Limites da agricultura tradicional fazem da agroecologia uma necessidade

Especialistas revelam insustentabilidade da produção agrícola sob a lógica do agronegócio e afirmam ser urgente a sua superação

Agricultora Celita Wenz Schmidt na sua lavoura de couve, em Santa Rosa de Lima (SC) / Foto: Eduardo Aigner/Ministério do Desenvolvimento Agrário

Por Bruna Caetano e Laura Barrio

Dada a incompatibilidade entre sistemas agrícolas tradicionais e sustentabilidade socioambiental, é urgente o desenvolvimento de formas alternativas de produção e consumo, afirmam cada vez mais especialistas e organizações internacionais. Dentre as possibilidades, destaca-se a agroecologia, defendida até pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). “Precisamos promover sistemas alimentares duráveis e preservar o meio ambiente: a agroecologia pode ajudar a chegar lá”, afirmou o diretor-geral da FAO, José Graziano da Silva, na abertura do Segundo Simpósio Internacional sobre Agroecologia, realizado em 2018, na Itália.

No Brasil, a pertinência da discussão ganhou mais evidência conforme foram se tornando públicos os entendimentos do novo governo sobre questões ambientais e de produção. Embora em início de mandato as diretrizes políticas ainda não estejam completamente determinadas, a escolha da equipe ministerial pode ser um bom termômetro do que vem por aí — equipe essa formada, entre outros, pela ex-líder da bancada do agronegócio na Câmara dos Deputados, Tereza Cristina da Costa, agora ministra da Agricultura, e por Ricardo Salles, nome à frente da pasta do Meio Ambiente.

Tereza ganhou o apelido de “musa do veneno” após aprovação em comissão especial do Projeto de Lei 6.299/02, que trata do registro, fiscalização e controle dos agrotóxicos no País — o “PL do veneno”. Já o atual ministro é ex-diretor jurídico da Sociedade Rural Brasileira (SRB) e acusado pelo Ministério Público de descumprir leis ambientais e manipular mapas de manejo ambiental do rio Tietê a fim de beneficiar setores econômicos, em especial empresas mineradoras. Ambos parecem ter agendas com fins comuns.  

Ainda que a proposta de união dos dois ministérios, inicialmente defendida pelo presidente Jair Bolsonaro, não tenha se concretizado, ambientalistas temem que a pasta do Meio Ambiente se subordine aos interesses dos ruralistas. Para os que enxergam nessa política uma ameaça à saúde do meio e das pessoas, chegou a vez da agroecologia. 

O que é agroecologia? 

Muito além de um conjunto de técnicas agrícolas: um novo paradigma de valores existenciais, uma reflexão filosófica sobre a sociedade que se deseja construir. Este é, para Marcos Sorrentino, um bom ponto de partida para a compreensão da agroecologia. O professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP ainda pontua que a agroecologia é, hoje, uma necessidade: “Em todo o planeta há inúmeros exemplos de esgotamento de bens naturais e de saúde humana. A agroecologia nos coloca o desafio e a possibilidade de um outro modo de produção e consumo”.

Já Carlos Armênio Khatounian, do Departamento de Produção Vegetal da Esalq, aponta que “agroecologia” ainda é um termo em disputa. O professor lembra do Marco Referencial em Agroecologia, desenvolvido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que trata a agroecologia como sendo ao mesmo tempo disciplina científica e movimento social. Ele rejeita esse entendimento, dizendo se tratar de coisas diferentes, apesar de ser possível haver pontos de convergência entre elas. Em resumo, a agroecologia se refere, segundo ele, a um manejo de sistemas agrícolas que se utiliza da ecologia como ciência básica.

Ainda conforme Sorrentino, a agroecologia parte do entendimento segundo o qual, a partir da construção de novas relações entre pessoas e natureza, é possível unir desenvolvimento agrícola e sustentabilidade. Preservando ou reproduzindo os processos naturais nas plantações, a agroecologia possibilita interações harmônicas entre os seres que compõem o ecossistema. Dispensando o uso de agrotóxicos e aditivos químicos, a produção agroecológica garante uma alimentação saudável aos trabalhadores rurais e demais consumidores, além de evitar a contaminação do meio. Além disso, rejeita outras práticas degradantes, como a monocultura, que, entre outras consequências, leva à perda do solo. 

