Giovanna Simonetti, Juliana Santos, Letícia Vieira e Maria Clara Rossini

O conceito de Inteligência Artificial, ou IA, está longe de ser algo novo para o ser humano. Explorada em filmes, livros e outras mídias culturais, a ideia de máquinas autônomas e poderosas o suficiente para se igualarem ao homem – ou mesmo superá-lo – permeia o imaginário popular há décadas, muitas vezes acompanhada de um tom agourento. Mas o que por muito tempo foi apenas material para produções de ficção científica e teorias conspiratórias, a cada dia tem se tornado mais e mais próximo da realidade, aos poucos vem invadindo o cotidiano humano de maneiras muitas vezes inimagináveis.

“O futuro da colaboração criativa”. Foi assim que a cantora norte-americana Taryn Southern definiu sua canção “Break Free”, lançada em agosto de 2017 e desenvolvida por meio de uma parceria entre compositores humanos e o Amper, um software de inteligência artificial capaz de produzir músicas originais. Além dessa canção, cuja mensagem, curiosamente, é sobre uma mulher que deseja superar suas limitações físicas, outras músicas e videoclipes do álbum “I AM AI” também contaram com o uso de variadas tecnologias, como o blockchain e a realidade virtual, da qual, aliás, a própria Taryn se auto-intitula uma “evangelizadora”.

Mas nem tudo são flores nesse promissor meio tecnológico. Simultaneamente à expansão das áreas alcançadas pela inteligência artificial, surgem problemas capazes de refrear o entusiasmo causado pelas novidades, ainda que sem esfriá-lo totalmente. É o que tem acontecido com a Alexa, a assistente virtual da Amazon lançada em 2014. Prometendo ser capaz de efetuar até 33 mil tarefas, Alexa pode fazer desde coisas simples, como pesquisar informações, até outras mais complexas, como trancar portas e controlar as temperaturas, desde que a casa do usuário tenha outros aparelhos compatíveis. Para tudo isso, basta um mero comando de voz. Contudo, após passar por um boom em suas vendas no ano passado, o dispositivo tem protagonizado polêmicas que vão desde risadas macabras à gravação e divulgação não autorizada de conversas. Tantas controvérsias têm motivado discussões sobre possíveis perigos dessas novas tecnologias, além de iniciativas que visam seus aperfeiçoamentos, permitindo maior harmonia na interação homem-máquina.

Nesta relação, as referências culturais auxiliam na construção de uma imagem da inteligência artificial. Muito do que é mostrado na TV, no cinema e na literatura molda – ou pelo menos influencia – a maneira como os indivíduos percebem as máquinas inteligentes. Porém, para além da cultura, percebe-se a existência de elementos psicológicos por trás das tecnologias capazes de criar e aprimorar as IAs.

Primeiro, o processo de desenvolvimento das IAs aproxima-se da tentativa de conceber um ser que assemelha-se ao humano. Há o desejo de criar uma tecnologia artificial que substituiria o homem nas suas diversas funções e ações. Contudo, ao mesmo tempo em que essa vontade se manifesta, um instinto primitivo é acionado: o medo. Os seres humanos têm medo das máquinas. Os próprios filmes mostram constantemente a revolução das máquinas, sua tomada de consciência e dominação sob os indivíduos. Não é raro uma representação ameaçadora e vilanesca. A noção de temor e subjugação ainda são amplamente difundidos pela opinião pública, até mesmo na comunidade científica. O famoso físico Stephen Hawking defendeu em entrevista à BBC Londres a visão de que as máquinas estão pertos de dominar a espécie humana, já que a tecnologia e a ciência se desenvolvem em um ritmo mais veloz do que a vida biológica. “Os primeiros experimentos de inteligência artificial estão dando resultados brilhantes: logo as máquinas poderão desenvolver a autoconsciência e sobrepujar o ser humano”, afirma.

