A Exposição “Cerâmica Indígena do Brasil: Preservando Histórias e Tradições” está em cartaz na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin até o dia 20 de dezembro. Por meio das peças dos Paiter-Suruí de Rondônia e dos Assurini do Xingu, o visitante é convidado a conhecer como se dá o processo de produção da cerâmica indígena e de que modo ele se insere em um ritual que remete à cosmologia e à espiritualidade desses povos.
Ceramista e curador da exposição, Jean Jacques Vidal começou sua trajetória com os Paiter-Suruí em 1986, quando foi a Rondônia montar um ateliê de cerâmica. A relação não cessou aí, além de outros trabalhos realizados ao longo da década de 1990, em 2000 Vidal volta ao território Paiter Suruí, dessa vez como pesquisador, para estudar as mudanças e continuidades de sua cerâmica dos anos 1970 até os anos 2000.
O ceramista explica que houve vários desdobramentos da relação com os Suruí, entre eles uma exposição no Museu do Índio, no Rio de Janeiro. Por meio da exposição, ele conheceu José Carlos Levinho, diretor do Museu, que lhe sugeriu trabalhar também com os Assurini. Dessa sugestão surgiu o tema de seu doutorado, também desenvolvido na Unesp, que propôs análise da cerâmica Paiter Suruí e Assurini. Jean Jacques, entretanto, explica que sua abordagem não é comparativa, pois não vê sentido nisso, mas sim em “chamar atenção para a produção diferenciada de cada etnia, isso que é importante. Não interessa entender tudo como arte indígena. São artes indígenas, é plural”.
A ideia da exposição não é aleatória: ela é resultado de mais cerca de 40 anos de trabalho junto a povos indígenas. As peças paiter-suruí, alocadas à esquerda de quem entra na sala, fazem parte do acervo original de José Mindlin e foram alguns dos objetos de pesquisa de Jean Jacques durante seu mestrado. Além delas, algumas peças da antropóloga Betty Mindlin integram o acervo referente aos Paiter Suruí. As peças dos Assurini em sua maior parte são do acervo de Regina Polo Müller, antropóloga e professora da Unicamp. Muitas das peças de seu acervo estão em fase de catalogação para, posteriormente, serem transferidas ao Museu de Arqueologia e Etnografia da USP (MAE-USP). Além dessas três coleções, a exposição conta com peças trazidas de Rondônia ou do Xingu por Jean Jacques, e peças emprestadas pela galeria Amoa Konoya Arte Indígena. Entre todos esses acervos, a exposição reúne uma amostra significativa da arte cerâmica dos Paiter Suruí e dos Assurini de 1970 a 2010.
A cerâmica é escola e a escola é cerâmica
Ao entrar na exposição, o visitante se depara com dois estilos bastante distintos. Se à sua esquerda vê as grandes panelas, loboas e cuias escuras, à sua direita vê pequenos potes de tonalidade clara, formatos diversos, bastante ornamentados com grafismos pretos, alaranjados e vermelhos. A distinção entre a cerâmica grande, de aspecto funcional, e a cerâmica pequena, extremamente ornamentada, deixa clara uma diferença entre a arte Suruí e Assurini. Entretanto, como Jean Jacques explica, supor que a cerâmica Paiter Suruí seria funcional e a Assurini ornamental é falso, pois os pequenos recipientes assurini também são funcionais, servem para armazenar mel, miçangas, servir mingau.
Além da função decorativa, os grafismos da cerâmica Assurini têm importante papel identitário. Entretanto, como explica Jean Jacques, “embora os Paiter Suruí não tenham grafismo, eles fazem leitura das manchas que ficam na peça. Enquanto para os Assurini a apreciação está muito ligada a uma geometrização, para os Suruí ela se vincula mais a um estado mais orgânico da leitura visual. São pensamentos bem distintos”.
Muito além de um papel meramente funcional, a cerâmica desses povos está ligada a uma esfera ritualística, o que se manifesta desde o seu modo de produção.
Para os Assurini a extração da argila é um processo familiar. Artesã, filhos e marido vão juntos aos igarapés para extrair argila. Embora o marido possa acompanhar a artesã, ele não participa da extração da argila, mas somente lhe dá suporte em regiões da mata que podem oferecer perigo pela presença de caças.
Já no caso dos Paiter Suruí a produção de cerâmica é estritamente do campo feminino. No inverno, durante a seca, um coletivo de mulheres sai nas primeiras horas do dia para buscar argila. Nem todas elas podem participar da produção, há restrições: se estiverem menstruadas, grávidas ou tiverem tido relações sexuais na noite anterior não podem acompanhar o coletivo. Essas restrições têm a ver com a ideia de modelagem e criação. Vidal explica que “a grávida está passando por um processo de modelagem também. A cerâmica quebra, ela pode não dar resultados positivos. Esses cuidados têm a ver com chegar a uma qualidade, a uma excelência do trabalho”.
A expedição é silenciosa e, durante a extração, as mulheres falam baixo ou por mímicas. Isso porque acreditam que o espírito do caranguejo protege o barro, e não desejam acordá-lo, não querem que ele as siga.
Assim que estão próximas à aldeia as mulheres param, e, com o olhar imóvel, projetam a peça que vão fazer. Vidal explica que “há são estratégias ritualísticas. É todo um preparo projetual, de pensar no que vai fazer”
Após esse momento no coletivo feminino, elas partilham a argila, levam-na para suas casas, e passam a fazer as peças no ambiente familiar, junto às crianças. Vidal explica que “a cerâmica é escola, é lugar de aprendizagem, porque ela tem etapas, envolve uma série de conhecimentos de processos e transformação”. Por isso, as peças são feitas junto às crianças: pois a transformação do barro mole em peça a simbologia das transformações pelas quais elas vão passar ao longo da vida.
Após finalizar a modelagem da peça, ela é queimada fora do ambiente familiar, seja na aldeia ou na mata. Devido à escolha de materiais adequados, mesmo em fogueira aberta, a queima dos Paiter Suruí chega a mais de 730 graus.
Já no caso dos Assurini o processo de finalização é um pouco diferente. Após finalizada, inicia-se o processo de ornamentação da peça. Para fazer a pintura de tonalidade preta é utilizado o óxido de manganês, e para a pintura amarela, alaranjada e vermelha, o óxido de ferro. Feitos os grafismos, a peça toda é revestida com a resina do jatobá, para garantir a fixação dos pigmentos. Somente após passar o jatobá a peça está pronta para a finalização por meio da queima.
Além do jatobá, outro extrato importante é o uso da titiu. A titiu é uma entrecasca que possui tanino, um fungicida natural. Como as cerâmicas são usadas para armazenar alimentos ou servir bebidas, o uso da titiu é fundamental.
Todas as etapas de produção da cerâmica aparecem documentadas na exposição por meio de dois curtas e uma exposição de fotos. Em outras exposições da cerâmica Paiter Suruí organizadas por Vidal não havia esse material apresentativo. O curador conta que, em uma das exposições sem esse material, um Suruí que a visitou “as pessoas não estavam entendendo aquilo, porque só estavam olhando a peça final, e não o processo. Por isso, elas não estavam tendo o entendimento adequado daquela produção. Aí deu para visualizar a importância de todas essas etapas. porque para ele a arte é o processo, e não a peça”.
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