Ademais, a agroecologia se desenvolve com base no conhecimento e experimentação dos próprios agricultores. Sorrentino explica que não há uma cartilha a ser seguida: “Busca-se a tecnologia mais apropriada a cada grupo social, a cada condição climática e do meio físico. É uma contraposição à economia de escala, à homogeneização que viabiliza a concentração de capital e de poder nas mãos de poucas pessoas. A agroecologia está umbilicalmente ligada à perspectiva autogestionária e emancipatória, possibilitando a cada grupo humano gerenciar e gestionar a construção dos seus modos de vida e de sobrevivência em cada território”.

Já Khatounian acredita que a discussão nesses termos não dialoga com o cotidiano do campo, uma vez que o interesse dos agricultores é enfrentar as dificuldades reais do dia-a-dia nas plantações: “Eles não estão interessados a longo prazo na proteção da vida, contra o monopólio das grandes empresas; querem saber como controlar a mosca da fruta”. Este seria, para ele, o desafio colocado para a agroecologia. 

Ainda sobre a relação do trabalhador com o meio, a doutora em geografia pela USP, Mônica Iha, afirma: “Enquanto na agricultura convencional ocorre um distanciamento das relações dos agricultores com a terra (mediadas por insumos químicos, sementes modificadas e cultivos de ciclo mais longo), na agroecologia os camponeses estabelecem uma relação afetuosa com a terra, com os cultivos, fazendo dos sítios verdadeiros laboratórios a céu aberto, testando consórcios e formas de preparar a plantação. Há necessidade de convívio com as espécies e uma diversidade de cuidados pouco presente em outras modalidades de agricultura. Pelo fato da terra cultivada para o camponês ser sinônimo de concretização do trabalho, existe um orgulho dos resultados, ʽdas roçasʼ, dos frutos, da abundância e da diversidade”. 

Mônica aponta ainda um outro diferencial da agroecologia: a autonomia camponesa. Diferentemente de um boia-fria, por exemplo, submetido a uma “situação de sujeição”, na perspectiva da produção agroecológica “a própria família controla o uso do tempo e do espaço no processo de trabalho”, completa.

Khatounian lembra, porém, de um “fenômeno mundial: cada dia menos pessoas querem se dedicar à agricultura. Em São Paulo, por exemplo, a população agrícola representa só 4% da total”. O professor complementa: “A população rural sofre um processo rápido de envelhecimento, masculinização e diminuição”. E conclui, assim, que pensar um modelo agrícola mais intensivo em mão-de-obra não condiz com a realidade concreta dos dias atuais. 

Os limites do agronegócio

Alta mecanização e monocultura caracterizam o agronegócio brasileiro / Foto: Agência Brasil

Os modelos tradicionais de agricultura contestados pela agroecologia são os que imperam na lógica do agronegócio — caracterizado no Brasil pelas grandes propriedades mecanizadas e monocultoras. Sobre o desenvolvimento do agronegócio no país, contextualiza Mônica: “Com essas características [alta tecnologia e monocultura] e pouca presença de trabalhadores, essa modalidade de agricultura expandiu-se territorialmente”. Assim, a biodiversidade brasileira, uma das mais ricas do mundo, foi “dando lugar à agricultura com base na Revolução Verde, caracterizada por monoculturas, adubação química e uso de agrotóxicos”. 

A geógrafa avalia que “esse modelo de agronegócio, por suas características predatórias e excludentes, precisa ser modificado”. E afirma: “Qualquer estilo de agricultura que deseje prosperar no futuro deverá se adaptar aos efeitos da destruição dos recursos naturais renováveis: água, solo e biodiversidade”. Sorrentino complementa a ideia, dizendo que “o comprometimento dos sistemas naturais pode comprometer toda a capacidade produtiva das sociedades humanas. É esse modo de produção, que tem se demonstrado insustentável a médio e longo prazo, que a agroecologia questiona”.

Propostas de superação dos modelos dominantes no agronegócio no Brasil, porém, enfrentam resistência de setores importantes da sociedade. A presença e a influência — econômica e política — das oligarquias rurais se expressam nos números: o agronegócio contribuiu com 23,5% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro em 2017 e representou 44% das exportações nacionais, segundo dados da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Além disso, 18 dos atuais 27 senadores e 100 dos 218 deputados pertencem à Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) — a bancada ruralista. 