O professor do departamento de Filosofia da FFLCH USP, Osvaldo Pessoa, estuda a filosofia da mente — uma linha de pesquisa que discute a respeito da relação entre a consciência e o corpo. Para ele, o medo humano de ser superado por máquinas parece ser bem fundado. “Hoje em dia os robôs já substituíram os humanos em vários setores produtivos, e isso tende a aumentar, contribuindo para uma maior concentração de renda. Há muita gente que debate essa situação, a curto e a longo prazo, como aqueles que discutem o trans-humanismo —  era em que a capacidade de processar informação da rede mundial de computadores irá superar a capacidade de processamento de todos os seres humano”, explica.

Na filosofia da mente, existe uma divisão fundamental entre duas correntes de pensamento que dedicam-se ao estudo das inteligências artificiais: a dos comportamentalistas filosóficos e os mentalistas. Os primeiros definem a consciência apenas a partir do comportamento de um ser, enquanto os últimos defendem que há algo como uma “mente” ou uma “consciência” que vai para além do mero comportamento. Existe um grande debate a respeito de consciência e tecnologia. Mas, afinal, a pergunta permanece:

 

O que é a inteligência artificial?

Esse é um conceito difícil de ser definido. Segundo a professora Renata Wasserman, a qual leciona a disciplina Inteligência Artificial no Instituto de Matemática e Estatística da USP (IME-USP), existem diversas e diferentes definições contidas em livros e textos. De maneira geral, esse é o campo que busca estudar métodos para fazer com que programas ou sistemas tomem decisões de maneira mais racional, ou o que seria considerado “inteligente”.

Longe de ser uma espécie de personificação da tecnologia, a área de estudos de inteligência artificial foi criada por volta dos anos 1950 nos Estados Unidos em um encontro organizado pelo cientista da computação John McCarthy, o qual veio a se tornar um dos maiores nomes nesse campo de estudo. Ele reuniu diversos pesquisadores que estudavam diferentes áreas e criou o termo para designar um campo de estudo maior que relacionava todas essas áreas entre si: a inteligência artificial. “Foi proposto um programa chamado General Problem Solver (GPS), que era justamente a ideia de abstrair, usar lógica para representar o conhecimento sobre um domínio e resolver problemas em cima disso”, afirma a pesquisadora.

John McCarthy (1927-2011) em seu laboratório de inteligência artificial em Stanford (Créditos: AP)

Diferente do sistema de posicionamento global que estamos acostumados a relacionar com a sigla GPS, o General Problem Solver (ou solucionador de problemas gerais) foi um programa de computador capaz de resolver problemas simbólicos formalizados. Alguns exemplos são problemas matemáticos, provas de teoremas ou um jogo de xadrez.

O campo de estudo da pesquisadora, representação do conhecimento, se relaciona com o propósito do GPS. É preciso ter o conhecimento de um especialista caso queira-se criar algo inteligente, desde um jogador profissional de xadrez até um pesquisador de moléculas químicas, dependendo do conhecimento aplicado. “A área estuda como é possível representar esse conhecimento, visto que é necessário utilizar o saber de um especialista e representá-lo de alguma forma que seja útil para o sistema”, diz Wasserman.

O campo de estudo é comumente dividido em inteligência artificial forte ou fraca. Segundo essa nomenclatura, a inteligência artificial fraca, onde o campo de estudo de Wasserman se encaixa, visa o comportamento inteligente dos sistemas, independente de como isso é atingido. Já a inteligência artificial forte, além de buscar esse comportamento, também tem como objetivo ser gerado da mesma forma que a inteligência humana, assemelhando-se ao funcionamento do cérebro.

Apesar das tentativas, a pesquisadora acredita ser muito difícil simular de maneira totalmente fiel o funcionamento do cérebro, mas ressalta a importância de se continuar tentando visando gerar cada vez mais conhecimento. “Tem gente trabalhando desde a parte de neurociência até a parte de simulação. Essa área de tentar simular o funcionamento do cérebro com as redes neurais, simulando desde o funcionamento de um neurônio até todas as conexões entre eles, […] voltou a crescer nos últimos 15 anos por conta dos super processadores que a gente tem hoje. Para fazer qualquer coisa que tenha um impacto são necessários muitos neurônios”, afirma a pesquisadora.

