Pesquisadores analisam discurso da publicidade durante a pandemia no Brasil

Estudo classifica marcas do ativismo à perversão diante do cenário e pesquisadores definem compromisso delas como limitado

Crédito: Freepik

Os impactos da pandemia da Covid-19 são imensuráveis, em diversas áreas da sociedade e do conhecimento. Dentre essas áreas, uma possui um comportamento singular, que permeia entre posições de fala pública diante da população e diretrizes que seguem voltadas para o lucro: a publicidade. 

Para analisar melhor esse cenário, surgiu uma iniciativa do Observatório da Pandemia, grupo que reúne pesquisadores comunicacionais de Brasil, Chile, Espanha e outros países da América do Sul. Na Universidade de São Paulo, os coordenadores do projeto são do Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo (CRP), da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), respectivamente, Clotilde Perez, Eneus Trindade e Bruno Pompeu. 

O grupo publicou recentemente o relatório Observatório da Pandemia: a publicidade e as marcas no contexto da COVID-19, que apresenta análises sobre os posicionamentos aplicados pelas marcas em suas campanhas publicitárias durante o período inicial da pandemia e da crise de saúde no país, entre março e junho de 2020.

Dentre os resultados obtidos pelo estudo, destaca-se um sistema de classificação de tom e postura das marcas, definindo sua atuação durante o cenário. O esquema é dividido em três classificações. A primeira é relativa ao tom empregado pelas ações: tom educativo, propondo pausa no consumo, alinhado com a campanha “Fique em Casa” e com as recomendações da OMS; tom informativo, procurando a manutenção do consumo em patamares normais; e tom promocional, visando aumentar o consumo. 

Em outra camada, foram analisadas posturas, ações e conteúdos veiculados das marcas, construindo-se um panorama amplo que reflete o posicionamento de cada uma diante do consumidor. Logo, os discursos foram segmentados entre postura positiva da marca, conteúdos relativos à pandemia, práticas sugeridas, ações para a sociedade, adaptações práticas, ações para o consumidor, relevância do produto e postura negativa da marca. Com base nesse levantamento, a tarefa final foi estabelecer uma classificação geral das marcas, apontadas como marcas ativistas, solidárias, demagogas, oportunistas e perversas. Confira o diagrama: 

Um dos tópicos abordados durante o relatório é o a crescente tensão entre o espaço das instituições, das falas públicas e o discurso publicitário, individualista e de consumo, o que acabou sendo intensificado durante a pandemia. Para o professor Bruno Pompeu, trata-se de um direcionamento já em curso anteriormente. “Era uma coisa prenunciada, que, inclusive, foi flagrada por diversos pesquisadores de várias áreas. Falo dessa sobreposição do individual sobre o coletivo, do consumo como lógica estruturante da sociedade. A pandemia surge em um momento que, por conta dessa prevalência, a dificuldade para o seu combate acaba ficando maior. Um exemplo é a relativização das ordens governamentais ou da OMS. Ou seja, o embate entre a vontade particular e a ordem pública se estabeleceu”, ressaltou ele. 

Sobre esse embate, o pesquisador complementa considerando alguns movimentos de fortalecimento da esfera pública e do estado durante a pandemia, citando como exemplo a oferta de vacinas e estados que tiveram no combate à doença. “Embora tenhamos algumas manifestações em que o estado e o institucional se mostrem exitosos, por outro as iniciativas individuais continuam sendo muito protagonistas, sejam as negacionistas, em festas ou burla à vacina, mas também a vontade das pessoas, a manutenção do consumo. Tudo isso fica muito forte e até se agrava durante a pandemia”, conclui. 

Ainda assim, foi percebido pelos pesquisadores uma certa dificuldade de adaptação das marcas ao cenário, especialmente nesses meses iniciais. “Existe uma dificuldade de se manter em contato com o público, que implica inclusive no processo produtivo das campanhas publicitárias e, certamente, quando conseguimos avançar no nosso estudo e observar essas marcas em um espectro mais longo, devemos conseguir ver oscilações de posicionamento. As marcas acabam sendo um termômetro muito sensível para o que acontece na sociedade, em um papel fundamental de construir valores e pautar discussões”, explica o professor Bruno. 

