Já passadas três revoluções industriais (carvão, eletricidade e eletrônicos), vivemos hoje uma quarta baseada nas tecnologias habilitadoras, ou como Marcelo Teixeira de Azevedo, doutorando do Departamento de Engenharia de Sistemas Eletrônicos, da Escola Politécnica da USP, define, a “aplicação da tecnologia digital em todos os aspectos da sociedade humana”. Essa transformação, no entanto, não se dá apenas pela “adoção de novas tecnologias, mas também de [utilizá-las para encontrar] novas maneiras de tornar os negócios mais eficientes e competitivos”. Cunhada na Alemanha como indústria 4.0, o termo ganhou força após ser tema principal do Fórum Econômico Mundial do ano passado, em Davos.
A partir daí, modelos similares começaram a surgir nos EUA, no Japão, e agora, no Brasil. Ainda que cada um tenha suas particularidades, a essência tem impactos abrangentes, modificando áreas diversas como a economia, a comunicação e o agronegócio. Procurando aumentar a produtividade por meio de novos dispositivos, essas tecnologias se destacam pela capacidade de captar e interpretar informações, comunicarem-se entre si, e assim, agirem em conjunto. Algumas das mais importantes são a Internet das Coisas (Internet of Things, IoT), a Computação em Nuvem (Cloud Computing, CC) e o Aprendizado de Máquina (Machine Learning).
A IoT seria, por exemplo, a capacidade de sensores, processadores e equipamentos se comunicarem através de qualquer tipo de rede com aplicações. Segundo o doutorando, de forma prática, seria “termos um sensor que mede a umidade da terra, solo e temperatura, e com esses dados, ter uma irrigação mais eficiente − ou seja, não [seria necessário] irrigar de quatro em quatro horas”. Já num nível de infraestrutura, o CC coleta e armazena os dados capturados pelos sensores para que outros equipamentos possam acessá-los na nuvem. Pela grande quantidade de dados em oferta, os processos se situam no nível do big data, na qual se tem um processamento extenso e uma análise de informações complexa. Por fim, o Machine Learning envolve processos nos quais a máquina aprende, baseada nas informações contidas em seu banco de dados, sem ter sido expressamente programada. No mercado bancário, por exemplo, “os valores de ação são coletados durante 10 anos e tenta-se prever qual será o comportamento dela daqui um ou dois anos”.
Ainda que os três tempos (sensoriamento, armazenamento e interpretação/atuação) ajam através de sistemas diferentes, toda a cadeia precisa estar interligada para que a produtividade seja a máxima possível − da extração à chegada do produto ao usuário final. Por outro lado, Azevedo alerta àqueles que pensam em adaptar o modelo alemão de sucesso ao Brasil. “Não é simplesmente um ‘de, para’. É preciso conhecer onde somos fortes, como na exportação de commodities”, e entender a quais problemas devemos nos adequar.
Agronegócio 4.0
Drones, tratores autônomos, biotecnologia, esses são apenas alguns dos benefícios que as novas tecnologias estão trazendo ao agronegócio. Como em qualquer outra área, os avanços da indústria 4.0 alteram todo o paradigma estrutural antes conhecido. Se a mecanização do campo estabelecia uma noção de máquina-natureza, as tecnologias habilitadoras fornecem um nível a mais: a conectividade máquina-homem-natureza. Tratores autônomos podem, por exemplo, operar em horários fora do expediente ou em locais de risco, por não levar um tratorista na cabine. Através de “comunicação, mapeamento e monitoramento”, Silvio Crestana, pesquisador da Embrapa Instrumentação, comenta que é possível encontrar formas de se incrementar “produtividade, redução de custo ou o parâmetro em que se estiver interessado”.
Segundo ele, frente a crescente preocupação de se utilizar o mínimo possível de recursos naturais, produzindo ainda assim o máximo que uma região pode fornecer, a tecnologia surge como aliada na otimização desse sistema. “Se um sensor diz quanto uma colheitadeira cortou e colheu em cada ponto [de uma área], é possível construir um mapa de produtividade. [Com isso,] na próxima plantagem, onde produziu mais, coloca-se menos adubo. Onde menos, mais”. Essa seria a agricultura de precisão, na qual se faz o controle de uso de água, fertilizantes, defensivos agrícolas e outros insumos que poderiam gerar um melhor rendimento na produção do cultivo. Nessa linha, novos sensores, materiais e a biotecnologia são outros avanços que contribuem para uma melhor produtividade. É, no entanto, importante lembrar que as tecnologias vieram para compor e otimizar todas as fases da cadeia produtiva. Muitas vezes a preocupação acaba girando apenas em torno da produção, quando o agronegócio abarca também outros elos, como a agroindústria e a distribuição.