Recentemente, os avanços dentro da área de inteligência artificial têm ganhado muito destaque na mídia. Um caso que ganhou muita repercussão foi o fato de a inteligência artificial criada pelo Google ter passado no teste de Turing. O teste, criado pelo matemático Alan Turing, avalia a capacidade de uma máquina se passar por um ser humano apenas por meio de conversas. Foi esse o feito do Google: o sistema inteligente telefonou para um restaurante e conseguiu manter uma conversa sem que a pessoa do outro lado da linha identificasse que se tratava de uma máquina. Apesar do feito, a professora acredita que existem avanços mais interessantes ocorrendo na área, como máquinas que são capazes de derrotar campeões mundiais ou carros autônomos. Nesse último caso, que recentemente ocasionou a morte de uma pessoa, existem muitos valores éticos envolvidos.

 

Sundar Pichai, presidente da Google, apresenta a inovação em uma conferência em Mountain View (EUA) Créditos: Getty Images

As questões éticas que envolvem o estudo da área ultrapassam o exemplo citado e estão presentes em qualquer tipo de inteligência artificial devido aos algoritmos utilizados. “Na minha área, quando vamos extrair conhecimento de um especialista, estamos representando a visão dele, e isso vale também para os sistemas de aprendizado, em que não é representado explicitamente o conhecimento de um especialista, mas são extraídos de exemplos”, explica Wasserman. Ela diz que a questão é contornável, por exemplo, dentro de uma empresa, que objetiva transmitir uma visão específica. O problema está quando esses sistemas extrapolam para o mundo, e acabam por multiplicar uma visão ou um conjunto de visões. “Isso acontece porque os algoritmos são enviesados, eles vão aprender de acordo com o que se está ensinando para ele. O perigo é esse, começar a propagar preconceitos, ideias que talvez a gente não gostaria que fossem amplificadas”.

Esse é um dos motivos pelos quais a professora acha difícil que as máquinas substituam totalmente a atividade intelectual. “Essa máquina, essa inteligência, vai ter sido treinada de alguma forma, e ninguém consegue fazer uma coisa imparcial. Então acho que os sistemas podem ajudar muito na produção intelectual, podendo gerar mais dados e tabelas, mas tem muita coisa que depende. Pode facilitar muito, mas muita coisa vai depender de uma análise que creio que não deveria ser feita por esse sistema”, diz ela.

Já no trabalho braçal, é mais possível que esse fenômeno ocorra, apesar desse fato não ter se concretizado totalmente na realidade. “Acho que esse é um sonho desde que surgiram as primeiras máquinas. Quando teve a revolução industrial, as pessoas achavam que as máquinas iam fazer todo o trabalho braçal e elas teriam mais tempo livre para descansar, mas não foi o que aconteceu, pois vão surgindo outros trabalhos”, diz a pesquisadora. “Acho que a gente vive a mesma coisa com todo avanço de tecnologia, as pessoas hoje estão mais cansadas e trabalham mais do que antes. Seria ótimo que máquinas pudessem fazer o trabalho chato e liberar as pessoas para outras coisas, mas claro, a gente diminui o emprego, diminui a parcela da população que consegue viver. Então, como toda revolução tecnológica, desde as primeiras máquinas, acho que deve haver um cuidado pois talvez o nosso modelo não se sustente”.

 

Impactos no mercado de trabalho

Os avanços na tecnologia possuem como um de seus principais objetivos tornar o trabalho exercido pelo ser humano menos desgastante. Um exemplo bastante significativo foi a automação das fábricas. Iniciada nos anos 1960, ela foi responsável por tornar a rotina dos operários muito menos hostil.

