“Cultura é informação ou comportamento — compartilhado em uma comunidade — que é adquirido de membros da mesma espécie através de alguma forma de aprendizado social”, afirmam os biólogos Hal Whitehead e Luke Rendell em The Cultural Lives of Whales and Dolphins.
Um livro que NÃO é um ode a baleias. Nem a golfinhos ou a qualquer outro cetáceo. Pelo contrário, os desmistifica. Assim também é esta matéria.
Do drone à genética
Em junho de 2018, mais de três anos após a publicação de Whitehead e Rendell, o pesquisador e professor do Instituto Oceanográfico da USP (IOUSP) Marcos César Santos está se preparando para monitorar a população de botos-cinza (Sotalia guianensis) no Estuário de Cananéia, litoral sul de São Paulo.
“A água é mais clara agora. No verão, como chove muito, carreia material orgânico, e o mar fica como café com leite”, comenta Santos. A preocupação com a visibilidade é por causa de uma ferramenta de seu grupo de pesquisa, o Laboratório de Biologia de Conservação de Mamíferos Aquáticos (LABCMA): drone.
O objetivo é identificar, através da gravação de vídeo, quando há sucesso na captura da presa feita pelos beach hunters. São golfinhos que se aproximam muito da praia para predar alimento, correndo o risco de encalhar.
Não é um comportamento limitado pela espécie, assim como seus membros podem tanto apresentar tal quanto não. Sejam botos ou orcas (que também SÃO golfinhos), ou outros cetáceos: a distribuição de beach hunters é difusa. Há alguns anos, compreendem cerca de dez indivíduos (cinco adultos e seus filhotes) da população por volta de 400 em Cananéia.
Diretamente associado ao monitoramento visual por drones (e câmeras fotográficas também) é o trabalho de descrição acústica. “Os cetáceos com dentes desenvolveram o processo de ecolocalização: eles enxergam emitindo som”, explica Santos, que o capta através hidrofones.
“A gente tem o som dele vindo para a praia e retornando ao mar, descrevendo bem todo o processo. Apenas não conseguimos descobrir — através somente do som — se a captura foi bem sucedida”. É claro o casamento com o monitoramento visual, em especial o do drone.
Há novidade técnica em relação à genética. Ao coletar a pele e gordura, analisarão, com a ajuda das professoras Mariana Nery (Unicamp) e Rosalinda Montone (IOUSP) respectivamente, os graus de parentesco na população de botos-cinza para:
1) (através da pele) buscar se a genética pode explicar parcialmente o porquê de alguns botos-cinza serem beach hunters e outros não; e
2) (através da gordura) medir a transmissão de poluentes entre as gerações.
Antes dos beach hunters
Nascido no “Paraíso” (“o bairro paulistano”, brinca), Santos viajou pelo litoral do estado enquanto era graduando em Ciências Biológicas na USP, entre 1989 e 1993. Seus professores o recomendaram, pois seria impossível trabalhar com baleias e golfinhos na capital.
“Aí, tive um lampejo de procurar, no acervo da Folha e do Estadão, fotos antigas de cetáceos até então não identificados. Levantei informações tão antigas quanto 1936”, recorda o pesquisador. Começou sua viagem pela costa paulista em 1993.
Distribuía panfletos (pedindo para que o ligassem caso encontrassem qualquer cetáceo morto; ele só trabalhava com carcaças) e perdia suas aulas (dormindo nas rodoviárias de São Sebastião e de Ubatuba, pois o último ônibus partia às 18 horas).
No ano seguinte, seus amigos apresentaram-no um morador de Cananéia enquanto assistiam a um jogo da Copa do Mundo em um bar. Dois dias depois do tetra, Santos foi para a cidade da fronteira com o Paraná à procura de botos: “os residentes me falaram sobre duas praias onde dava para ver os golfinhos bem de perto”. Mais surpreendente que a proximidade era o fato de serem apenas alguns.
Sempre os mesmos.
Pesquisa no Estuário de Cananéia
Somente em 2000, Santos conseguiu recursos pela primeira vez para monitorar os botos-cinza em Cananéia. “Atravessava a balsa para Ilha Comprida de graça (porque pedestre não paga) e andava até a praia Ponta da Trincheira para observá-los, com o dinheiro para revelar as fotos contado”, relembra o pesquisador.