No nível da agroindústria, por exemplo, Luiz Cornacchioni, diretor executivo da ABAG, discute a personalização do produto. Ou seja, como é possível corrigir ou adequar o processo industrial de um agregado antes mesmo que a matéria-prima seja estocada, tendo apenas para isso as informações prévias de origem dos insumos e preferência dos clientes. Com elas, já se programa a linha de produção, poupa-se o tempo que seria perdido ajustando as máquinas e ainda se possibilita a oferta de um produto de maior apelo ao consumidor final. “[Por exemplo], no setor de papel e celulose, se houver uma alteração no tipo da madeira, põe-se mais ou menos [produto] químico, faz-se um cozimento mais ou menos demorado, um branqueamento diferente”. E completa: “Parece coisa pequena, mas em um processamento contínuo de 365 dias por ano, faz uma diferença gritante”. Já na distribuição, Cornacchioni fala da rastreabilidade exigida pelos consumidores, que procuram saber não só da entrega, como das informações de procedência e armazenamento. Quanto a estocagem, ele ainda comenta, “se preciso gastar meia-hora de empilhadeira para tirar o produto que está na frente do meu, custa dinheiro e tempo”. Aqui, uma tecnologia inteligente que já montasse em tempo real a logística das entradas e saídas de todo o estoque traria grandes economias. Pelo contrário, “não só se acumularia custos, perderia-se clientes”.
À essa altura, é importante ressaltar que todas as dinâmicas citadas só funcionariam se houvesse comunicação entre as diversas instâncias do agronegócio (IoT), para que as informações pudessem ser aproveitadas em tempo real. Informações estas que, por sua vez, teriam de ser armazenadas em um grande banco de dados na nuvem (CC) e constantemente atualizadas frente às decisões tomadas pelo sistema (Machine Learning). O que essa síntese ilustra bem é como conceitos inicialmente teóricos e abstratos apresentam impactos inimagináveis. Se não bastasse, Crestana ainda vai mais longe ao sugerir um aprimoramento da técnica de Machine Learning: o Deep Learning. Nele, o aprendizado é não só a partir dos erros, como de correlações que uma máquina faz de situações não previstas − conectando-se, inclusive, com outras máquinas. “Um drone coleta informações [pela posição do GPS] e pode [ajudar a] guiar um trator. [Aqui,] não é mais o aprendizado de uma máquina, é a interação entre máquinas”; no caso, em prol da tal agricultura de precisão.
Nesse ponto, como parte da revolução, é preciso destacar o papel dos drones. Eles vem substituindo helicópteros e satélites antes utilizados nas análises de campo por serem mais baratos e ágeis. Além de contribuírem na agricultura de precisão, os drones, como explica Giovanna Rossin, pesquisadora e jornalista pela Escola de Comunicações e Artes e cujo TCC tratou da atuação desses veículos no campo e em outras áreas, podem “gerar mapas topográficos, calcular área de nivelamento, medir a altura das plantas, dimensionar áreas de proteção permanente, detectar plantas daninhas, deficiências de água e nutrientes, e até mesmo a presença de pragas”. Embora alguns modelos já funcionem a base de combustível, sua principal limitação é o tempo de bateria que, durando de 15 a 20 minutos, precisa ser constantemente recarregada. Ainda assim, com o avanço das pesquisas, feiras inteiramente voltadas à discussão e a regulamentação de uso em território nacional pela ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil) deram a desenvolvedores e usuários a garantia de que a tecnologia só tem a crescer e se tornar mais acessível. “Talvez para pequenos proprietários não faça sentido ter um drone porque o cultivo é feito perto, muitas vezes manualmente, [mas] o importante é que os preços baixaram, deixando de ser restritos aos grandes fazendeiros”.