Do lado dos defensores da produção agrícola sob os moldes tradicionais, afirma-se que esse sistema é o mais produtivo. O professor Sorrentino revela, porém, que “pesquisas mostram que se você planta tomates com pulverização de agrotóxicos a cada dois dias durante 60 dias, chega ao final na colheita com mais caixas de tomate retiradas do que aquele produtor que planta o tomate orgânico, sem agrotóxico e associado a outras espécies. No entanto, se você põe na ponta do lápis o quanto se gasta para produzir esse tomate com agrotóxico e o sem agrotóxico, você vê que o último teve uma menor produção, mas uma rentabilidade igual ou superior ao que utilizou agrotóxico”.

E adianta as críticas: “Aí alguns podem dizer: ‘Mas você não vai matar a fome do mundo assim. A produtividade em termos financeiros pode ser até maior pro agricultor, mas você tem menos tomate no mundo’”. O professor rejeita essa argumentação, dizendo que hoje não há escassez de comida no planeta: “Nós temos produção de alimentos suficiente para toda a humanidade, no entanto, tem 1 bilhão de pessoas passando fome [são 821 milhões de pessoas, de acordo com relatório divulgado por agências da ONU em 2018] porque não tem poder aquisitivo para comprar esse alimento. Se existirem políticas públicas que incentivem a produção de alimentos descentralizada, baseada na agricultura orgânica e na agroecologia, aí talvez nós tenhamos alimento para toda a humanidade. Não é uma questão de técnica produtiva, é uma questão de justiça social”.

Carlos Khatounian, da Esalq, acrescenta que, segundo estimativas da FAO, metade da produção mundial de grãos vai hoje para alimentação de animais, não de pessoas. A produção de carne e outros produtos de origem animal para consumo humano é o que motiva a criação de tantos bichos. “Não é possível alimentar a população do planeta com esse padrão de consumo norte-americano, devido à disponibilidade de recursos (terra, água, fertilizantes). Pode usar toda a tecnologia transgênica, de ponta: não tem como”. E conclui que “se quisermos alimentar um número crescente de pessoas, é preciso trabalhar com a ideia de uma dieta com menor quantidade de alimentos de origem animal”. 

Agrotóxicos, que mal têm?

Em sete meses de governo Bolsonaro, 290 agrotóxicos foram liberados para utilização / Foto: Agência Brasil

Desde 2008 o Brasil lidera o ranking mundial de consumo de agrotóxicos, utilizando 19% de todo o produzido no mundo, segundo dados divulgados pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca). Pelas últimas movimentações do governo federal, imagina-se que essa realidade não deve ser alterada tão cedo. Nos sete primeiros meses de governo Bolsonaro, 290 novas substâncias foram liberadas para utilização no território brasileiro. Destes agrotóxicos, pelo menos 32% são proibidos na União Europeia, conforme informação do Greenpeace.

Para Larissa Bombardi, professora do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, não há nada a se comemorar por esse título nacional. A geógrafa afirma existir uma estreita ligação entre o elevado consumo dessas substâncias e o fato de o Brasil ser um grande exportador de commodities, nos moldes do agronegócio. “Do volume de agrotóxicos comercializados no Brasil, aproximadamente 50% vai para a soja, 10% para a cana-de-açúcar e 10% para o milho. Ao mesmo tempo, o Brasil é o maior exportador mundial de soja, açúcar e milho (revezando o segundo lugar com os Estados Unidos no caso do milho)”, explica. 

Larissa afirma, ainda, não haver espaço para pensar alternativas ao uso de agrotóxicos se não houver uma mudança de paradigma, um novo entendimento sobre o desenvolvimento agrícola. “Na agricultura capitalista, grandes fazendas produtoras só são viáveis do ponto de vista econômico sob de formas de monocultura, porque demandam menos trabalho humano”. E acrescenta: “A monocultura vai num caminho que é estranho à maneira como a natureza se organiza. Desestabiliza o equilíbrio do solo — físico, químico e biológico. O vegetal produzido em solo desequilibrado é desequilibrado nutricionalmente e aí entram os insetos, os fungos, as coisas ‘indesejáveis’. Então, a monocultura é quimicodependente”.