Financiado, começou cobrindo aquelas duas praias — a Ponta da Trincheira e a Praia do Pereirinha (Ilha do Cardoso) — com um bote. Três anos depois firmou um vínculo com o Earthwatch Institute, dos Estados Unidos, para receber voluntários estrangeiros para monitoração integral do estuário entre 2004 e 2007.
Um dos focos era o estudo comportamental de todos os botos-cinza da área com base nas categorias elaboradas pela bióloga Susan Shane em 1990 na Flórida. Basicamente, cada registro era classificado entre quatro atividades: alimentação, deslocamento, socialização e descanso. “Eles desenvolveram seu comportamento há um milhão de anos; nós, há menos da metade. Antropomorfiza-los é algo delicado; ela mesma comenta sobre a complexidade disso”, pondera Santos.
“Do bruto da observação em campo, uns 80% não se enquadram em nenhuma das quatro. E vão pro ‘lixo’. Simplesmente, não há certeza sobre o que estão fazendo. Eu tinha uma coluna na tabela de classificação só para isso”, complementa. Os limites dessa abordagem fizeram-no abandoná-la depois de 2007. Três anos depois, Santos pausou suas pesquisas sobre os beach hunters.
Retomou-as em 2016, quando os monitorou pela primeira vez com hidrofones. No ano seguinte, chegou o drone, que filmou apenas dez capturas: “uma amostra ainda muito pequena”. O pesquisador pretende ampliar esse número no próximo mês com seus alunos de pós-graduação.
E, neste ano, iniciarão a abordagem genética de comparação entre gerações, comentada anteriormente. “É uma situação incrível para quem vai lá desde 1994. Por exemplo, há duas semanas vi a KN# 75 (KN de Cananéia), a mesma que encontrei pela primeira vez há quase duas décadas”, revela Santos em nostalgia.
“A minha primeira biópsia foi espetacular. Da praia, eu não conseguia acertar o boto”, revive. A coleta de material genético dos cetáceos é feita por amostra de pele. Para isso, os pesquisadores usam uma balestra esportiva com flecha adaptada.
Continua: “Subi no cercado cheio de arame farpado de um pescador local, o Seu Santino. E esperei. Quando acertei, a flecha de $80 afundou no mar. Mergulhei para pegar, mas tinha receio do golfinho me agredir”. Era a KN# 279, e ela não o atacou: “alí, ganhei confiança neles”.
Os 10
Dentre a população de botos-cinza estudada, foi marcante a predominância de fêmeas entre os capazes de beach hunt, “mostrando que o comportamento deve provavelmente ser considerado tipicamente feminino”, como afirma em artigo publicado em 2010 (logo antes da pausa de anos no trabalho).
“Algumas fêmeas dessa população escolheram o risco de morrer encalhada para levar seus filhotes consigo e amamentá-los longe da interação social agressiva de outros botos”, complementa. Golfinhos costumam se agredir muito, ainda mais, machos. “Na maturação sexual, eles só querem passar seus genes. Copulam tudo o que tiver orifício. Assim, machucam muitos filhotes, chegando a matá-los”, explica.
O fato de não participarem da criação dos filhotes e a hipótese de afastarem-se do contato materno mais cedo (em busca de copular) podem explicar o porquê de serem minorias entre os beach hunters. Mas, Santos realça sua intenção de verificar se é algo válido de afirmação.
Cultura?
Para compreender tudo isso, o estudo sob perspectiva cultural é importante e, ao mesmo tempo, complicado. A preocupação com o termo cultura é “um desastre ocupacional”, afirmam Whitehead e Rendell em seu livro. Costuma-se delineá-la de acordo com a área e o estudo do pesquisador: “acadêmicos aparecem horrorizados quando alguém pensa em não usar a ‘sua’ definição”.
Assim, propõem uma definição mais ampla ou, citando o biólogo Kevin Laland, “útil” para diversas áreas do conhecimento ao mesmo tempo. Complementam: “Deve compreender algo observável, sem a necessidade de conhecimento de estados internos (como crenças e valores). Deve, no mínimo, possibilitar a existência de cultura não humana”.