Dificuldades, mas oportunidades para o futuro
Apesar das grandes contribuições que a indústria 4.0 pode trazer ao mercado, o país choca-se com algumas dificuldades para a completa implementação. A principal delas é também o cerne da funcionalidade do sistema: a conectividade. Diferentemente de outras nações, onde a malha de redes é melhor consolidada, o Brasil não possui uma infraestrutura uniforme para transmissão de dados. Conforme se entra pelo interior dos estados, vários são os rincões de tecnologia. Quanto a isso, Crestana comenta que “quando não há conectividade em tempo real, grava e põe-se em um pen-drive para levar a um lugar onde isso pode ser [depois] processado”. É claro que isso é apenas um paliativo, mas entre ter parte de suas vantagens ou não a tê-la, melhor a primeira. Na mesma linha, Cornacchioni avalia que não se pode jogar todo o peso sobre os grandes centros: “A máquina está no meio do Mato Grosso, não na avenida Paulista”.
Se ainda pensarmos que essas tecnologias se concentram hoje em dia nas mãos dos grandes proprietários (que dispõem de mais capital para tais investimentos), o Brasil ainda tem um longo caminho para que o 4.0 subsista em um cenário ideal. “No passado, existiam agências de extensão rural que levavam a tecnologia do que tinha na época. Infelizmente, essa questão foi ficando de lado. [Hoje,] as cooperativas fazem isso de outra maneira. Elas absorvem a tecnologia e fazem o papel do Estado, mas não abrangem 100% da realidade”, o que, de acordo com Cornacchioni, é um grande problema nessa agora cadeia integrada, em que ninguém mais sobreviveria sozinho.
Uma possível explicação para isso reside no fato de que a maioria dos investimentos em inovação partam da iniciativa privada. Segundo Crestana, isso se dá porque o Brasil não consegue implementar parcerias público-privadas. “Normalmente não existe marco legal ou, quando tem, ainda não está implementado”. Cornacchioni também supõe que o momento de crise influencie nos parcos investimentos na área. Há, no entanto, “alguns centros de tecnologia, e até linhas de financiamento, mantidas pela FAPESP, NCTI e o próprio BNDES”. Mesmo assim, como principal fonte de renda nacional, o agronegócio apenas traria mais rendimento à economia nacional. De qualquer forma, como comenta Marcelo Azevedo, o esforço conjunto deve contar ainda com um terceiro atuante: a universidade. E aqui, tanto nas conceituações e definições, quanto na formação de profissionais para o mercado 4.0: “O Brasil precisa repensar a formação do profissional. Lá fora, [existem] modelos de ensino voltados para a resolução de problemas. Os conceitos vêm depois de se resolver o problema”.
Felizmente, reflexos dessa primeira leva de profissionais já podem ser vistos no desenvolvimento de start-ups de agronegócio, que muitas vezes alinhadas com empresas de fornecimento de insumos ou de prestação de serviços na plantação, colheita e transporte, configurou a maior parte de iniciativas do ano passado. Nesse ponto, Cornacchioni destaca que em contrapartida à “redução dos empregos manuais, há um aumento de pessoas desenvolvendo máquinas, equipamentos e tecnologias. O mercado é dinâmico, no fim, fica equilibrado”.
Seja como for, o agronegócio 4.0 chegou para ficar e só tem a crescer. Assim que o mercado começar a tomar forma, o “agricultor, pequeno, médio e grande que não se incorporar a essas tecnologias ou não conseguir ter competitividade e sustentabilidade vai sair do mercado”, diz Crestana. “A tecnologia não põe mais dinheiro no bolso, mas ela mantém você no mercado”. Já Cornacchioni faz um saldo evolutivo das Agrishows: “As demonstrações de campo do passado eram sobre como plantar. Hoje você tem demonstração de tecnologia. Acompanha a evolução”. Com tantos outros domínios a serem explorados e com uma população rural cada vez menor, maiores são as possibilidades da tecnologia no campo. No entanto, esse próprio paradigma pode já estar sendo modificado, como completa Crestana. Vai haver uma “junção dessa Agricultura Inteligente com as Cidades Inteligentes. Não existirá mais limite entre cidade e campo, tudo estará conectado”. Noção essa que, junto com o alto retorno financeiro, pode atrair muitos jovens ao agronegócio: “Ele vai poder morar na cidade e produzir alimentos no campo. Ele vai comandar as máquinas e receber as informações em uma central de inteligência com os bancos de dados”.
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