Durante análise dessas oscilações de posicionamento, o professor Eneus Trindade destaca a diminuição de menções à pandemia na publicidade com o passar dos meses: “Houve uma evidente sensibilização das marcas, de formas distintas. Às vezes oportunistas, às vezes verdadeiramente sensíveis, engajadas ao problema que representava. Então, ela procurava até mesmo propor ações que estavam fora de sua lógica de produção ou de mercado para contribuir com esse cenário de crise. No entanto, isso acabou se arrefecendo, depois de um período de um ano, e a publicidade segue um apelo tradicional, seguindo suas tendências sem contemplar a pandemia como mote de suas campanhas”.

Outro fator a se levar em consideração ao analisar o discurso das marcas na pandemia é, invariavelmente, o setor no qual a marca está inserida. Afinal, existem setores que, de certa forma, se beneficiaram da crise. Desde os mais diretos, como o consumo de álcool em gel, até setores como serviços de entrega e produtos de higiene ou para o ambiente doméstico, vinculados ao período de isolamento. “O compromisso das marcas com questões institucionais e públicas é limitado. Não estou dizendo que não tem nenhum e que, portanto, devemos condenar tudo que seja feito, mas é limitado. Nesse momento, a publicidade não reflete a pandemia, ela não convida a ficar em casa, não instrui como fez no começo da contaminação”, analisa o professor Bruno. 

Ao projetar a discussão no âmbito das funcionalidades da sociedade capitalista, Prof. Eneus conclui que “a perspectiva da pandemia vai no movimento contrário à demanda de crescimento constante, disputas e conquistas de mercado, que não fazem muito sentido nesse contexto pandêmico, em que o freio de mão está puxado. Não é um apelo interessante, oportuno”. 

Nas campanhas e ações publicitárias, também foram notadas colocações políticas das marcas em meio ao período de crise. Alguns posicionamentos estavam alinhados com as recomendações de saúde e prevenção, outros com o discurso negacionista propagado pelo governo federal. Para o Prof. Bruno Pompeu, a reação do público a essas ações políticas esteve mais vinculada ao grau dessas manifestações do que com as posições políticas em si.

“Isso depende do quão declarada era essa postura definida como política das marcas. Em um extremo, tivemos marcas ajudando na produção e distribuição de álcool em gel, equipamentos e doando alimentos. No outro, marcas incentivando que o consumo continuasse, que o mercado não podia parar. Quanto mais declarada essa posição, mais elas eram alvo de julgamento, ou não”, explica o professor.

No entanto, não devemos confundir esse posicionamento de causa com consequências às ações efetivas da marca em seu mercado e no consumo. O Prof. Eneus aponta que, muitas vezes, críticas a uma determinada marca não necessariamente representam alterações em seu fluxo de vendas. “A pandemia está sendo uma oportunidade importante para a gente ver o quanto essas três dimensões (discurso da marca, reação do público nas redes e prática de consumo) estão interligadas, mas não são a mesma coisa. É errado você pensar que, porque uma marca foi cancelada, esta é uma marca que anda tendo perdas financeiras”, concluiu ele. 

Essa articulação entre discurso e prática deve ser explorada com a continuidade do Observatório, trazendo resultados mais aprofundados sobre diferentes períodos que o país viveu durante a crise sanitária. A professora Clotilde Perez destaca isto como um objetivo para os próximos passos do projeto.

“É um desejo nosso ampliar a pesquisa circular sobre as marcas. O que as marcas dizem, o que as pessoas dizem sobre elas e tentar ver nesses eixos o quanto eles são coerentes e, muitas vezes, o quanto são dissonantes. Então, o discurso publicitário vai em um sentido e o comportamento organizacional vai em outra direção completamente oposta. Fazer essa avaliação mais ampliada, para além do discurso publicitário, é uma contribuição muito importante para a gente.” 

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