Para Khatounian, a afirmação de Larissa vale para quase a totalidade dos casos, mas entende ser justamente esse o desafio colocado: Como fazer agricultura em escala ampliada e com base ecológica? “A agroecologia cabe em qualquer escala de produção”, afirma. O professor lembra projetos universitários conduzidos por ele e seus alunos em assentamentos que unem agroecologia e produção em larga escala, como o Cana Verde, na Usina São Francisco: “Quando fiz a última visita, eram 17 mil hectares de cana produzida organicamente”. 

O professor ressalta ainda que as culturas têm suas peculiaridades: “Alguns produtos agrícolas, como as hortaliças, são produzidos em escala menor. Já os grãos, em escala ampliada”. Khatounian afirma que nas culturas conduzidas em áreas menores, a produção com base agroecológica já é uma realidade, mas “em culturas de escala ampliada ainda há lacunas tecnológicas que precisam ser estudadas”. 

A necessidade de cessar ou ao menos reduzir o uso de agrotóxicos se deve ao fato de estas serem substâncias potencialmente nocivas, ao meio ambiente e aos humanos. Sobre os males causados às pessoas, Larissa Bombardi conta que os casos mais evidentes de contaminação e sobre os quais mais se tem notícia são os de intoxicação aguda — aqueles que se dão por contato direto com a pele, aspiração ou ingestão. “De 2007 a 2014, 25 mil pessoas foram intoxicadas por agrotóxicos no Brasil, uma média de oito casos por dia, segundo os dados oficiais que chegam ao Ministério da Saúde. O próprio órgão calcula que para cada caso notificado existam 50 outros não notificados”. Estima-se, assim, que nesse período o número de pessoas contaminadas tenha sido algo próximo a 1,25 milhão.

E não são só os casos agudos que preocupam e nem os trabalhadores rurais as únicas vítimas. A professora destaca também os quadros clínicos crônicos relacionados à exposição frequente aos agrotóxicos: são os cânceres, casos de malformação fetal e puberdade precoce, por exemplo. Numa escala de vulnerabilidade, os trabalhadores rurais, mais afetados, são seguidos pelos que vivem nas imediações das áreas agrícolas, depois pelos moradores de cidades do interior e, por último, pela população urbana em geral. Esta última “suscetível em função dos níveis de resíduos permitidos nos alimentos e na água no Brasil”, explica a professora. Conforme divulgado pela revista Problemas Brasileiros em 2017, cada brasileiro consome, em média, sete litros de agrotóxicos a cada ano.  

Larissa mapeou a contaminação por agrotóxicos no Brasil entre 2007 e 2014. Os resultados confirmaram a hipótese: a concentração dos casos de intoxicação coincide com as regiões onde estão as principais culturas do agronegócio no Brasil. No mapa abaixo, a distribuição de ocorrências nas regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste corresponde aos principais centros de cultivo de soja, milho e cana-de-açúcar no país. Já no Nordeste, o destaque é para a fruticultura.

A concentração dos casos de intoxicação coincide com as regiões onde estão as principais culturas do agronegócio no Brasil / Foto: Reprodução

Sobre as perspectivas para o futuro, Larissa entende que “entramos na contramão da produção agroecológica e da soberania alimentar”. A geógrafa avalia que havia um movimento de crescimento do espaço ocupado pela agroecologia no cenário nacional. “Agora o que temos é a desestruturação total dessa possibilidade”, analisa. E lamenta o número de agrotóxicos recentemente liberados no Brasil: “O primeiro salto foi do governo Dilma paro o governo Temer, com um aumento de 25% a 30% da quantidade de agrotóxicos liberados para o cultivo soja, citros e café. E agora, com Bolsonaro, quase 300 ingredientes ativos antes proibidos já foram autorizados”. 

Ocupar e produzir agroecologicamente 

Para o MST, a reforma agrária deve ser fundamentada na agroecologia / Foto: Arquivo MST

De acordo com a geógrafa Mônica Iha, no Brasil “as preocupações relacionadas ao meio ambiente cresceram principalmente pela pressão dos movimentos ambientalistas no cenário mundial. Assim, os governos e a sociedade civil organizada em movimentos sociais passaram a reconhecer a importância da ecologia”.

Dentre os movimentos nacionais com atuação mais notável na luta pela distribuição de terras improdutivas, destaca-se o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), nascido em 1984, com a bandeira da democratização do acesso à terra e a palavra de ordem “sem reforma agrária não há democracia”. 

