O Nordeste aos olhos do Sudeste

Evento realizado IEB conta sobre a cultura nordestina através da perspectiva do Sudeste brasileiro

Arte: Camilla Freitas

Fabiano, personagem do livro Vidas Secas de Graciliano Ramos, junto com sua família, passou por um processo cíclico de migração no Nordeste devido à seca do sertão e as opressões sociais por ele vividas. Sua história é semelhante a de muitos brasileiros que vivem nessa região do país que desde o período Imperial, mas principalmente entre as décadas de 1950 e 1970, cede um contingente expressivo de pessoas para viver em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Com o objetivo de conseguir um emprego e, portanto, melhores condições de vida, os nordestinos não deixam de trazer, também, para a região, seus diversos saberes.

Foi com o intuito de abordar essa produção cultural nordestina na região sudeste que o Instituto de Estudos Brasileiros da USP (IEB) realizou o evento Jornada de Estudos de Jovens Pesquisadores: A cultura nordestina no contexto urbano do Sudeste, no dia 5 de junho. Contando com diversos pesquisadores de áreas e universidades distintas, o evento, que foi organizado pelo professor do IEB Paulo Iumatti e pelas alunas Solenne Derigond (FFLCH-USP/ Rennes 2) e Mariana Anantas (FFLCH-USP), foi dividido em três mesas e uma palestra da professora Sylvia Regina Bastos Nemer (Departamento de História- UERJ) e ainda contou com a apresentação musical de Antônio Nóbrega, do Instituto Brincante, e da dupla de repentistas Sebastião Marinho e Andorinha.

Gif: Camilla Freitas. Apresentação Antônio Nobrega

A vinda

Foto: Camilla Freitas

Em sua fala, a professora Sylvia que buscou apresentar sua tese intitulada Espaço urbano e migrações: feira de São Cristóvão (RJ), os desafios da memória, disse que uma das expressões culturais nordestinas mais fortes no Sudeste, o cordel, era realizado como uma forma de memória coletiva dessa população que migrou para o Rio de Janeiro. Em sua pesquisa, ela aborda o fato da feira de São Cristóvão ter mudado de ambiente (ter ido para o pavilhão onde agora também é conhecida como Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas) e como essa mudança fez com que houvesse uma rejeição por parte dos cordelistas. Segundo Sylvia, no pavilhão há uma apresentação de um Nordeste inventado pela cultura do Sudeste, o que ali é apresentado, muitas vezes, não corresponde à realidade, mas sim a um imaginário que aquela população tem da região nordestina.

Mesmo sediando a feira de São Cristóvão, a produção carioca do que corresponde os saberes do sertão ainda é muito tímida comparada à produção paulista. A pesquisadora Ana Carolina Carvalho de Almeida Nascimento (doutoranda em Sociologia e Antropologia- UFRJ) conta que ao realizar uma pesquisa pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), pode notar que, em São Paulo, a produção do cordel e do repente é bastante presente principalmente nas regiões da Sé, Brás e República. “Ainda que muitas pessoas viessem para São Paulo para realizar outros trabalhos, várias conseguem viver do cordel”, relata. Completa dizendo que em São Paulo a presença dos emboladores de coco é mais forte do que muitas regiões nordestinas.

A vida e a saudade

O sertanejo, quando vai para a região Centro-Sul do país, na maioria dos casos, é vítima de preconceito por parte da população que ali vive. Isso faz com que nele cresça um sentimento saudoso com relação ao Nordeste. É o que aborda a canção A triste partida de Patativa do Assaré. As composições do músico e poeta cearense são analisados pela mestranda em literatura brasileira da FFLCH, Renata de Carvalho Nogueira em sua apresentação no evento denominada A comunidade nordestina no contexto urbano pelo olhar de Patativa do Assaré.

Renata conta, através do que escreveu Patativa, que, muitas vezes, o povo sertanejo sente vontade de voltar para seu antigo lar, o Nordeste, e que, além disso, sua terra natal que outrora era vista como inapta, agora é descrita de forma afetiva. O músico, também, de maneira bastante crítica, na poesia Nordestino sim, nordestinado não, atribui ao governo a responsabilidade pela falta de recursos que o fez migrar para o Sudeste.