Optaram por defini-la como informação ou comportamento, pois ainda são hipóteses na área acadêmica que a estuda se cultura é: 1) informação que afeta comportamento ou 2) comportamento resultado de informação.
Comunidade são as “relações sociais que a agrupam junta”.
Ressaltam que considerá-la como adquirida de membros da mesma espécie é algo passível de revisão futura, pois há experimentos comprovando a transmissão no conhecimento de fazer ninho entre diferentes espécies de pássaros.
Por fim, aprendizado social é “o influenciado por observação ou interação com outro animal e seus produtos”. Ou seja, não é só copiar ou imitar, mas também criar.
Analisando os 10
À fim de compreender a organização social formada entre beach hunters, Santos usou índices de associação (de Sørensen e de Jaccard) comuns entre pesquisadores de cetáceos, mas oriundos de estudos de ecologia de comunidades.
Basicamente, “é uma tabela simples de ocorrências entre dois indivíduos. Se na minha ida em campo, apareciam: os dois juntos; um e não o outro; ou nenhum dos dois. Soma as ocorrências dos dois juntos e divide pela soma de todos os casos”, explica. E complementa: “Usei dois índices, para comparação. porque o de Sørensen dobra o peso das coocorrências, e o de Jaccard não”.
Além dos beach hunters
— Mas, não existe nenhum registro de algo semelhante ao beach hunting em outros lugares do país além do Estuário de Cananéia?
— Há sim. Por exemplo, na Praia do Pipa (Rio Grande do Norte) e na Ilha das Peças (Paraná). E tem um comportamento totalmente diferente que eu ainda não descrevi. Mas, não falo onde é até eu terminar de escrever.
— É no litoral de São Paulo?
— Sim.
Desde a década de 1980, se estuda o comportamento cultural em cetáceos. “O próprio Hal Whitehead trabalha com baleias cachalotes no Equador há 40 anos”, comenta Santos. Também desabafa sobre o abismo entre o Brasil e os países desenvolvidos em relação às pesquisas.
Randall Wells, na Flórida, e Richard Connor, que trabalha há quarenta anos em Shark Bay (Austrália Ocidental), são citados pelo brasileiro como referências. Há um mês, Connor publicou o livro Dolphin Politics em Shark Bay, no qual descreve uma complexidade cultural além de beach hunters, desde aliança de machos para copular a mesma fêmea ao uso de esponjas como ferramenta de caça.
KN?
Em janeiro deste ano, Connor veio ao Brasil. Santos o apresentou sua pesquisa e o Estuário de Cananéia. O brasileiro, até então, apenas enumerava os botos-cinza da região, os KN#s. A única exceção é Tortinha, filha da fêmea KN#10, nascida entre fevereiro e março de 2000. Ela nunca recebeu um número. O nome de Tortinha vem de sua nadadeira naturalmente entortada para a esquerda.
Tortinha também assobiava quando borrifava água pelo seu orifício respiratório, facilitando a identificação. Mas ela não o faz mais. “Ela é um pouco malandra. Se a gente formar uma fila paralela à praia com umas cinco pessoas com água no joelho, ela fica quietinha e se esconde atrás para poder surpreender os peixes que estão do outro lado”, descreve Santos.
Quem também possui nome são Navalhada, a KN#260, e Pipoca, o KN#86. A fêmea foi batizada por um carioca amigo de Santos ao ver os ferimentos nela causados por um motor de barco. O nome do macho foi dado pelo pescador local Seu Santino, o qual o alimentava na beira da praia.
Santos se lembra do conselho recebido do biólogo americano durante sua visita aqui. “Ele falou para mim: ‘Marcos, é importante ter o contexto de nomes para aproximar a equipe dos animais. Isso ajuda a conhecer a personalidade de cada um’”, comenta.
O brasileiro conclui: “Provavelmente, a nossa próxima jornada — um projeto que ainda vou escrever e submeter para a Fapesp até o final do ano — é entrar contudo na sociedade deles e entender como o indivíduo a afeta”.
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