Desde o seu nascimento, o MST reconhece o campesinato como guardião das florestas, sementes, nascentes, rios e fauna, mas só “em 2007, diante de um debate sobre o modelo agrícola a ser adotado pelos assentamentos rurais, a agroecologia foi reconhecida como base na qual deveria se fundamentar a reforma agrária no Brasil”, contextualiza Mônica. Por agroecologia o movimento entende “a práxis social e produtiva dos camponeses, onde a partir do trabalho, do estudo, da reflexão e da organização popular criamos e manejamos sistemas produtivos diversificados, que tem a natureza como aliada, não como inimiga”, segundo o site do MST.

Apesar das diretrizes gerais, a maneira de produzir diverge dentro do movimento, que tem formas de organização heterogêneas em todo o país. De acordo com Antônia Ivoneide, da direção nacional do MST, apesar da agroecologia não estar presente de maneira uniforme em todas as terras ocupadas, existem pontos que unificam o entendimento da produção agroecológica, como a relação dos camponeses com a natureza e as relações de trabalho. “Não dá para produzir agroecologia quando se tem exploração do trabalho alheio, violência doméstica e exploração infantil”, exemplifica. 

Das 350 mil famílias assentadas em todo o país, 50 mil produzem agroecologicamente / Foto: Foto: Juliana Adriano / MST

No assentamento João Pedro Teixeira, em Alagoas, por exemplo, as famílias produzem alimentos orgânicos — sem agrotóxicos ou transgênicos —, mas, apesar dos cursos de capacitação técnica, faltam recursos e conhecimento para avançar ao nível agroecológico e alcançar uma escala maior de produção. De acordo com Gilberto Barden, presidente da Cooperativa Regional de Produção Agropecuária Herdeiros de Zumbi, o nível de escolaridade no assentamento é baixo, e os jovens que concluem o ensino médio muitas vezes deixam a terra para trabalhar fora. Além disso, Barden diz faltar um acompanhamento efetivo de assistência técnica nas terras.

Barden conta que o abacaxi produzido pelos assentados alagoanos não demanda nenhum tipo de veneno, estimulante ou acelerador de amadurecimento. Na safra atual, iniciada em setembro de 2018, devem ser produzidos cerca de 100 mil abacaxis até o fim de fevereiro deste ano. Ele diz, ainda, que chegou a experimentar algumas técnicas de proteção do solo, plantando uma leguminosa junto aos abacaxis para enriquecer as pastagens e dispensar agrotóxicos: “Consorciada no abacaxi, essa leguminosa faz o controle de ervas daninhas, e, por ter capacidade de retirar nitrogênio do ar e fixar no solo, acaba ajudando o abacaxi na sua nutrição”, explica.

Das 350 mil famílias assentadas em todo o país, 50 mil produzem agroecologicamente, segundo o MST. Toda a produção do movimento é fruto da organização das 100 cooperativas de trabalhadores assentados, quase duas mil associações e 96 agroindústrias, que fabricam produtos com a matéria-prima oriunda dos assentamentos, como bolos, cafés e leite. A capacidade de organização do movimento fez do MST o maior produtor de arroz orgânico das Américas — 27 mil toneladas por safra, sendo a maior parte destinada às escolas distribuídas pelas regiões.

Dentro do projeto político do MST, a agroecologia tem o papel de garantir a emancipação das trabalhadoras e trabalhadores. “A conquista da terra é apenas um passo para essa liberdade, o outro é quando nos tornamos autônomos em relação às empresas, e soberanos na produção do nosso alimento”, afirma Antônia Ivoneide. Segundo ela, a agroecologia é mais que um modelo técnico, é uma relação política que também se reflete no comprometimento com a sociedade, que pode ter confiança ao saber o que está consumindo: “Existe a decisão política do movimento, mas também um apelo da sociedade que quer comprar alimentos saudáveis”.

Reforma agrária ontem e hoje (e amanhã?)

Entendendo ser inviável avançar rumo à agroecologia sem alterar a lógica da monocultura e dos latifúndios improdutivos, as reivindicações, que antes podiam parecer distintas, passam a caminhar lado a lado: a demanda pela soberania alimentar, por exemplo, se canaliza na luta pela reforma agrária.