Abordando o tropicalismo e a representação do Nordeste na música de Tom Zé, a pesquisadora do IEB Patrícia Anette também falou sobre como seu objeto de estudo encara esse desejo de retorno para as terras de onde se parte. De acordo com ela, em uma de suas músicas, Tom Zé diz que as pessoas só querem voltar para consumir e não para “plantar feijão”, ou seja, não voltam para buscar desenvolver aquela região.

Relação com a memória

Uma das grandes questões quando se trata de representação da cultura nordestina no Sudeste é a da preservação da memória. Quando falou sobre a feira de São Cristóvão, por exemplo, a professora Sylvia buscou a problemática, em sua pesquisa, acerca do que a mudança de um local para o outro afetaria nas memórias compartilhadas daquele grupo de feirantes para com seu público. Além dela, outros pesquisadores trataram do tema no evento, como foi o caso da francesa Céline Petitgand (doutoranda em administração da Université de Paris Dauphine/USP). Em sua pesquisa, ela retrata a relação entre o grupo Mães da OCA, composto por bordadeiras de Carapicuíba, interior de São Paulo, e grandes estilistas de moda que buscaram, através do intermédio do Instituto Econtece, desfrutar do trabalho artístico dessas mulheres enquanto as ajudavam em seu desenvolvimento financeiro. No entanto, para que isso acontecesse, o processo de produção das rendas teve que se adequar às formas capitalistas de venda e, com isso, a tradição teve que se moldar ao mercado. Mesmo com o ganho financeiro, essas mulheres perderam parte de sua tradição o que limitou sua autonomia.

Foto: Camilla Freitas

Outro tema que se relaciona com a memória da cultura nordestina no Sudeste é o da editora Prelúdio/Luzeiro que se propõe a publicar cordéis em livros. Esse tipo de publicação gerou algumas críticas uma vez que, nessas tiragens, o linguajar popular era “corrigido”, a capa impressa era colorida (o que está atrelado a um desaparecimento gradual da xilogravura) e, principalmente, porque os cordéis estavam sendo publicados em livros e, assim, deixavam de circular através de sua forma tradicional, o folheto. Essa questão da editora Prelúdio/Luzeiro foi posta por José Rodrigues Filho, pesquisador da Universidade Federal de Campina Grande, por meio de sua pesquisa  O colorido nas capas de cordel em São Paulo: analisando imagens e seu processo de produção na editora Prelúdio/Luzeiro. Nela, expõe a ideia de que na literatura de cordel a imagem é o suporte do texto e que esse tipo de proposta imagética da editora vai em desacordo com a tradição prática cordelista.

Foto: Camilla Freitas

Um estranho no ninho

Até mesmo sem sair de sua região de origem, o nordestino tende a passar por processos que o estimulam a defender suas tradições frente à modernidade. Esse é o caso dos feirantes da Feira Central em Campina Grande. Em sua pesquisa, apresentada no evento, a pesquisadora da Unesp Milla Pizzignacco, narrou a tentativa, por parte do governo, de acabar com feira em sua forma tradicional e renová-la, adequando-a ao projeto geral de modernização de Campina Grande. Segundo conta, antigamente era nesses tipos de feiras de rua que diferentes classes sociais se encontravam, mesmo que de forma desigual, mas que isso mudou com o advento de novos ambientes de consumo como as galerias e os supermercados.

Esse projeto de requalificação da Feira Central, no entanto, foi bloqueado pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) uma vez que não respeitava as referências culturais da feira como patrimônio cultural, como conta Milla.

Gif: Camilla Freitas

O Nordeste, o Sudeste

O evento como um todo cumpriu com seu objetivo central que era apresentar as narrativas culturais nordestinas no sudeste. Mas também trouxe outras perspectivas como  a relação da modernização das áreas urbanas com essa população, seu êxodo e ida para o Centro-Sul do país e até mesmo seu sentimento de não pertencimento dentro de seu próprio território.

Além dos pesquisadores citados, outros apresentaram seus trabalhos e dessa forma buscam, dentro do meio acadêmico (e fazer com que isso reverbere fora dele) a maior imersão social no sudeste dessa cultura tão diversificada por meio de estudos que a preservem.

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