Atualmente, identifica-se também a substituição de formas intelectuais de trabalho. Isso graças ao desenvolvimento da Inteligência Artificial. Essa tecnologia está tão difundida que, de acordo com Cesar Alexandre de Souza, doutor em administração e professor da FEA-USP, é difícil dizer qual área profissional não é impactada por ela.

Ele aponta impactos na área financeira, com robôs capazes de realizar investimentos não só por meio de dados matemáticos, mas também por análise textual, na administração, com os chatbots para atendimento automático aos clientes e aí por diante. Há também áreas com grande potencial de serem influenciadas. Esse é o caso do setor educacional, que poderá contar com softwares para a elaboração e correção de provas e do direito, que promete ter um sistema de levantamento de jurisprudência capaz de propor alternativas de recurso ou defesa.

 

Fonte dos dados: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/12/economia/1494601971_737485.html Imagem: Juliana Santos

Um dado impressionante a respeito dos impactos dessa tecnologia no mercado de trabalho é o produzido pela Universidade de Oxford em 2013. Segundo a pesquisa, em cerca de 20 anos, 47% dos postos de trabalho dos Estados Unidos serão substituídos por sistemas autômatos. Ela analisa a probabilidade de uma função ser substituída levando em consideração capacidades de três categorias: percepção e manipulação, criatividade e inteligência social. As profissões que mais exigem essas qualidades são as menos prováveis de serem automatizadas. Segundo o estudo, um oficial de justiça teria mais chances de perder seu emprego do que um biólogo, por exemplo.

O principal questionamento que surge ao se perceber a dimensão dessas mudanças é: o que irá acontecer se os robôs fizerem tudo? Cesar propõe três cenários possíveis para esse futuro. O primeiro seria extremamente otimista. Ele estaria de acordo com a ideia de que a automação dos trabalhos intelectuais irá acabar com toda forma de esforço inútil e gerar várias novas oportunidades de trabalho, nas quais todos os profissionais substituídos pelas máquinas irão se encaixar.

O segundo seria ilustrado pelas máquinas substituindo completamente o ser humano e, portanto, não havendo mais postos de trabalho. Segundo o professor, é mirando nesse cenário que os estudiosos do Vale do Silício levantam a ideia de futuramente ser necessário o estabelecimento de uma renda mínima para a população, ou seja, sem oportunidades de emprego, as pessoas dependeriam de uma “mesada” concedida pelo governo para continuarem consumindo.

Essas projeções que preveem consequências extremas são pouco prováveis para Cesar. Ele acredita que a implementação da Inteligência Artificial deverá resultar em uma mistura dessas possíveis realidades. Independente do que aconteça, é importante para ele que busque-se “aprender como as máquinas funcionam e o que trazem de novo a cada área do conhecimento para combinar essas inovações com o que já é feito e atender melhor e a mais pessoas”.

Quando se pensa no caso brasileiro em específico, os impactos ocorrem de forma mais lenta e localizada. O país ainda é muito mais consumidor do que produtor de Inteligência Artificial. O professor aponta que a inovação nesse setor se concentra em grandes empresas como Microsoft, Facebook, Amazon e Google, mas que a indústria brasileira é bastante criativa e possui potencial de crescimento.

Em relação às mudanças sofridas no mercado de trabalho, ele destaca que o telemarketing é um dos setores mais afetados no Brasil e que em até dez anos terá somente 20% de suas vagas ocupadas por trabalhadores. Cesar pontua que por mais que nesse período de transição haja falta de empregos no setor, a tendência é que o aumento da eficiência e a ampliação dos mercados atendidos gerem novas oportunidades na área de assistência e implementação das tecnologias.

O professor destaca que o maior desafio para o Brasil nesse sentido é a educação. Segundo Cesar, esse novo cenário irá exigir dos profissionais cada vez mais um aprendizado contínuo e autônomo, que ele identifica como ainda não fazendo parte da cultura educacional da maior parte do País.

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