Por Por Artur Zalewska – artur.zalewska@gmail.com
Em 2012, a juíza Deisy Cristhian Lorena de Oliveira Ferraz, da cidade de Ariquemes, em Rondônia, analisou um caso que viria a ser um marco no direito de família brasileiro. A mãe de uma menina pedia que fosse trocado, na certidão de nascimento da filha, o nome do pai da criança. Na certidão constava o nome do ex-companheiro da mulher como pai da menina – o homem havia de fato registrado a garota, mesmo sabendo que ela era filha biológica de outro homem.
A mãe pedia que fosse retirado da certidão o nome do seu ex-companheiro e fosse incluído no lugar o nome do pai biológico da criança. A juíza, no entanto, percebeu que com o passar dos anos ambos os homens, o pai biológico e o pai que registrou a criança, haviam criado laços de afeto com a menina, que dizia que tinha dois pais.
A juíza Deisy tomou uma decisão inovadora: mandou acrescentar o nome do pai biológico à certidão de nascimento da garota e manteve o nome do pai que a tinha registrado. Assim, a garota passou a ter, oficialmente, uma mãe e dois pais. Trata-se do primeiro caso conhecido de uma pessoa que foi reconhecida como filha de três pessoas no Brasil.
A multiparentalidade, como se tem chamado o reconhecimento de mais de duas pessoas como pais do mesmo filho, é um dos temas abordados na tese de doutorado de Daniela Braga Paiano, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, feita sob orientação do professor Álvaro Villaça Azevedo. O trabalho, intitulado O Direito de Filiação nas Famílias Contemporâneas, analisa mudanças recentes no modo como a legislação e os tribunais brasileiros tratam a relação entre pais e filhos. A tese, que também aborda questões como a barriga de aluguel e a adoção de crianças por casais gays, deve servir de base para um livro que será publicado em meados de 2017.
Em sua pesquisa, Daniela constatou que, após a decisão pioneira da juíza Deisy, já houve muitas outras decisões de tribunais brasileiros reconhecendo pessoas com mais de dois pais. “De 2012 até agora, praticamente todos os Estados do Brasil possuem casos de multiparentalidade”, diz a autora.
O caso de Rondônia ilustra uma das situações mais comuns em que os tribunais têm reconhecido a multiparentalidade.“São casos de novos arranjos familiares, em que a mãe ou o pai que já possui filhos começa outro relacionamento e o novo companheiro passa a exercer uma função de pai ou mãe na vida desse filho”, diz a autora.
A multiparentalidade também já foi reconhecida em casos de inseminação artificial. “Foi o caso de um casal homoafetivo feminino em que a técnica de reprodução assistida foi utilizada”, diz Daniela. “O doador do material genético masculino foi um amigo que quis participar desse projeto parental, possibilitando que a criança tivesse duas mães e um pai.”
Antes de os tribunais chegarem ao reconhecimento da multiparentalidade, um passo importante na evolução do direito de família foi o reconhecimento de filhos nascidos fora do casamento. “Antigamente só havia a proteção dos filhos advindos de uma relação de casamento, e com o passar dos tempos novas leis foram surgindo para reconhecer os filhos independentemente do estado civil dos pais”, explica a pesquisadora. “Com a Constituição Federal de 1988, foi introduzida a igualdade jurídica dos filhos.”
Outra mudança importante foi a legislação passar a dar tratamento igual a filhos adotados e aos filhos biológicos, além da permissão do reconhecimento da filiação por socioafetividade. “O Código Civil de 2002 menciona que o parentesco se classifica como natural, quando o filho é biológico, ou de outra origem, que pode ser a adoção, a socioafetividade ou as técnicas de reprodução assistida”, explica Daniela.
Apesar de a socioafetividade não ter sido mencionada explicitamente no Código Civil de 2002, os tribunais têm entendido que essa é uma das formas possíveis de alguém se tornar pai ou mãe de outra pessoa, mesmo que não registre o filho em cartório – nesse caso, não é o vínculo biológico nem a adoção formal que fazem uma pessoa se tornar filha de outra, mas sim o convívio social e afetivo.
O passo restante para o reconhecimento da multiparentalidade foi os tribunais decidirem que as diferentes formas de se criar uma vínculo de filiação não excluem uma à outra e podem ser reconhecidas ao mesmo tempo. “Recentemente o Supremo Tribunal Federal decidiu que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de outra filiação concomitante baseada na origem biológica”, diz Daniela. “Ou seja, o Tribunal reconheceu vínculo biológico e o socioafetivo concomitantemente, acarretando a multiparentalidade.”
Por enquanto, não há casos de pessoas no país com mais de três pais registrados na certidão de nascimento, e o instituto da multiparentalidade não existe em outros países. “Não encontrei na pesquisa nenhum caso fora do Brasil em que havia o registro de um filho em nome de três pessoas”, diz Daniela.
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