O primeiro documento oficial sobre reforma agrária no Brasil data do início da ditadura civil-militar no país, em 1964, quando foi aprovada a Lei Nº 4.504 sobre o Estatuto da Terra. Os militares, no entanto, cuidaram da questão agrária incentivando a cultura de exportação e mecanização do processo de produção, o que favoreceu os latifundiários, impulsionou o êxodo rural e o uso intensivo de venenos, criando um modelo agrário concentrador e excludente.

Com a redemocratização e posterior elaboração da Constituição Federal de 1988, a reforma agrária passou a garantida pela Lei de Desapropriação, instituída pelo Plano Nacional de Reforma Agrária, o qual assegura o direito da União à desapropriação de terras improdutivas — que não cumprem função social. Com a organização da sociedade civil e dos movimentos sociais em torno da pauta, foram conquistados alguns avanços na redistribuição de terras. 

Segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), os mandatos do ex-presidente Lula foram os que mais distribuíram terras, assentando quase 614 mil famílias, seguido pelo governo Fernando Henrique Cardoso, com 541 mil. Já os mandatos incompletos de Dilma Rousseff somaram aproximadamente 134 mil famílias assentadas, e o de Michel Temer, 1,7 mil famílias — nenhuma no ano de 2017.

De acordo com Isolete Wichinieski, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a intensificação do investimento de capital no campo vai na contramão da reforma agrária. Para o futuro, diante do governo de Jair Bolsonaro, as perspectivas não são animadoras: “Antes de se eleger, ainda no processo eleitoral, já ficou muito claro que não existe a possibilidade da discussão da reforma agrária. As perspectivas partem das próprias comunidades, que têm pensado em sua resistência”.

Isolete lembra que já no dia seguinte à posse, o presidente eleito anunciou a transferência da demarcação de terras para fins de reforma agrária para o Ministério da Agricultura, de Tereza Cristina e, poucos dias depois, paralisou a reforma agrária em todo o país — mas voltou atrás no dia seguinte. E vê com preocupação declarações de Bolsonaro a favor da criminalização de movimentos como o MST e seu enquadramento como “organização terrorista”.

A expectativa de Isolete é de que, com a eleição de Bolsonaro, ruralistas se sintam cada vez mais respaldados a praticar violência no campo. Ela conta, ainda, que a partir de 2016 já é possível notar o crescimento dos conflitos, atingindo o número de 65 mortes e cinco chacinas em 2017, segundo dados da CPT. “Hoje, a pistolagem está legalizada a partir das empresas de segurança que trabalham nas grandes fazendas. A posse de armas amplia isso ainda mais”, avalia.

Assassinatos no campo entre 2003 e 2017 / Gráfico: Comissão Pastoral da Terra

O professor Marcos Sorrentino também enxerga com preocupação o cenário que se desenha no país. Ele, porém, tem esperanças, sobretudo “na juventude que vai herdar esse planeta”: “Há uma imensa parcela da sociedade brasileira que está preocupada com a sua própria saúde, com a saúde do meio ambiente, com a possibilidade de existência para seus filhos e netos”. 

Para o professor, “essa imensa parcela da sociedade precisa traduzir isso numa leitura mais aprofundada sobre o significado da eleição de governos como esse que foi eleito para a direção do país. A gente precisa juntar as duas partes do cérebro e visualizar que tirar o Brasil dos acordos climáticos, acabar com os ambientalistas, ecologistas, terras indígenas, não combina com essa outra dimensão do nosso cérebro que quer saúde, que não quer doenças degenerativas e cânceres provocados pelo aumento de consumo de agrotóxicos e diversos elementos químicos que estão em abundância no nosso cotidiano, em função de uma opção gananciosa de rendimento econômico”.

Sorrentino diz ainda acreditar que “conforme essa população for percebendo que as ações do governo são incompatíveis com esses anseios por vida com qualidade, por vida que mantenha a possibilidade de outras vidas permanecerem no planeta, esse panorama se reverte”. Khatounian também é otimista ao lembrar que “considerações de saúde e considerações ecológicas convergem”. E explica: “É consensual que boa parte dos problemas de saúde que afetam as populações mais ricas é derivada do consumo excessivo de produtos de origem animal”. Sendo assim, a priorização de uma alimentação com mais grãos, hortaliças e frutas seria uma solução interessante sob todos os pontos de vista.

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